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Uma geração de jovens pesquisadores que manipulam material genético, alterando o DNA de seres vivos, começa a criar organismos vivos ainda não encontrados na natureza. Em universidades, laboratórios e até em casa eles atuam numa área chamada biologia sintética. Breno Henrique de Sousa comenta.

  • Data :02 Apr, 2013
  • Categoria :

2 de abril de 2013

Hackers de DNA

Uma geração de jovens pesquisadores que manipulam material genético começa a criar organismos vivos ainda não encontrados na natureza. Em universidades, laboratórios e até em casa eles atuam numa área chamada biologia sintética

Paula Rothman Info Exame

Numa tarde de dezembro, um grupo de estudantes da USP discutia uma maneira de evitar ressaca. Não, não era um papo de bar. Reunidos na biblioteca do campus da Universidade de São Paulo, os 17 alunos travavam um debate acadêmico. “Podemos usar um fungo para identificar bebidas adulteradas”, disse Pedro Henrique Medeiros, 24 anos, formado em biologia e aluno do segundo ano de farmácia. O tal fungo, uma levedura, é um organismo bastante curioso.

Ele poderia brilhar em amarelo fosforescente quando a vodca, por exemplo, apresentasse alto teor de metanol, um álcool mais barato e responsável por grande parte das dores de cabeça de quem exagera na dose. É a solução perfeita, por exemplo, para testes rápidos de qualidade na balada. Só tem um detalhe: esse fungo não existe. Pelo menos, não ainda.

Criar organismos que não são encontrados na natureza é o objetivo de Medeiros e de seus colegas do Clube de Biologia Sintética da USP. Há cerca de um ano, eles se encontram semanalmente para estudar e tentar colocar em prática ideias como a da levedura. “Poderíamos utilizar partes de um vaga-lume para obter a coloração amarelada sempre que ela entrar em contato com o metanol”, afirma o biólogo Medeiros. As partes do vaga-lume a que se refere não são as asas ou as patas, mas os genes do inseto. Nos projetos do clube, os alunos alteram o DNA de seres vivos inserindo trechos que permitem a esses organismos realizar tarefas que antes não poderiam fazer. Assim como hackers que escrevem linhas de código no computador, esses pesquisadores conseguem programar seres vivos.

“Podemos desenhar novas formas de vida da mesma maneira que um designer projeta um objeto”, disse a INFO George Church, professor de genética na Faculdade de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, e um dos pioneiros dessa área, conhecida como biologia sintética ou synbio. O termo começou a ser usado há pouco mais de dez anos para tentar definir uma variação da engenharia genética focada em facilitar a construção de novas moléculas de DNA.

O material genético é uma espécie de receita de bolo dentro das células dos seres vivos. Cada pedacinho, ou gene, é responsável por uma parte do funcionamento do sistema. “O que fazemos é catalogar esses trechos em um formato específico que pode ser utilizado em qualquer experimento”, afirma Marie-Anne Van Sluys, doutora em microbiologia e professora do Departamento de Botânica da USP.

Chamados de biobricks, ou tijolos biológicos, esses pacotes de informação ficam armazenados em grandes bancos de dados digitais. Basta acessar um deles, por exemplo, para descobrir qual gene específico produz a cor amarela no vaga-lume e se ele tem chances de funcionar na levedura. “É como brincar de Lego usando partes que já existem na natureza para fazer novas combinações”, diz Marie-Anne, que apoia o Clube de Biologia Sintética e cede seu laboratório para os experimentos.

IMPRESSORA DE DNA

O clube surgiu há pouco mais de um ano por iniciativa dos próprios alunos, que queriam participar do iGEM, a maior competição mundial de synbio. Organizada pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos Estados Unidos, essa competição contou com 191 inscritos no ano passado. “Em 2012, nós fomos os únicos representantes do país”, diz Andrés Ochoa, um dos diretores do grupo. Para isso, os estudantes recorreram a um site de financiamento coletivo, o RocketHub, e levantaram 3 mil dólares para pagar a inscrição e as camisetas do time. A USP ajudou com as passagens aéreas para a etapa eliminatória, realizada em outubro, na Colômbia. “Em 2013 queremos chegar à final. É por isso que estamos nos reunindo desde já para ter ideias de projetos”, afirma Ochoa.

Nos encontros, os alunos se alternam apresentando opções. Uma delas é a detecção de bebidas adulteradas. Aluno do segundo ano de química, Otto Heringer, 22 anos, foi um dos principais idealizadores do clube. “O que me atraiu na biologia sintética foi a mistura de várias disciplinas”, diz. O próprio grupo é um reflexo dessa característica da synbio. Além de biologia, farmácia e química, há alunos da oceanografia, ciências moleculares, engenharia e física biológica.

Qualquer que seja o projeto escolhido para a competição de 2013, os estudantes sabem que podem contar com os biobricks já catalogados para pôr em prática suas ideias. A enorme quantidade de informação acumulada nas últimas décadas de pesquisas em engenharia genética é uma das principais bases da biologia sintética. Mas outros avanços tecnológicos também foram cruciais para o desenvolvimento da área. “Hoje é possível sintetizar DNA usando máquinas que funcionam como uma impressora”, diz George Church, de Harvard. “A tecnologia está se tornando cada vez mais rápida e barata.” Com isso, começaram a surgir empresas especializadas em vender material genético.

Basta enviar a combinação desejada que elas associam os componentes químicos e devolvem genes ou sequências prontos para uso. Com matéria-prima disponível e cada vez mais barata, a manipulação de material genético deixa de ser privilégio dos grandes laboratórios e universidades. A popularização da tecnologia tem efeitos já conhecidos. Na década de 1970, as garagens do Vale do Silício foram o palco de grandes inovações na área de computação. Algo similar começa a acontecer com a biotecnologia.

FEITO EM CASA

Cathal Garvey é um irlandês que costuma encomendar DNA pela internet. Os pedidos são entregues sem problema na porta de sua casa em Cork, uma cidade de menos de 130 mil habitantes no sul da Irlanda. Há cerca de um ano, ele deixou seu emprego em um laboratório local e passou a fazer pesquisas por conta própria. “Queria estudar coisas de que gosto, e não apenas o que dá dinheiro para a empresa”, disse Garvey a INFO. Para isso, juntou alguns itens de cozinha, comprou peças pela internet e criou seu próprio laboratório caseiro. Uma panela de pressão, por exemplo, funciona como um esterilizador.

“Qualquer coisa que fique dentro dela por 15 minutos está limpa”, diz Garvey. Uma grande embalagem térmica de isopor com aquecedor e termostato acoplados virou uma estufa. A geladeira pode ser usada para resfriar os materiais biológicos, desde que o jantar da família não divida espaço com as amostras. Frascos e tubos de vidro foram comprados online, assim como uma das centrífugas. A outra, ele mesmo construiu imprimindo algumas partes em uma impressora 3D.

Um tutorial pode ser encontrado no canal que ele possui no YouTube (onetruecathal). “O objetivo é ajudar aqueles que, assim como eu, estão fazendo isso que chamamos de biohacking por conta própria”, diz Garvey.

Quem não tem a sorte de ter uma área livre em casa pode procurar espaços coletivos, cada vez mais comuns nos Estados Unidos e na Europa. O Genspace, em Nova York, por exemplo, reúne artistas e pesquisadores amadores e profissionais interessados em biotecnologia. Foi em um fórum de discussão na internet que a americana Ellen Jorgensen conheceu os outros cinco fundadores do Genspace. Aos 52 anos, e após mais de 25 trabalhando com biologia molecular para a indústria, Ellen decidiu se dedicar a um novo projeto. “Começamos as reuniões em 2009, na casa de um colega, forrando pisos e móveis com plástico para evitar contaminação”, afirma. Em alguns meses, o grupo conseguiu uma sala em um galpão que cede espaços gratuitos para projetos educativos e artísticos. O vizinho de porta é um arquiteto que recolhe objetos de prédios demolidos e ajudou a mobiliar o laboratório. As banquetas, por exemplo, vieram de uma antiga lanchonete. Os equipamentos foram comprados no eBay ou doados.

O Genspace funciona como um hub que concentra negócios. Atualmente são 12 sócios que pagam uma mensalidade de 100 dólares. Ela dá direito a usar o espaço e a alguns reagentes necessários nos experimentos. Também há aulas e palestras avulsas que custam até 300 dólares e atraem centenas de pessoas todos os anos. “Um dos eventos mais populares é o Biohacker Boot Camp, um intensivão de como construir seu laboratório caseiro”, diz Ellen.

Metade dos frequentadores do laboratório é formada por artistas e designers que usam a biotecnologia em seus projetos. Um grupo de garotas, por exemplo, coleta fios de cabelo em lugares públicos e tenta desenhar o rosto dos donos a partir de características que conseguem extrair do DNA. Isso não é biologia sintética, mas é um trabalho com material genético que dificilmente poderia ser feito sem um local como o Genspace. “Esses ambientes são ótimos para trocar ideias”, diz Marcelo Rodrigues, engenheiro elétrico criador do Lab de Garagem.

A casa, em São Paulo, é uma espécie de incubadora de projetos e clube dos amantes de eletrônica. Desde 2010, o Lab de Garagem vende equipamentos e orienta quem quiser criar, por exemplo, uma cafeteria que tuíta quando o café está pronto. Agora, Rodrigues quer focar na biologia. No ano passado, visitou o BioCurious, na Califórnia. “Busco parceiros para montar estruturas de trabalho como as que vi nos Estados Unidos”, diz Rodrigues.

O movimento “faça você mesmo” está em alta na biotecnologia, mas não são só os hackers independentes que investem nele. Pesquisadores em laboratórios de ponta trabalham para aumentar a produção de alimentos, de combustível limpo ou até mesmo combater o vírus da aids sem medicamentos. Uma das empresas com a qual George Church está envolvido patenteou uma espécie de bactéria modificada que usa CO2, água e luz solar para produzir um combustível tão eficiente quanto o diesel, mas sem petróleo.

“Com tempo, dinheiro e os avanços tecnológicos, não acho que existam limites para o que se pode fazer com engenharia biológica”, diz Church. A tecnologia é sofisticada e envolve aspectos éticos.

De olho no potencial das pesquisas, grandes empresas já se aproximaram dos espaços coletivos de biohacking. “Tenho reuniões com algumas das maiores companhias dos Estados Unidos e todas elas querem saber o que estamos desenvolvendo”, diz Ellen. O irlandês Cathal Garvey conseguiu investimento de um fundo de venture capital para suas pesquisas. No Brasil, os garotos do Clube de Biologia Sintética da USP começaram a trocar figurinhas com Marcelo Rodrigues, do Lab de Garagem. Quem sabe não surge daí um hub de empreendedorismo em biotecnologia?

Mas, para os não-iniciados, como aproveitar esse tipo de pesquisa? Ellen Jorgensen dá alguns exemplos práticos: descobrir qual cão da vizinhança está deixando “presentes” em sua calçada, como fez recentemente um jornalista americano cansado de recolher cocô na porta. Jogando bolas de tênis a cada cão da rua, ele obteve amostras de DNA que cruzou com o material ofensivo para descobrir o autor da sujeira. Outro exemplo? Checar se o seu cereal orgânico contém material geneticamente modificado. Ou ainda criar uma levedura para detectar poluentes. Para quem não acredita no potencial desse novo tipo de hacker, vale lembrar o que a última geração de jovens pioneiros da programação conquistou.

Notícia publicada no Planeta Sustentável , em janeiro de 2013.

Breno Henrique de Sousa comenta*

O futuro já chegou

O que essas notícias tecnológicas tem a ver com o Espiritismo? A primeira constatação é a de que, conforme afirma o Espiritismo, o progresso é positivo e é uma consequência natural, ao contrário de algumas visões pessimistas que desenham um futuro apocalíptico. Algumas pessoas podem pensar que essas coisas são o “sinal dos tempos”, uma expressão popular que pressagia o fim do mundo porque o homem está “brincado de ser Deus” e isso seria um sinal de que o fim está próximo.

Ora! Chega a ser infantil esse tipo de coisa. Afinal, sempre ouvimos isso diante de qualquer descoberta inovadora, diante de qualquer novo avanço. Na verdade não é de Deus que temos medo, temos medo de que as novas mudanças e descobertas cheguem para destruir nossas velhas visões de mundo às quais estamos arraigados. Bradamos uma espécie de ameaça divina na tentativa inglória de afastar o progresso, enquanto ignoramos que o progresso faz parte dos desígnios divinos para a humanidade.

Nunca é demais afirmar que não estamos livres dos impositivos éticos, das responsabilidades sociais e possíveis consequências negativas de qualquer avanço científico. Precisamos nos precaver, porque nem tudo o que vem em nome do progresso é bom, saudável, seguro e amistoso. Sobretudo quando os avanços visam ganhos financeiros, costuma-se desrespeitar as normas de segurança adequadas, pondo em risco a vida dos consumidores e o equilíbrio do meio ambiente. Porém, a solução para isso não é uma negação do progresso que é inevitável. Discursos radicais só surtem efeito pontual e muito pouco afeta a marcha inexorável do progresso.

No panorama apresentado pela reportagem em destaque, assim como em todas as coisas, podemos destacar riscos e oportunidades. Grupos de jovens pesquisadores espalhados pelo mundo, fazendo manipulações genéticas de todos os tipos, jovens que ainda não têm consciência dos impositivos éticos e das consequências de suas atitudes, jovens com ideologias das mais diversas (como ideologias religiosas, radicais ou ambição financeira), apenas empolgados com o “ir mais longe”, “fazer o que ninguém fez”, “descobrir o que ninguém descobriu”, “fazer para ver no que vai dar”; fazendo as suas pesquisas em casa ou na garagem, sem supervisão de instituições competentes, isso pode resultar em armas biológicas, desastres ambientais, contaminações e epidemias, isso porque estou atenuando as possibilidades. A reportagem compara essa situação com aqueles jovens que criaram em garagens softwares revolucionários como o Windows e redes sociais como o Facebook, mas manipular material genético não é o mesmo que criar softwares, e envolve riscos antes não implicados, e não se trata de uma expectativa pessimista ou irreal, qualquer pessoa que tem conhecimentos na área biológica e infectológica sabe que são possibilidades que devem ser consideradas e discutidas.

Por outro lado, a popularização do conhecimento científico permitirá avanços mais rápidos e mais rapidamente disponibilizados para a população em geral. As descobertas provenientes desses grupos não estarão submetidas as patentes das grandes indústrias farmacêuticas, a tecnologia estará mais rapidamente disponível para todas as camadas sociais, pelo menos, mais rapidamente do que o atual modelo que centraliza na indústria e nas grandes instituições de pesquisa toda a inovação tecnológica. Outras vantagens dessa situação são a mudança no perfil dos profissionais da área científica e na formação acadêmica desses profissionais.

Hoje, o cientista ainda é uma criatura quase mítica e sobre-humana, própria dos filmes de ficção científica. Ser cientista parece tornar-se parte de um olimpo de poucas mentes privilegiadas no mundo, mas, quem faz ciência, sabe que isso está longe de ser verdade, ainda mais, não é preciso uma formação acadêmica para fazer ciência ou inovações tecnológicas, aliás, boa parte dos grandes inventores do mundo não tinham formação específica para criar seus inventos, eram apenas autodidatas.

Estamos caminhando para uma sociedade de autodidatas, de gênios que surgem em todas as esquinas do mundo, porque se estão nivelando as possibilidades de acesso à informação através da Internet. Hoje, qualquer um que tenha acesso a rede mundial de computadores pode conseguir informação da mais alta qualidade e atualidade, usada pelos mais renomados institutos de ensino e pesquisa do mundo.

As universidades terão de se adequar a essa nova realidade. Até aos dias atuais as empresas exigem um profissional com um diploma de uma instituição reconhecida, isso sempre foi necessário para garantir a qualidade do profissional, porém, esse sistema também supervalorizou os diplomas e certificados, de maneira que hoje muitas instituições de ensino são apenas fábricas de diplomas. A cada dia as pessoas juntam mais certificados e diplomas em currículos quilométricos, e a cada dia surgem exemplos de incompetência entre os profissionais mais certificados.

Agora caminhamos para uma realidade onde gradativamente valoriza-se mais as competências e habilidades que o profissional é capaz de demonstrar, do que simplesmente apresentar diplomas e certificados. Acredito que chegaremos a um dia, daqui a alguns anos talvez, onde esse sistema de ensino universitário estará obsoleto e o mercado estará cada vez mais ocupado por profissionais autodidatas ou com formações menos clássicas, no lugar daqueles que tendo apenas diplomas, não conseguem demonstrar habilidades específicas.

Essas associações com espaços dedicados à inventividade serão as faculdades e universidades do futuro, deixando para trás o paradigma superado das formações tradicionais centradas na memorização e acumulação de conteúdo teórico descontextualizado da realidade. A universidade até fala em contextualização do ensino, discute-se currículo e futuro das profissões, mas na prática, ainda estão bem longe, e as instituições que não tomarem o bonde do progresso serão relegadas ao ostracismo e a decadência.

Essas são conjunturas do mundo. Qualquer que seja a escolha dos homens, o progresso será estabelecido, não importa a ordem dos fatores, o produto do progresso é inexorável. Cabe a nós, através do nosso livre-arbítrio, escolher os melhores caminhos, a estrada da responsabilidade e do bem. Somos chamados pelas leis divinas a sermos artífices do progresso humano, porém, mais importante que o progresso tecnológico, é o progresso moral de nossa sociedade, estabelecendo o amor como o núcleo das instituições humanas. Sem a fonte do amor, todas as edificações são vazias e perecíveis.

  • Breno Henrique de Sousa é paraibano de João Pessoa, graduado em Ciências Agrárias e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal da Paraíba. Ambientalista e militante do movimento espírita paraibano há mais de 10 anos, sendo articulista e expositor.