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Como surge a descoberta científica? Qual a sua origem? Físico-filósofo francês aborda discussão sobre o papel da criatividade e da intuição, orientadas pela racionalidade, na produção científica. Para ele, entender o processo da descoberta pode ser o maior desafio da filosofia da ciência. Claudio Conti comenta.

  • Data :28/06/2014
  • Categoria :

30 de junho de 2014

A ciência criativa

Físico-filósofo francês aborda discussão sobre o papel da criatividade e da intuição, orientadas pela racionalidade, na produção científica. Para ele, entender o processo da descoberta pode ser o maior desafio da filosofia da ciência.

Por: Marcelo Garcia, Ciência Hoje On-line

Como surge a descoberta científica? Qual a sua origem? E qual o papel da criatividade nesse processo, no próprio avanço da ciência? Tais indagações, que inquietam e instigam a filosofia da ciência, certamente não têm respostas fáceis ou definitivas, mas podem ajudar a expandir nosso entendimento sobre o próprio fazer científico e sobre a trajetória da ciência nos últimos séculos. Para o físico, filósofo e historiador da ciência francês Michel Paty, diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional para a Pesquisa Científica (CNRS, do francês), há na ciência lugar para a invenção e a intuição, orientadas pela racionalidade.

Em palestra no Colégio Brasileiro de Altos Estudos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o francês abordou, em um português simpático e cheio de sotaque, as mudanças no entendimento filosófico sobre a ciência nos últimos 200 anos. Ele recordou as inovações da ciência que ainda no século 19 afrouxaram o laço entre matemática e natureza, mostrando a distância entre experiência e abstração teórica.

Naquela época, criações como a geometria não euclidiana, que não corresponde à ‘evidência’, e teorias físicas matematizadas e abstratas em eletricidade e magnetismo teriam tornado mais claro o papel da invenção na construção da ciência, segundo Paty. “Apesar disso, na segunda metade do século 20, a concepção da ciência continuava a se basear, de maneira dominante, nas ideias herdadas do empirismo lógico, e a filosofia não estudava, em geral, o processo de descoberta, que ainda parecia dominado pela subjetividade e alheio à racionalidade”, afirmou.

Apesar dessa predominância, o francês destacou que a aproximação entre criatividade e processo científico foi estudada por grandes cientistas e filósofos do século 20 – em especial dois deles, Henri Poincaré e Albert Einstein, cujos trabalhos estudou ao longo da carreira. “Ambos concebiam a descoberta de novidades relacionadas ao conhecimento objetivo como fruto da capacidade de invenção da mente, baseada numa intuição racional que escapa às formas usuais do raciocínio, como a dedução lógica”, disse. “Dessa forma, mesmo que nem sempre seja possível observar as linhas de raciocínio, chega-se a um resultado racional”, analisou.

Nesse contexto, a invenção teria seu lugar assegurado na ciência. Fundamental, a criatividade seria, sim, pessoal (relacionada ao pensamento de sujeitos individuais), mas orientada pela racionalidade – que, por sua vez, não se identifica com a pura e simples lógica. Segundo Paty, essa criatividade seria parte fundamental do processo de elaboração dos conhecimentos científicos e deve ser levada em conta tanto pela filosofia quanto pela história da ciência.

Confira uma entrevista concedida à CH On-line pelo físico e filósofo francês:

CH On-line : O senhor é físico e filósofo, duas áreas que buscam compreender o mundo. Há uma relação natural entre elas?

Paty: Esses dois campos sempre foram próximos. Desde a Antiguidade, muitos físicos, muitos cientistas também eram filósofos, se debruçavam sobre as questões do mundo pelas duas vias. Foi só a partir do século 18 que essa separação começou a aparecer de maneira nítida, aliás, proposital, para assegurar a autonomia da ciência e da filosofia. Mas ela não é total. Se tomarmos o exemplo da cosmologia contemporânea, é impossível negar as questões filosóficas que a área suscita. A constituição da matéria, a presença da vida no universo, o surgimento de uma inteligência como a nossa nesse universo tão grande, a dúvida sobre estarmos sozinhos nele… São questões naturais, que se originam da nossa própria capacidade de indagação, tão própria da ciência.

Houve uma época em que me dediquei totalmente à física, especialmente ao estudo dos neutrinos, que hoje são famosos, mas naqueles tempos eram novidade. E é lógico que eu me colocava questões de natureza filosófica, que o conhecimento objetivo não me permitia responder. Essa aproximação mais clara entre filosofia e ciência acontece intensamente nas áreas de fronteira, mas tais questionamentos podem surgir em qualquer campo de investigação – e mesmo da atividade humana em geral.

E como se dá, no seu entendimento, a conciliação da criatividade e da intuição com a ciência? Ela é realmente possível?

Sem dúvida é possível e necessário conciliar criação científica, racionalidade e objetividade. Um conceito científico considerado numa teoria não é isolado, mas solidário a outros conceitos, forma com eles um conjunto cujas relações são mais ricas do que puramente lógicas. A mudança científica se dá pela transformação do conjunto dos conceitos que fazem parte desse sistema.

A história da ciência deixa ver que tais movimentos não são casuais e têm consistência interna, têm uma razão – justificada posteriormente – ligada à exigência de objetividade. São movidos pela racionalidade e, ao mesmo tempo, têm um lado importante de subjetividade. Cada agente humano envolvido tem reações únicas na formulação e resolução dos problemas, o que resulta numa diversidade de ’estilos científicos'.

O conhecimento, então, avança graças a ampliações da própria racionalidade, muito mais do que pela pura lógica, pois elas permitem possibilidades inéditas de relacionar os elementos conceituais considerados. É como se mudássemos as regras do jogo: passamos a enxergar de forma racional o que antes era impensável, hipotético ou pertencia de forma vaga ao campo de ideologias. As mudanças no entendimento do mundo e na própria ciência despertam a intuição racional, que pode ser concebida como uma visão sintética intelectual dos cientistas daquela época para outras possibilidades, que levam a novas descobertas.

Essa valorização da criatividade significa um reforço da figura do gênio, excêntrico, especial, inigualável, tão presente na opinião comum?

Na verdade, não. Esse estereótipo do gênio é fruto de uma visão superficial da ciência. Claro, nem todos, mesmo os mais famosos e bem-sucedidos cientistas, eram criativos como Einstein e Poincaré. As descobertas estão ligadas também a outros fatores, como o pioneirismo num campo ou a momentos sociais bem aproveitados pelo pesquisador. Precisamos tomar cuidado para não cair em certo ‘relativismo’ e ‘reducionismo’ sociológico a respeito do pensamento científico, mas também é inegável a importância de fatores culturais e sociais de cada época. A ciência do século 21 não teria o aspecto que tem não fosse a sua organização social específica. A pesquisa está inserida na história e na história social, não faz sentido separar homem e sociedade.

Em seu trabalho, o senhor já explorou muito as ideias de Einstein e Poincaré a respeito da criatividade, do estilo científico e do papel da invenção na ciência. Fazendo um paralelo com os dias atuais, qual o papel da criatividade e da invenção na ciência contemporânea?

A grande dificuldade para responder a essa pergunta está na forma que a pesquisa científica tomou a partir da segunda metade do século 20. No tipo de ciência que temos hoje em domínios importantes, a big science, o trabalho é muito coletivo e as experiências são de alta tecnologia, tanto na física, na química e na astrofísica quanto na biologia e na neurociência. Há uma enorme mobilização de pesquisadores, instituições, equipamentos e recursos. Parece ser mais difícil perceber aqui uma originalidade de contribuição dos pesquisadores tomados individualmente.

Porém, se olharmos os conhecimentos produzidos por esse tipo de pesquisa, eles não deixam de ter a mesma natureza de quando o trabalho científico era mais individual: são exprimidos como formas simbólicas organizadas racionalmente, como conceitos e teorias, que são inteligíveis não para um coletivo, mas para sujeitos individuais. Ou seja, somos levados a pensar que a produção de ideias também continua a ser individual. Não é o meio coletivo e sua tecnologia que as gera, mas o trabalho mental individual dos participantes. E isso acontece de forma variada, com mais ou menos originalidade e criatividade, e certamente com um ritmo mais intenso de trocas de ideias entre os pesquisadores, de assimilações e de transformações.

Mas há, sem dúvida, um impacto do trabalho coletivo.

Sim, e há eventualmente um reverso da medalha, que seria a eliminação de ideias menos atraentes pela maioria, direções de pesquisas que são, ao menos provisoriamente, esquecidas. Num regime mais individual e lento, essas ideias tinham mais tempo para maturação. O risco aqui é que certo conformismo leve a privilegiar exageradamente uma das direções possíveis. Isso pode ser constatado na minha antiga linha de estudo, a física das partículas, na procura de teorias unificadas onde muitos jovens optam pela mesma direção de pesquisa – aliás, favorecida pelos critérios sociais que orientam as carreiras de pesquisador. É sem dúvida um assunto complexo que merece estudo adequado.

Nesse contexto, a filosofia da ciência tem dedicado a atenção que deveria ao processo criativo na ciência?

De maneira predominante, desde a segunda metade do século 20, a filosofia da ciência se desinteressou do processo criativo do pensamento científico e o rumo atual da pesquisa socializada não vai ajudar muito a retomar esse tema. Mas acredito que os criadores com ideias originais, mais sensíveis a respeito da natureza do pensamento científico e da forma como ele é capaz de reinventar o mundo e incorporá-lo à cultura dos homens, vão continuar a contribuir com suas reflexões nessa área, como fizeram Poincaré e Einstein em seu tempo. E espero que os filósofos da ciência se abram mais a essa dimensão, levando em conta a realidade da ciência tal como ela é e se apresenta.

Além de físico e filósofo, o senhor já atuou como divulgador da ciência. Qual o papel da divulgação e da educação científicas na nossa sociedade?

Como disse, mais do que nunca a ciência impacta diretamente a cultura, a tecnologia e a sociedade, e isso não pode ser ignorado. A educação e a comunicação científicas são fundamentais para que possamos problematizar os avanços atuais. Essa é uma responsabilidade de todos nós. Os cientistas, filósofos, historiadores e sociólogos da ciência precisam promover essa reflexão lúcida e crítica sobre o conhecimento. O conhecimento científico está centrado na racionalidade, visa à objetividade e, por isso, tem vocação à universalidade, pode ser entendido por qualquer um, em princípio. As gerações que estão por vir dependem disso e a miséria e outros fatores que impedem essa disseminação são crimes contra a humanidade.

Uma questão importante é que a divulgação científica nem sempre é bem feita. Se o objetivo é apenas maravilhar o público, isso não necessariamente aproxima a ciência de suas vidas. É preciso que ela seja uma divulgação crítica, que se indague, que estimule a curiosidade e que ensine os porquês das coisas, desfazendo a imagem dogmática da ciência. Outro aspecto que precisa ser problematizado e abordado é que a ciência e a tecnologia no mundo atual estão integradas num sistema econômico e social específico, o que tem suas consequências.

De fato alguns dos mercados mais lucrativos do mundo hoje envolvem diretamente produtos tecnológicos…

Sem dúvida. Primeiro temos que considerar que o acesso à tecnologia ainda é regido por fatores econômicos e a tecnologia não é para todos. Além disso, vamos pensar nas regras que orientam esse mercado, nas motivações que norteiam o desenvolvimento de novos produtos: será que elas se baseiam no esforço pelo avanço da ciência ou no lucro, na concorrência selvagem, responsável por muitos de nossos problemas atuais? O conhecimento sobre a natureza nos dá o poder de transformá-la, mas como orientar esse poder para o bem da humanidade, e não para o lucro de uma minoria? É, sem dúvida, uma questão atual, de grande importância social e ética.

Notícia publicada no Portal Ciência Hoje , em 11 de dezembro de 2013.

Claudio Conti comenta*

A reportagem em análise trata da criatividade no contexto da ciência. Quando se fala em criatividade, muitos acreditam que a elaboração de uma pesquisa científica é diferente do movimento artístico no sentido de que o segundo seria decorrente de processos criativos e, por outro lado, o primeiro seria unicamente decorrente de processos lógicos e racionais. É fácil de entender o porquê deste tipo de pensamento, pois falta uma certa dose de compreensão tanto de um quanto de outro, pois os processos envolvidos não variam muito, ou pelo menos não deveriam.

Ao longo do tempo, o movimento artístico foi baseado em tendências e padrões, haja vista que facilmente, para quem sabe, se identifica os diferentes estilos, tais como barroco, renascentista, gótico, neo-gótico, etc.

Isto significa que as obras de arte tendem a seguir certos padrões em decorrência das tendências nas diferentes épocas e locais. O que ocorre, portanto, é o desenvolvimento de determinado estilo até que, por um processo realmente criativo que vem preencher os anseios do momento, um artista apresenta uma mudança, mesmo que pequena, de paradigma no estilo vigente, surgindo, desta forma, um novo estilo ou um ponto de virada.

Assim, um artista faz uso do desenvolvimento do conhecimento acerca de certa técnica ou tendência. Obviamente que, quando se perde o “fio da meada”, surgem obras denominadas de “arte” sem a expressão do belo. Este fato pode ser decorrente de se acreditar que o artista expressa uma criação pura e simplesmente, sem a necessidade de estudo e entendimento do real significado da sua ocupação. Nesta condição, invariavelmente, se perde o sentido do que realmente significa ser um artista e, consequentemente, também se perde a relação com a significação artística, isto é, o belo.

A ciência, tal qual, também é dependente do momento e local onde se desenvolve. Assim, uma necessidade de outrora foi trabalhada e desenvolvida até que deixe de ser necessária por se tornar obsoleta. A catapulta do tempo das guerras com arco e flecha, por exemplo, foi um marco e trouxe uma grande vantagem para quem as possuía, todavia, atualmente ninguém pensa em guerras utilizando catapultas ou aríetes.

Se pensarmos ainda mais para o passado, podemos citar a invenção da roda e, graças a ela, temos hoje os automóveis dentre inúmeros outros usos.

Portanto, similarmente à evolução artística, a evolução do conhecimento científico é decorrente de contínuo aprimoramento do conhecimento, tanto pessoal quanto coletivo.

Analisando esta questão sob o ponto de vista espiritualista, temos que o espírito imortal adquire conhecimento em suas várias existências, assim, não é necessário iniciar do zero quando encarna. Portanto, podemos dizer que os processos criativos são decorrentes do aprimoramento do conhecimento como espírito, podendo ser, por isso, decorrente de análise e raciocínio sobre temas correlatos.

Carl G. Jung, famoso psiquiatra suíço conhecido como o “pai” da psicologia analítica, dividiu a psique humana em três regiões: o consciente, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo; sendo que a maior parte constitui o inconsciente. Jung disse ainda que processos semelhantes aos que ocorrem no consciente também ocorrem no inconsciente.

Sob este aspecto, nossa vida psíquica é muito mais rica do que imaginamos, pois nosso inconsciente se mantém ativo e produtivo. Assim, os processos criativos podem ocorrer no inconsciente, através de processamento de conteúdos existentes nesta região, podendo estes surgirem no consciente, especialmente quando mantemos nosso interesse em determinado assunto.

Além deste fator, podemos considerar, ainda, as experiências com espíritos desdobrados durante o sono, período em que nos mantemos ocupados com experiências correlacionadas com os nossos interesses. Desta forma, o que aprendemos nestas situações pode surgir no consciente quando despertos, passando a ser considerado como “criação”.

  • Claudio Conti é graduado em Química, mestre e doutor em Engenharia Nuclear e integra o quadro de profissionais do Instituto de Radioproteção e Dosimetria - CNEN. Na área espírita, participa como instrutor em cursos sobre as obras básicas, mediunidade e correlação entre ciência e Espiritismo, é conferencista em palestras e seminários, além de ser médium pscógrafo e psicifônico (principalmente). Detalhes no site www.ccconti.com .