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O livro ‘Treinando uma Criança’, com conselhos para pais que defende surras em crianças com cintos e galhos, faz sucesso há anos entre evangélicos conservadores radicais nos EUA, com centenas de milhares de cópias já vendidas. Jorge Hessen comenta.

  • Data :14/02/2014
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14 de fevereiro de 2014

Manual que defende surras para controlar filhos gera polêmica nos EUA

Aidan Lewis BBC News em Washington

Um livro com conselhos para pais que defende surras em crianças com cintos e galhos faz sucesso há anos entre evangélicos conservadores radicais nos Estados Unidos, com centenas de milhares de cópias já vendidas.

Mas agora a morte de três crianças filhas de pais supostamente influenciados pelo livro provocou críticas aos autores e deu início a uma campanha para bani-lo de livrarias.

O livro To Train Up a Child (“Treinando uma Criança”) – do pastor Michael Pearl e sua esposa Debbie – descreve em minúcias as punições consideradas ideais em cada caso. Para crianças malcomportadas com menos de um ano, o livro sugere uma régua de 30cm ou um galho pequeno de chorão. Para crianças maiores, galhos maiores ou cintos.

O objetivo da surra é submeter as crianças às vontades dos seus pais.

“Treinar é condicionar a mente da criança antes que surja uma crise; é uma preparação para obediência futura, instantânea e sem questionamentos”, afirma o primeiro capítulo do livro.

O “treinamento” começa cedo na vida da criança. Caso ela seja muito malcomportada, os autores sugerem que os pais “usem toda a força necessária para vencê-los”.

“Se você precisar sentar em cima dela para bater nela, não hesite. E segure ele nessa posição até que ele se renda. Derrote-o completamente”, afirma o livro.

Galhos quebrados

Hannah (nome falso) cresceu em uma comunidade de cristãos batistas no noroeste do Estado da Flórida. Seus pais leram o livro do casal Pearl quando ela tinha nove anos de idade, e sua irmã, sete.

Pouco depois disso, ela começou a apanhar. Isso durou por mais oito anos. Nos primeiros cinco anos, as surras aconteciam com muita frequência – várias vezes ao dia.

Houve uma vez em que o pai de Hannah ficou sabendo de uma briga da filha na escola, quando ela tinha 14 ou 15 anos.

“Eu nem sei exatamente do que estavam me acusando, mas meu pai simplesmente perdeu a cabeça”, conta Hannah.

Ele usou réguas e paus para bater na filha, chegando a quebrar cinco galhos durante a surra. A sua mãe mantinha galhos nos armários, já que eles quebravam com as surras e precisavam ser substituídos.

“Nas semanas seguintes, eu não conseguia sentar direito [devido à dor] e ele me dizia ‘pare de fazer melodrama, o que há de errado com você?’ Minha mãe me examinou e [a região próxima ao meu cóccix] estava ferida e inchada.”

Hoje aos 20 anos, Hannah conta que seu pai ficou tão chocado que nunca mais bateu na filha. Mas a mãe continuou com a prática, usando um pedaço de plástico que deixava menos marcas na pele.

Para Hannah, seus pais foram iludidos com a sugestão dada pelo livro de Pearl de que uma simples fórmula é capaz de controlar as crianças.

“O problema é que [Pearl] diz que você precisa ‘quebrar’ seus filhos. E para chegar nesse ponto é preciso ser completamente tirânico.”

800 mil cópias

To Train Up a Child é considerado nos Estados Unidos um dos livros mais radicais sobre educação conservadora.

Publicado em 1994 por uma organização não-governamental chefiada por Michael Pearl no Estado do Tennessee, o livro trata o ambiente escolar como nocivo às crianças, por não ser suficientemente religioso.

A entidade disse ter arrecadado US$ 1,5 milhão no ano fiscal de 2012 a 2013. O livro foi responsável por 60% desta receita. A organização trabalha ativamente na promoção do livro, enviando cópias para soldados americanos no Iraque e no Afeganistão.

Segundo o pastor, mais de 800 mil cópias foram vendidas. Nos últimos anos, a vendagem se manteve estável, mesmo após críticas feitas na imprensa.

“Nós temos vários milhões de pessoas muito felizes e pais contentes e crianças que perceberam os ótimos e maravilhosos frutos do livro e de outras coisas que escrevemos”, diz Pearl.

Mortes e campanha

Em 2010, a menina Lydia Schatz morreu no Estado da Califórnia após ser espancada pelos pais. No ano seguinte, a jovem Hana Williams morreu de hipotermia e inanição, depois de ter sido aprisionada em um jardim de uma casa no Estado de Washington.

Os pais de Schatz estão cumprindo pena de prisão, depois de terem se declarado culpados de crimes como assassinato e tortura. Já os pais de Williams foram condenados em outubro a décadas de prisão por homicídio.

Os investigadores dos dois casos disseram que cópias do livro To Train Up a Child foram encontradas nas casas das duas famílias.

O promotor Michael Ramsey, encarregado pelo caso Schatz, disse que os pais não estão isentos de responsabilidade no assassinato da filha, mas acusou o livro de influenciar negativamente as pessoas a se comportarem desta forma.

Um terceiro episódio em que o livro foi acusado de influenciar pais ocorreu na Carolina do Norte, onde uma criança morreu sufocada pela mãe, que usou um cobertor.

Nos três casos, as crianças receberam surras com artefatos de plástico exatamente como os descritos por Michael Pearl em seu livro.

Mas o autor nega que To Train Up a Child possa provocar abusos deste tipo, dizendo que o livro é contra brutalidade ou contra a violência como forma de liberar raiva.

“Nenhum tribunal, polícia ou agência de proteção à criança jamais nos acusou de fazer qualquer coisa que coloque em risco a vida de crianças”, diz ele.

Mas críticos condenam os métodos descritos no livro e dizem que eles podem incentivar abusos.

Um professor de psicologia da Universidade Metodista de Dallas, George Holden, lançou uma campanha na internet pedindo à Amazon e outras lojas de livros que parem de oferecer To Train Up a Child em seus catálogos.

Um abaixo-assinado em apoio a esta campanha já angariou 200 mil assinaturas e teve repercussões fora dos Estados Unidos. Duas grandes cadeias de livrarias na Grã-Bretanha – a Waterstones e a Foyles – já anunciaram que retiraram o livro de seus catálogos ou pararam de acumular estoques.

Mas a Amazon deu sinais de que não vai mudar sua política.

“Este livro foi amplamente debatido na imprensa e na Amazon por anos, e qualquer um que queira expressar seus pontos de vista sobre este título está livre para fazê-lo na página do produto em nosso site”, disse a Amazon, em uma nota à imprensa.

Notícia publicada na BBC Brasil , em 11 de dezembro de 2013.

Jorge Hessen comenta*

O livro “To Train Up a Child” (Treinando uma Criança), de autoria do pastor Michael Pearl e sua esposa Debbie, é uma espécie “manual de punição” que defende “sovas” para correção dos filhos malcomportados. Os conteúdos versam sobre “surras” com a utilização de cintos, varas e outros apetrechos correlatos, descrevendo em detalhes os castigos considerados ideais em cada caso.(1) O casal propõe o método da “coça” a fim de condicionar a mente da criança antes que surja uma crise; é uma preparação para obediência futura, instantânea e sem questionamentos.(2) Todavia, em face da morte de três crianças, filhas de pais supostamente influenciados pelo livro, tem havido fortes reações de represália contra os autores através de campanhas populares, visando banir tal livro das livrarias americanas.

Recentemente uma brasileira foi condenada a nove meses de prisão, na Espanha, por expulsar de casa, por um dia, o seu filho de 15 anos. A sentença recebeu destaque nos principais jornais e TVs espanholas. Nossa conterrânea alegou que agiu assim porque pretendia dar uma lição mais “forte” no filho, que é problemático, desobediente e muito agressivo. Sua intenção era ensinar-lhe regras sociais e respeito pela mãe. Para a juíza, do Tribunal Penal de Málaga, a atitude da brasileira representa uma negligência e um delito de abandono temporário, motivo pelo qual a condenou, explicando que, embora o menor se encontre em plena adolescência, com os conflitos comuns da idade, isso não é razão para colocá-lo fora de casa, deixando-o à intempérie na rua, por uma noite, porque essa decisão cria uma situação de risco para o menor.

Toda e qualquer violência doméstica é trágica sob qualquer análise. As relações entre filhos e pais deveriam ser, acima de tudo, de ordem ética. Mas, observa-se nessa relação uma deterioração emocional profunda e uma complexa malha de desestabilidades morais, que merece comentários. Os pais devem estar sempre atentos e, incansavelmente, buscando um diálogo franco com os filhos, sobretudo, amando-os, independentemente de como se situam na escala evolutiva.

Sabe-se que os jovens hostis e violentos são pouco amados pelos pais, sentem-se deslocados no grupo familiar ou se consideram pouco atraentes, etc. Por estas e muitas outras razões, os pais devem transmitir segurança aos filhos através do afeto e do carinho constantes. Afinal, todo ser humano necessita ser amado, gostado, mesmo tendo consciência de seus defeitos, dificuldades e de suas reais diferenças.

Os pais são responsáveis pelo desenvolvimento dos valores dos filhos e não devem apostar na escola para exercer essa tarefa. Um pai legítimo é aquele que cultiva em casa a cidadania familiar. Ou seja, ninguém em casa pode fazer aquilo que não se pode fazer na sociedade. É preciso impor a obrigação de que o filho faça isso, assim, cria-se a noção de que ele tem que participar da vida comunitária. Não há dúvida que ante as balizas do bom senso e moderação os pais precisam estabelecer limites. Porém, essa exigência é muito mais acompanhar os limites, daquilo que o filho é capaz de fazer.

A fase infantil, em sua primeira etapa, é a mais importante para a educação, e não podemos relaxar na orientação dos filhos, nas grandes revelações da vida. Sob nenhuma hipótese, essa primeira etapa reencarnatória deve ser enfrentada com insensibilidade. Até aproximadamente os sete anos de idade, é o período infantil mais acessível às impressões que recebe dos pais, razão pela qual não podemos esquecer nosso dever de orientar os filhos quanto aos conteúdos morais. “O pretexto de que a criança deve desenvolver-se com a máxima noção de liberdade pode dar ensejo a graves perigos (…), pois o menino livre é a semente do celerado.”(3)

Se não observarmos essas regras, permitimos acender para o faltoso de ontem a mesma chama dos excessos de todos os matizes, que acarretam o extermínio e o delito. “Os pais espiritistas devem compreender essa característica de suas obrigações sagradas, entendendo que o lar não se fez para a contemplação egoística da espécie, mas sim para santuário onde, por vezes, se exige a renúncia e o sacrifício de uma existência inteira.”(4)

Principalmente a mãe deve ser o padrão de todos nas renúncias pela serenidade familiar. Deve compreender que seus filhos, primeiramente, são filhos de Deus. “Desde os primeiros anos, deve ensinar a criança a fugir do abismo da liberdade, controlando-lhe as atitudes e concentrando-lhe as posições mentais, pois essa é a ocasião mais propícia à edificação das bases de uma vida. Ensinará a tolerância mais pura, mas não desdenhará a energia quando seja necessária no processo da educação, reconhecida a heterogeneidade das tendências e a diversidade dos temperamentos.”(5)

A mãe “não deve dar razão a qualquer queixa dos filhos, sem exame desapaixonado e meticuloso das questões, levantando-lhes os sentimentos para Deus, sem permitir que estacionem na futilidade ou nos prejuízos morais das situações transitórias do mundo. Na hipótese de fracassarem todas as suas dedicações e renúncias, compete às mães incompreendidas entregar o fruto de seus labores a Deus, prescindindo de qualquer julgamento do mundo, pois que o Pai de Misericórdia saberá apreciar os seus sacrifícios e abençoará as suas penas, no instituto sagrado da vida familiar”.(6)

Os filhos difíceis são reflexos de nossas próprias ações, no passado, cuja Benevolência de Deus, hoje, outorga a possibilidade de se unir a nós pelos laços da consanguinidade, dando-nos a estupenda chance de resgate, reparação e os serviços árduos da educação. “Dessa forma, diante dos filhos insurgentes e indisciplináveis, impenetráveis a todos os processos educativos, “os pais depois de movimentar todos os processos de amor e de energia no trabalho de orientação deles, é justo que esperem a manifestação da Providência Divina para o esclarecimento dos filhos incorrigíveis, compreendendo que essa manifestação deve chegar através de dores e de provas acerbas, de modo a semear-lhes, com êxito, o campo da compreensão e do sentimento”.(7)

Esgotados todos os recursos a bem dos filhos e depois da prática sincera de todos os processos amorosos e enérgicos pela sua formação espiritual, sem êxito algum, os pais “devem entregá-los a Deus, de modo que sejam naturalmente trabalhados pelos processos tristes e violentos da educação do mundo. A dor tem possibilidades desconhecidas para penetrar os espíritos, onde a linfa do amor não conseguiu brotar, não obstante o serviço inestimável do afeto paternal, humano. Eis a razão pela qual, em certas circunstâncias da vida, faz-se mister que os pais estejam revestidos de suprema resignação, reconhecendo no sofrimento que persegue os filhos a manifestação de uma bondade superior, cujo buril oculto, constituído por sofrimentos, remodela e aperfeiçoa com vistas ao futuro espiritual”.(8)

Como se observa, o Espiritismo adentra com muita profundidade, ao encarar a educação do ponto de vista moral. Até porque o período infantil é propício para deixar o espírito mais acessível aos bons conselhos e exemplos dos pais e educadores, pois o espírito é mais flexível em face da debilidade física, daí a tarefa de reformar o caráter e corrigir suas más tendências. Quando os Espíritos Superiores falam em reformar o caráter, está implícito o reforço às boas tendências conquistadas pelo espírito reencarnante em vidas passadas.

Na questão 629 de O Livro dos Espíritos, ao definirem o que é moral, os espíritos indicam duas regras básicas de procedimento para o ser humano. Primeiro, fazer tudo tendo em vista o bem; segundo, fazer tudo tendo em vista o bem de todos. Isso porque o bem não pode ser unilateral, ou seja, a ação não pode gerar benefícios somente para um indivíduo, e sim para todos. Só é bom aquilo que faz bem para todos. É por isso que vários discursos clamam pelas ações solidárias humanas, tão necessárias e que devem ser desenvolvidas desde a infância, para que a criança faça disso um hábito.(9)

Ainda nessa temática da educação do ponto de vista moral, Allan Kardec adverte em comentário à questão 685-A de O Livro dos Espíritos: “Há um elemento que não se ponderou bastante, e sem o qual a ciência econômica não passa de teoria: a educação. Não a educação intelectual, mas a moral, e nem ainda a educação moral pelos livros, mas a que consiste na arte de formar os caracteres, aquela que cria os hábitos adquiridos.”(10)

Não propomos soluções particulares, reprimindo ou regulamentando cada atitude, nem especificamos fórmulas mágicas de bom comportamento aos filhos. Elegemos por acatar, em toda sua amplitude, os dispositivos da Lei de Deus, que asseguram a todos o direito de escolha (o livre-arbítrio) e a responsabilidade consequente dos atos de cada um.

Referências bibliográficas:

(1) Para crianças com menos de um ano, o livro sugere o uso de uma régua de 30cm ou um galho pequeno de chorão. Para crianças maiores, galhos maiores ou cintos;

(2) Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/12/131211_livro_surras_ criancas_dg.shtml?s >, acessado em 12/02/2014;

(3) Xavier, Francisco Cândido. O Consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 17ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1995, perg. 113;

(4) Idem, idem;

(5) Idem, perg. 189;

(6) Idem, idem;

(7) Idem, perg. 190;

(8) Idem, perg. 191;

(9) Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos. São Paulo: questão número 629, Ed. Feesp, 1972;

(10) Idem, questão número 685-a.

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal aposentado do INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (dois livros publicados), Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.