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A forma como as pessoas se relacionam virou tema de discussão no Congresso e pode até ser decidida por lei, se o chamado Estatuto da Família for aprovado. Grupos evangélicos e movimentos LGBT estão em um embate ideológico. André Henrique de Siqueira comenta.

  • Data :26/02/2016
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26 de fevereiro de 2016

Uma lei pode determinar o que significa família?

A forma como as pessoas se relacionam virou tema de discussão no Congresso e pode até ser decidida por lei, se o chamado Estatuto da Família for aprovado. Grupos evangélicos e movimentos LGBT estão em um embate ideológico — já que os casais homossexuais seriam especificamente atingidos pelo projeto

por Gabriela Loureiro

Em 2014, quando começou a frequentar uma escola particular em Maricá (Rio de Janeiro), Anthony, de três anos, percebeu que sua família era um pouco diferente das de seus colegas. As gêmeas têm pai e mãe, o amigo Pedro também, mas ele tem dois pais. Mesmo assim, não entendia muito bem qual era a diferença. Um dia, em casa, ouviu pela primeira vez a música “Para mamãe”, da Galinha Pintadinha, e ficou cheio de pontos de interrogação na cabeça. “Mamãe?”, questionou em voz alta mais de uma vez. Marcos, seu pai, explicou que existem diferentes composições de família, “com um pai e uma mãe, dois papais, duas mamães, só uma mãe, só um pai, ou com uma vovó”. Anthony entendeu, e hoje aponta sua família com orgulho na escolinha: “Papai Robson e papai Marcos”.

O que ele ainda não aprendeu é que existem muitas pessoas que não consideram válida uma família como a sua. Entrou em discussão na Câmara dos Deputados um projeto de lei de 2013 chamado Estatuto da Família, que determina que as uniões familiares brasileiras devem ser compostas exclusivamente por um homem e uma mulher por meio de casamento ou união estável, o que pode prejudicar a adoção de crianças por casais homossexuais.

De autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), o PL 6583/2013, que havia sido arquivado, foi desenterrado em 2014 pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que desde então vem tentando acelerar o processo de aprovação do estatuto. Procurada por GALILEU, a assessoria de imprensa de Cunha informou que o deputado não está disponível para falar sobre esse assunto.

De fato, o projeto é polêmico. Movimentos LGBT e defensores de direitos humanos têm feito campanhas contra a aprovação do estatuto com as hashtags #emdefesadetodasasfamílias e #nossafamíliaexiste, mas, em uma enquete no site da Câmara, 53% dos participantes votaram a favor do projeto. O resultado da consulta pública e a multiplicação das propostas conservadoras representam o avanço da chamada bancada evangélica no Congresso. Hoje, há 78 parlamentares da ala evangélica, oito a mais do que em 2010. Sem contar a presidência da Câmara, assumida por Eduardo Cunha.

Apesar de o Estado brasileiro ser laico – imparcial em assuntos religiosos e sem a interferência da religião em assuntos sociopolíticos –, os membros da bancada evangélica são conhecidos por interpretar a Constituição com um viés influenciado por suas crenças.

DIFERENTES ARRANJOS

Nos últimos anos, os direitos LGBT também têm ganhado força no Brasil, com autorizações de adoção e união estável, além da popularização na mídia, com episódios como o do beijo gay na novela Babilônia. É também um reflexo do aumento das relações abertamente homoafetivas. Segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2010, há ao menos 60 mil casais homossexuais brasileiros. Para cada mil casamentos heterossexuais, há três uniões civis entre pessoas do mesmo sexo – para adotar, o casal precisa de algum tipo de contrato de união. “Acho que o estatuto é uma reação aos nossos direitos conquistados, ao fato de a nossa família não só existir como estar no papel, com filhos registrados, isso assusta grupos conservadores”, afirma Laura Castro, 33 anos, atriz e produtora cultural casada com Marta Nóbrega, com quem tem três filhos.

A família brasileira passou por mudanças profundas nas últimas décadas, e o núcleo formado por um casal e filhos já não é mais a regra. Segundo o Censo de 2010 do IBGE, esse tipo de arranjo corresponde hoje a cerca de 50% das famílias brasileiras, uma taxa bem inferior à dos anos 1980, quando correspondia a 66%. Vários fatores estão envolvidos nessa redução, como a diminuição do percentual de casais com filhos (de 57,6% para 49,8% entre 1995 e 2005, segundo o IBGE) e o aumento do número de divórcios e separações e dos chamados arranjos monoparentais, ou seja, lares formados apenas por mães ou pais e seus filhos.

“Hoje vemos novos arranjos, gays e lésbicas que adotam ou pessoas solteiras que adotam ou criam uma criança da família, porque a família vai mudando. Tem gente que morou um tempo com os pais, um tempo com a avó, tiveram agregados morando junto, um tio, um parente, tudo isso foi alterando os arranjos familiares”, diz Heloísa Buarque de Almeida, antropóloga da Universidade de São Paulo (USP) especializada em gênero e família. Segundo Heloísa, todos que ajudam na criação das crianças podem ser considerados parte do grupo. “Nas classes populares as crianças circulam; na classe média você tem a empregada doméstica, a avó que busca e leva, uma rede de pa­rentes que não moram junto, mas fazem parte do apoio.”

Para a antropóloga, a ideia de que família deve ser formada por um pai, uma mãe e filhos é um ideal de sociedades urbanas do século 20 que se tornou senso comum, mas não necessariamente representa a realidade, e sim um modo de consumo. “É um ideal de mercado, quando os arquitetos desenham modelos de casas para as pessoas morarem, é o que eles imaginam. E está em uma estrutura social múltipla: na religião, no atendimento médico (no hospital sempre perguntam quem é o pai e quem é a mãe), na mídia, na novela, na propaganda, inclusive no poder, é o ideal de um juiz por exemplo”, diz Heloísa.

Jéssica Pellegrini, estudante de 23 anos, foi criada pela avó e pela madrinha, apesar de conviver também com a mãe e o irmão, que moram perto. Ela tem um arranjo não tradicional de família e não sofre preconceito por isso, mas é completamente contra o PL 6583/2013. “A sociedade impõe muitos padrões desnecessários; o amor não é um homem e uma mulher, é um sentimento. Independentemente de ter filhos ou não, as pessoas merecem respeito.”

Laura Castro tem total apoio dos parentes quanto a seu arranjo familiar, mas teme pelo significado do projeto de lei. “O estatuto não ameaça só as famílias homoafetivas, é tão restrito que eu conto nos dedos quem se encaixa nessa definição. Fazem isso como se fosse possível legislar sobre famílias.”

MAIS AMOR, POR FAVOR

Assim como Laura, muitos casais gays sentem-se atacados pelo projeto. “O estatuto é um absurdo pela falta de amor, porque é não conseguir ver o outro. Que mal fazemos a alguém? Nenhum. Se essas mesmas pessoas que vivem de nos maldizer visitassem um abrigo e apadrinhassem uma criança, elas não sofreriam tanto”, diz Marcos Paulo Felício da Silva, supervisor fiscal e pai de Anthony com o marido Robson.

Lucimar Quadros, bancário de 49 anos, concorda que o estatuto prejudica apenas as crianças, que precisam de ajuda. Com seu companheiro, Rafael Gerhadt, ele adotou João, um bebê rejeitado por dois casais heterossexuais, e se tornou o primeiro homem homossexual a conquistar o direito à licença-maternidade no Brasil. “Embasamos nosso pedido em cima da Constituição Federal. Se todos nós somos iguais perante a lei, e a mulher tem direito de cuidar do filho, o homem também tem”, afirma Lucimar. “João nos abraça com força, aperta as duas cabeças e diz com orgulho: ‘Eu tenho dois papais’. Damos uma boa educação, conceito de respeito e humanidade e muito amor para o João. Ele é uma criança tão bacana. Essas pessoas que estão querendo inventar estatuto nem sabem como a gente vive”, diz.

Em uma palestra no TED, o premiado escritor americano Andrew Solomon falou sobre amor e aceitação, contando um pouco de sua história pessoal – ele vive com o marido e um filho biológico gerado em parceria com uma amiga lésbica. Solomon passou dez anos entrevistando pais que lidam com filhos excepcionais para escrever o livro Longe da árvore: pais, filhos e busca da identidade (Companhia das Letras), e concluiu que são as diferenças e a negociação das diferenças que unem as pessoas. “Há gente que pensa que a existência da minha família de alguma forma denigre, enfraquece ou prejudica suas famílias. E há gente que pensa que famílias como a minha não deveriam existir. Eu não aceito modelos subtrativos de amor, apenas modelos aditivos. Acredito que, assim como precisamos de diversidade de espécies para garantir que o planeta continue a existir, também precisamos dessa diversidade de afeto e de família para reforçar a ecosfera de bondade”, afirma.

Matéria publicada na Revista Galileu , em 28 de maio de 2015.

André Henrique de Siqueira comenta*

Qual é o limite do Estado? Até onde vai a competência do governo para legislar? Qual a abrangência da liberdade individual? - são perguntas que emergem quando refletimos sobre a proposta do Projeto de Lei 6583/2013, de autoria do Deputado Federal Anderson Ferreira (PR/PE), que dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências.

O artigo segundo do PL-6583/2013, estabelece que:

Art. 2º - Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

No projeto, pela definição, restringem-se os arranjos familiares àqueles concebidos sobre as bases biológicas da reprodução. O núcleo social reconhecido pelo estado como família, excluí - para citar um um exemplo - os avós que cuidam dos netos como filhos.

Neste comentário, apresentam-se considerações sobre a natureza da família, sua função e relação com o Estado tendo por referencial de raciocínio o arcabouço conceitual do Espiritismo, conforme codificado por Allan Kardec. Não o fazemos por interesse dogmático ou imposição ideológica, mas por acreditar que o pensamento espírita tem a contribuir com a discussão, pela introdução da dimensão espiritual em torno do tema.

1. A natureza do Ser e o papel da sociedade.

A conceituação espírita para o indivíduo coloca-o na condição de entidade sujeita ao progresso pela assimilação das Leis Naturais. Tal processo se desenvolve através da ampliação do conhecimento, da capacidade de equilibrar os sentimentos e da ação efetiva que transforma a si mesmo e ao ambiente em que vive. Reconhecendo a adaptação como Lei de Progresso, o Espiritismo considera a imortalidade da alma como processo natural de ajustamento do Espírito ao ambiente universal, regido pelas Leis Divinas ou Naturais, e destaca a Vida como processo de adaptação da Inteligência Imortal às condições impostas pela Providência Divina.

Nesta conceituação, a vida em sociedade é bendita oportunidade de ajustamento do ser às lições que somente pode apreender com a presença do outro, de sua alteridade e necessidades próprias, decorrentes da convivência.

Viver em sociedade é convite ao ajustamento de valores, ao aprendizado de ações colaborativas em que inteligência e sentimento se desenvolvem no longo percurso de interações ora construtivas, ora destrutivas, das quais emerge o Ser ajustado aos parâmetros dignificadores da Justiça, da Liberdade, da Igualdade, da Fraternidade.

No entendimento espírita, o papel da sociedade é contribuir para a educação intelectual e moral do indivíduo, desenvolvendo-lhe valores e expondo-o aos desafios que lhe farão progredir afetiva e racionalmente. Os problemas sociais constituem-se ou provas - nas quais avalia o progresso auferido, ou expiações - pelas quais se vai corrigir os erros anteriormente cometidos. Provas e expiações sociais desenham trajetórias de progresso nas quais o Espírito constrói a si mesmo, com o auxílio das comunidades em que labuta.

2. A necessidade da vida social e o papel da família.

Sendo a vida social uma experiência indispensável para o progresso, a família - como núcleo social primeiro - é o instrumento pelo qual a vida desenvolve as primeiras noções de valores, os primeiros referenciais de raciocínio, de atitudes, de hábitos morais. A família se torna a primeira experiência social para o progresso do indivíduo. Nela se herdam os valores e constroem-se os conflitos fundamentais dos quais resultarão os passos necessários para o progresso social.

Na família estabelecem-se as referências de raciocínio e os modos de ação que possibilitarão a assimilação da cultura e a crítica  dela. Cria-se o espaço da linguagem e a possibilidade de pensar e agir com vistas à adaptação e ruptura moral, as quais de realizam através de diálogos teóricos e práticos, entre o indivíduo e a sociedade em que vive.

O resultado geral da vida social é o progresso do Espírito, intelectual e moralmente.

3. A natureza da Família e suas contribuições na educação moral.

Mas qual é natureza da Família? Em que se constituí este instrumento de aculturamento e educação? Quais os seus componentes?

A família possui uma extensão bio-psico-sócio-espiritual.

A familia biológica é aquela de quem herdamos o patrimônio físico oferecido pela herança genética. Caracteriza-se, deste modo, pelo ascendentes genéticos dentro dos quais fomos constituídos. Kardec lhe denomina adequadamente de parentela corporal. São os genitores biológicos e suas linhagens familiares.

A dimensão psicológica da família caracteriza-se, por outro lado, pela influência que o infante recebe na formação de sua personalidade. Constitui-se de todos aqueles que influenciam decisivamente para o seu modo de pensar, de sentir e de agir. Estende-se para todos aqueles que cuidam da criança, que formam os seus referenciais de afeto, que influenciam na formação de suas crenças fundamentais, dos exemplos que assimilará como indicativo de conduta primária; e que depois serão convertidos em objetos de crítica, como elementos de saudável conflito - quando o período da adolescência convida a personalidade a contrastar os valores que assimilou àqueles outros que lhe são mostrados em diferentes grupos sociais - para além dos limites da família psicológica.

A família social é um arranjo cultural que varia conforme avança a sociedade humana. Há tempos atrás referia-se a todo o clã reunido em torno de um patriarca ou matriarca. Desdobrou-se para envolver todos os componentes que compartilhavam a mesma morada. No período pós-revolução industrial, consolidou-se como um núcleo dos genitores biológicos e sua prole. Na contemporaneidade configurou-se como um arranjo afetivo em que participam todos os agentes diretamente envolvidos no aculturamento, educação e convivência - ora eleitos, ora impostos, pelas circunstâncias econômicas, éticas ou legais.

Espiritualmente a família se caracteriza pelas eleições afetivas, pela sintonia e afinidade que permitem reunir ou que gozam de interesses comuns e de atrações afetivas em vistas do bem estar e progresso dos que nela estão envolvidos para oferecerem suas contribuições para a grande família universal.

4. O estado, a liberdade e o progresso da legislação humana.

A proposta apresentada pelo Projeto de Lei 6583/2013 tem efeito sobre o reconhecimento de determinados arranjos sociais como família. Mas constituem mera referência legislativa a uma das dimensões da família. Em seu conteúdo, desconhece outros arranjos afetivos, econômicos, psicológicos e espirituais que efetivamente se configuram como família.

Cabe à própria sociedade criticar suas escolhas legislativas para assegurar os melhores arranjos rumo à constituição de uma sociedade justa. Entretanto, ignorar a existência de arranjos familiares para além das dimensões biológicas (que se caracterizam pelo genitores) é retroceder diante dos fatos da atualidade que demonstram outras possibilidades de construção para o afeto, para a colaboração, para a construção dos núcleos afetivos em que os indivíduos se realizam em suas construções de si mesmos e contribuições sociais.

A liberdade de escolha é o resultado do conhecimento. E com o conhecimento desenvolve-se a possibilidade das escolhas e das ações em prol de melhores direitos, de melhores oportunidades, de mais justas diretrizes para o crescimento social. Sempre que o Estado, como guardião dos interesses coletivos, invadir o terreno das liberdades individuais resultará uma tensão entre os satisfeitos e os insatisfeitos. Tensão que o tempo corrigirá, ou pelas vias maduras do ajustamento legislativo, ou pelas profundas transformações que a moral sofre quando do acolhimento populacional. Não se trata de um debate entre progressistas e conservadores, entre religiosos e pragmáticos, trata-se de um conflito entre o real e o imaginário, entre o desejável e o necessário. E a solução - a história nos mostra - virá sempre na forma de mudança, fazendo legal o que for mais adequado para o progresso humano, leve um dia, ou séculos… A realidade vencerá.

  • André Henrique de Siqueira é bacharel em ciência da computação, professor e espírita.