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Elas são conhecidas como as ‘mulheres-mula de Melilla’. São mulheres que, todos os dias, carregam cargas pesadas através da fronteira entre o pequeno enclave espanhol, situado no norte da África, e o Marrocos. Carlos Miguel Pereira comenta.

  • Data :06/03/2014
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6 de março de 2014

‘Mulheres-mula’ fazem transporte de carga entre Espanha e Marrocos

Linda Pressly da BBC em Melilha

Elas são conhecidas como as “mulheres-mula de Melilla”. São mulheres que, todos os dias, carregam cargas pesadas através da fronteira entre o enclave espanhol e o Marrocos.

Melilla, pequeno território encravado na costa norte do Marrocos, é um importante ponto de entrada de produtos no norte da África.

Produtos que entram sendo carregados por uma única pessoa são classificados como bagagem pessoal, e entram isentos de taxa alfandegária. Daí o surgimento da atividade, que virou o ganha-pão de várias mulheres marroquinas sem outra alternativa de renda.

Na luz do sol da manhã, há uma nuvem de poeira próxima a grade de cerca de 6 metros de altura que separa Melilla do Marrocos. A poeira sobe com a atividade frenética dos comerciantes preparando mercadorias para cruzar a fronteira.

Há roupas de segunda mão, rolos de tecido, produtos de higiene e utensílios domésticos, tudo vindo da Espanha e destinado à mercados no Marrocos e além. Há milhares de pessoas aqui e o barulho é ensurdecedor - uma cacofonia de motores acelerando e vozes.

Fardos enormes estão por toda parte, todos embrulhados em papelão e pano presos com fita adesiva e corda. E sob os imensos fardos, escondidas e encurvadas pelo tamanho de suas cargas, estão as mulheres marroquinas, as “mulheres-mula” de Melilla, conhecidas localmente como porteadoras .

Mães solteiras

Esse comércio ocorre todos os dias no Barrio Chino, na fronteira entre Melilla e o Marrocos, por onde só passam pedestres. As “mulheres-mula” têm o direito de visitar Melilla porque vivem na província marroquina vizinha de Nador, mas não podem residir no território espanhol.

Latifa reivindica seu lugar em uma das turbulentas filas compostas por centenas de mulheres, e deixa cair sua carga de 60 kg de roupas usadas. Ela vem fazendo este trabalho há 24 anos e será paga três euros (R$ 9) para o transporte de seu fardo até o Marrocos. Mas este não é um trabalho que ela escolhe fazer.

“Eu tenho uma família que precisa comer,” ela explica. “Eu tenho quatro filhos, e não tenho um marido para ajudar. Eu me divorciei porque ele batia em mim.”

E então, a fila anda e Latifa desaparece em um mar de mercadorias.

Muitas das mulheres que trabalham como porteadoras são divorciadas ou separadas, como Latifa, mães solteiras que têm que prover para suas famílias. A vida na sociedade tradicional do Marrocos é difícil para essas mulheres, e geralmente esse é o único trabalho que elas conseguem. Algumas delas fazem três ou quatro viagens por dia através da fronteira, carregando até 80kg.

As remunerações variam, e as mulheres reclamam que precisam pagar propina a guardas do Marrocos.

Debate

Em Melilla, há um debate sobre se este tipo de comércio deveria ser coibido.

“Essas são mulheres que estão arriscando suas vidas. Houveram mortes em consequência desse tipo de trabalho físico com condições de semiescravidão,” diz Emilio Guerra, do partido político Union Progresso y Democracia. “O que nós gostaríamos é que elas trabalhassem sob condições que não fossem precárias.”

Por fim, ele acredita que Melilla deve mudar seu modelo econômico, e se tornar menos dependente no comércio.

Porém o consultor de negócios para o governo local de Melilla, Jose Maria Lopez, discorda.

“Há resultados muito positivos dessa atividade comercial. Para algumas das porteadoras é a única chance que elas têm de ganhar a vida. De fato, é realmente um trabalho árduo, mas algumas delas conseguem uma renda que é maior do que o rendimento médio dos trabalhadores no Marrocos.”

E os benefícios desse tipo de comércio para milhares de outros marroquinos e suas famílias, aqueles que vendem os produtos em suas lojas, ou exportam para outros países ao sul, são enormes.

Lopes estima que esse comércio informal gere cerca de 300 milhões de euros por ano para Melilla, e diz ser algo “atípico”. Outros chamam de contrabando, e acreditam que a atividade gere o dobro desse valor.

Concorrência

De volta ao Barrio Chino, há uma sensação de semi-histeria no ar. Os portões fecham ao meio-dia, e as mulheres correm contra o tempo para entregar a carga no Marrocos e retornar para a próxima remessa.

“Está um pouco mais calmo hoje”, diz Arturo Ortega, um oficial com a Guarda Civil encarregado de manter a ordem e impedir avalanches humanas que geram sérios riscos à porteadoras .

“Se você vier aqui todos os dias, você começa a pensar que o que você vê é normal. Mas não é normal.”

Hasna está encostada em uma grade, sem qualquer pacote. Na frente dela está uma multidão de homens jovens, todos eles carregados.

“Os homens estão tomando nossos lugares”, ela reclama. Tradicionalmente, os portadores têm sido as mulheres. Agora, elas enfrentam a concorrência dos homens desempregados marroquinos, e Hasna está tendo dificuldade em atravessar a multidão para pegar seu fardo.

Ela tem um filho e um marido doente. E está grávida de seis meses. Mas isso não a impede de trabalhar.

“Se eu fizer uma viagem hoje, eu vou ser paga cinco ou seis euros”, diz ela. “Se eu pudesse encontrar outro emprego limpando casas ou cozinhando, eu não estaria fazendo isso. Mas, no momento, não há nenhum outro trabalho.”

Indignação

Quem observa os homens também é Maria. Ela se destaca porque está apoiada em uma muleta.

Maria, diferente da maioria das porteadoras , fala um pouco de espanhol. Ela explica que feriu a perna quando caiu na fila - ela também teve um tumor na mama. Maria esteve aqui durante toda a manhã, mas com o caos no Barrio Chino, ela não se sente bem o suficiente para trabalhar. Hoje, ela vai voltar para casa sem ganhar nenhum dinheiro.

Maria vive do outro lado da fronteira de Melilla, em Beni Enzar. Ela tem dois quartos que divide com suas três filhas. Não há água corrente - um vizinho deixa ela usar uma torneira em sua casa.

Maria era casada e trabalhava como garçonete. Mas há quatro anos, sua vida começou a se desfazer. Depois de ter sido diagnosticada com câncer, o marido a deixou. Na época, Maria estava grávida de sua filha mais nova, Malak.

“O médico disse que eu iria perder o bebê com o tratamento, mas ela nasceu viva. É por isso que eu dei o nome de Malak, que significa anjo.”

Enquanto Maria fala, suas duas filhas mais velhas escutam. Nenhuma está na escola – elas ficam em casa para cuidar de sua irmã mais nova enquanto a mãe está no Barrio Chino. Elas se preocupam com a mãe.

“Esta não é a primeira vez que ela machucou a perna, e o médico disse que ela não deve levar nada pesado”, diz Ikram de 16 anos. “Ela só trabalha como porteadora para que possamos comer.”

Maria está indignada com a ideia de que suas filhas podem ser forçadas a se tornarem porteadoras também. “Seria melhor para elas casarem”, diz ela. “É um trabalho perigoso e não há dignidade. Odeio esse trabalho, mas eu preciso dele.”

E então Sanaa, de 13 anos, coloca um pequeno skate sobre a mesa. Maria sorri. Essa prancha de madeira com rodinhas vai ajudá-la a carregar a mercadoria mais facilmente em suas viagens de Barrio Chino através da fronteira.

Notícia publicada na BBC Brasil , em 4 de novembro de 2013.

Carlos Miguel Pereira comenta*

*“Sem o trabalho, o homem permaneceria na infância intelectual; eis porque ele deve a sua alimentação, a sua segurança e o seu bem-estar ao seu trabalho e à sua atividade.” * – Questão 676 de “O Livro dos Espíritos” de Allan Kardec.

O trabalho possui um papel indispensável na vida humana. Outrora encarado como um castigo imposto por um poderoso senhor aos ignorantes, submissos e escravos, hoje sabemos o quanto o trabalho representa não apenas como meio de subsistência mas também como elemento de socialização, de equilíbrio psicológico, de estruturação da identidade e de criação de ritmos quotidianos. Analisado a partir de uma perspectiva mais abrangente, podemos concluir que o trabalho também se constitui como um indispensável fator de desenvolvimento da inteligência e de crescimento espiritual.

No seu artigo XXIII, ponto 1, a Declaração Universal dos Direitos Humanos refere: “Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.” Infelizmente, tal como muitos outros, este é um direito pouco respeitado nos nossos tempos.

A história da exploração da miséria, da fragilidade e da pobreza é quase tão antiga como a espécie humana. Mas se outrora os mais poderosos obrigavam os mais desprotegidos a trabalhar pela força do chicote, hoje os meios são mais sutis, mas não menos eficazes. Não falamos apenas das pessoas que são forçadas a exercer uma determinada atividade contra sua vontade, sob as mais diversas ameaças, e que constitui a abjecta escravatura moderna na qual se estima possam estar acorrentadas cerca de vinte milhões de pessoas. Existem muitos mais milhões de outras pessoas que, por dependência social, são coagidas a manter atividades que atentam contra a dignidade humana. Numa sociedade em que o lucro é o “Summum bonum” do negócio e onde os mais básicos princípios éticos são moldados às cruas necessidades econômicas, as pessoas mais frágeis, com menos educação, que vivem abaixo do limiar da pobreza e sem as condições mínimas de sobrevivência, são um recurso empresarial precioso para reduzir o custo do produto final. A incerteza e a precariedade em que vivem são tão grandes, que elas se dispõem a aceitar qualquer espécie de trabalho em troca de remunerações ridículas, fracos vínculos laborais e sem proteção social. É verdade que possuem um trabalho, mas a que preço? Sem dignidade, sem escolha, sem condições justas e sem proteção contra o desemprego. Esta é uma realidade que se tem alastrando nos países desenvolvidos, mas que atinge o seu ponto mais indecente em países africanos e asiáticos. Os empregadores, cedo ou tarde, responderão perante si mesmos pelo egocentrismo e pela cegueira ética e moral que evidenciam, mas e nós consumidores? E nós, cidadãos deste mundo, lavaremos as mãos?

Saber que no nosso país existem pessoas sendo exploradas, ou que em Marrocos há mulheres que ganham a sua vida suportando cargas que as vergam em ângulos de 90 graus ao longo de vários quilômetros, ou que no Bangladesh existem milhões de pessoas que trabalham mais de 16 horas seguidas amontoados em armazéns sem condições de higiene para que os tênis e as camisas desportivas das grandes multinacionais cheguem à Europa e à América a preços competitivos, deveria provocar-nos indignação.

E essa indignação só é boa se ela for capaz de produzir mudanças. Como consumidores, temos a obrigação de verificar se as empresas a quem adquirimos produtos respeitam as leis laborais, cumprem de forma ética a sua responsabilidade social. Como cidadãos, temos o dever de exigir que os nossos governantes apostem na educação, mas também de fomentá-la em todos os lugares em que nos encontramos, desde a família até a nossa comunidade. A educação transformadora é a maior contribuição que o Espiritismo pode dar à nossa sociedade. Para implantarmos a Nova Era que tanto desejamos, precisamos formar os homens que a habitarão. Educar e preparar o Homem do futuro é uma tarefa inadiável de todos nós que exige o empenho de todos.

Ao lavarmos as mãos, fecharmos os olhos e calarmos as indignações que crepitam em nossa alma, estaremos a ser coniventes com estes atropelos à dignidade humana. Devidamente motivadas pelo combate à injustiça e erguendo-se para defenderem o que é certo, são as pessoas comuns que possuem a capacidade para mudar o mundo e elevá-lo a um outro patamar na escala evolutiva.

  • Carlos Miguel Pereira trabalha na área de informática e é morador da cidade do Porto, em Portugal. Na área espírita, é trabalhador do Centro Espírita Caridade por Amor (CECA), na cidade do Porto, e colaborador regular do Espiritismo.net.