Carregando...

  • Início
  • O livre-arbítrio não existe, dizem neurocientistas

Pesquisas recentes da neurociência, realizadas desde 2008 até a época atual, sugerem que o que cremos ser escolhas conscientes são decisões automáticas tomadas pelo cérebro. O homem não seria, assim, mais do que um computador de carne. Carlos Miguel Pereira comenta.

  • Data :22 Apr, 2012
  • Categoria :

23 de abril de 2012

O livre-arbítrio não existe, dizem neurocientistas

Novas pesquisas sugerem que o que cremos ser escolhas conscientes são decisões automáticas tomadas pelo cérebro. O homem não seria, assim, mais do que um computador de carne

Aretha Yarak

Saber se os homens são capazes de fazer escolhas e eleger o seu caminho, ou se não passam de joguetes de alguma força misteriosa, tem sido há séculos um dos grandes temas da filosofia e da religião. De certa maneira, a primeira tese saiu vencedora no mundo moderno. Vivemos no mundo de Cássio, um dos personagens da tragédia Júlio César, de William Shakespeare. No começo da peça, o nobre Brutus teme que o povo aceite César como rei, o que poria fim à República, o regime adotado por Roma desde tempos imemoriais. Ele hesita, não sabe o que fazer. É quando Cássio procura induzi-lo à ação. Seu discurso contém a mais célebre defesa do livre-arbítrio encontrada nos livros. “Há momentos”, diz ele, “em que os homens são donos de seu fado. Não é dos astros, caro Brutus, a culpa, mas de nós mesmos, se nos rebaixamos ao papel de instrumentos.”

Como nem sempre é o caso com os temas filosóficos, a crença no livre-arbítrio tem reflexos bastante concretos no “mundo real”. A maneira como a lei atribui responsabilidade às pessoas ou pune criminosos, por exemplo, depende da ideia de que somos livres para tomar decisões, e portanto devemos responder por elas. Mas a vitória do livre-arbítrio nunca foi completa. Nunca deixaram de existir aqueles que acreditam que o destino está escrito nas estrelas, é ditado por Deus, pelos instintos, ou pelos condicionamentos sociais. Recentemente, o exército dos deterministas – para usar uma palavra que os engloba – ganhou um reforço de peso: o dos neurocientistas. Eles são enfáticos: o livre-arbítrio não é mais que uma ilusão. E dizem isso munidos de um vasto arsenal de dados, colhidos por meio de testes que monitoram o cérebro em tempo real. O que muda se de fato for assim?

Mais rápido que o pensamento — Experimentos que vêm sendo realizados por cientistas há anos conseguiram mapear a existência de atividade cerebral antes que a pessoa tivesse consciência do que iria fazer. Ou seja, o cérebro já sabia o que seria feito, mas a pessoa ainda não. Seríamos como computadores de carne - e nossa consciência, não mais do que a tela do monitor. Um dos primeiros trabalhos que ajudaram a colocar o livre-arbítrio em suspensão foi realizado em 2008. O psicólogo Benjamin Libet, em um experimento hoje considerado clássico, mostrou que uma região do cérebro envolvida em coordenar a atividade motora apresentava atividade elétrica uma fração de segundos antes dos voluntários tomarem uma decisão – no caso, apertar um botão. Estudos posteriores corroboraram a tese de Libet, de que a atividade cerebral precede e determina uma escolha consciente.

Um deles foi publicado no periódico científico PLoS ONE , em junho de 2011, com resultados impactantes. O pesquisador Stefan Bode e sua equipe realizaram exames de ressonância magnética em 12 voluntários, todos entre 22 e 29 anos de idade. Assim como o experimento de Libet, a tarefa era apertar um botão, com a mão direita ou a esquerda. Resultado: os pesquisadores conseguiram prever qual seria a decisão tomada pelos voluntários sete segundos antes d eeles tomarem consciência do que faziam.

Nesses sete segundos entre o ato e a consciência dele, foi possível registrar atividade elétrica no córtex polo-frontal — área ainda pouco conhecida pela medicina, relacionada ao manejo de múltiplas tarefas. Em seguida, a atividade elétrica foi direcionada para o córtex parietal, uma região de integração sensorial. A pesquisa não foi a primeira a usar ressonância magnética para investigar o livre-arbítrio no cérebro. Nunca, no entanto, havia sido encontrada uma diferença tão grande entre a atividade cerebral e o ato consciente.

Patrick Haggard, pesquisador do Instituto de Neurociência Cognitiva e do Departamento de Psicologia da Universidade College London, na Inglaterra, cita experimentos que comprovam, segundo ele, que o sentimento de querer algo acontece após (e não antes) de uma atividade elétrica no cérebro.

“Neurocirurgiões usaram um eletrodo para estimular um determinado local da área motora do cérebro. Como consequência, o paciente manifestou em seguida o desejo de levantar a mão”, disse Haggard em entrevista ao site de VEJA. “Isso evidencia que já existe atividade cerebral antes de qualquer decisão que a gente tome, seja ela motora ou sentimental.”

O psicólogo Jonathan Haidt, da Universidade da Vírginia, nos Estados Unidos, demonstrou que grande parte dos julgamentos morais também é feito de maneira automática, com influência direta de fortes sentimentos associados a certo e errado. Não há racionalização. Segundo o pesquisador, certas escolhas morais – como a de rejeitar o incesto – foram selecionadas pela evolução, porque funcionou em diversas situações para evitar descendentes menos saudáveis pela expressão de genes recessivos. É algo inato e, por isso, comum e universal a todas as culturas. Para a neurociência, é mais um dos exemplos de como o cérebro traz à tona algo que aprendeu para conservar a espécie.

A mente como produto do cérebro — Como o cérebro já se encarregou de decidir o que fazer – e o ato está feito —, é preciso contextualizar a situação. É aí que entra a nossa consciência. Ela também é um produto da atividade cerebral, que surge para dar coerência às nossas ações no mundo. O cérebro toma a decisão por conta própria e ainda convence seu ‘dono’ que o responsável foi ele.

Em outras palavras: quando você para, pensa e toma decisões pontuais, tem a sensação de que um eu consciente e racional, separado do cérebro, segura as rédeas de sua vida. Mas para cientistas como Michael Gazzaniga, coordenador do Centro para o Estudo da Mente da Universidade da Califórnia e um dos maiores expoentes da neurociência na atualidade, não existe essa diferenciação. Segundo ele, somos um só: o que é cérebro também é mente. A sensação de que existe um eu, que habita e controla o corpo, é apenas o resultado da atividade cerebral que nos engana. “Não há nenhum fantasma na máquina, nenhum material secreto que é você”, diz Gazzaniga, que, em seu mais recente livro, Who’s in Charge – Free Will and the Science of the Brain (Quem está no comando – livre-arbítrio e a ciência do cérebro, sem edição em português), esmiúça a mecânica cerebral das decisões.

Segundo Gazzaniga, o cérebro humano fabula o tempo todo. A invenção de pequenas histórias para explicar nossas escolhas seria uma maneira sagaz de estruturar nossa experiência cotidiana. Essa estrutura narrativa, segundo Patrick Haggard, tem um significado importante na evolução humana.

“Criar histórias sobre as nossas ações pode ser útil para quando nos depararmos com situações similares no futuro. É assim que iremos decidir como agir, relembrando resultados anteriores”, diz. Ou seja, funcionamos na base do acerto e do erro, e da cópia do comportamento de pessoas próximas – principalmente nossos familiares. “Por isso a educação das crianças é tão importante. É um momento em que o cérebro absorve uma grande carga de informações e está sendo moldado, criando parâmetros para saber como se portar, como viver em sociedade.”

Dúvidas — Em artigo publicado no periódico Advances in Cognitive Psychology, o pesquisador W. R. Klemm coloca em xeque a metodologia usada em diversos dos experimentos recentes da neurociência. Segundo Klemm, que é professor na Universidade do Texas e autor do livro Atoms of Mind. The ‘Ghost in the Machine’ Materializes (Átomos da mente. O fantasma da máquina se materializa, sem edição no Brasil) alguns estudos sugerem que não é possível medir com precisão o tempo entre o estímulo cerebral e o ato em si. O que poderia colocar abaixo toda a tese da turma de Gazzaniga.

O argumento principal do pesquisador, no entanto, recai sobre a generalização dos testes. “Não é porque algumas escolhas são feitas antes da consciência em uma tarefa, que temos a prova de que toda a vida mental é governada desta maneira”, escreve no artigo. Klemm defende ainda a tese de que atividades mais complexas do que apertar um botão ou reconhecer uma imagem devem ser feitas de maneiras muito mais complexas. “Os experimentos feitos são muito limitados.”

Ainda que as pesquisas estejam corretas, os próprios neurocientistas reconhecem que a ideia de um mundo sem livre-arbítrio provoca estranhamento. Eles se esforçam, sobretudo, para conciliar sua teoria com o problema da responsabilidade pessoal. “Mesmo que a gente viva em um universo determinista, devemos todos ser responsáveis por nossas ações”, afirma Gazzaniga. “A estrutura social entraria em caos se a partir de hoje qualquer um pudesse matar ou roubar, com base no argumento simplista de ‘meu cérebro mandou fazer isso’.”

Para o cientista cognitivo Steven Pinker, a solução talvez seja manter a ciência e moralidade como dois reinos separados. “Creio que ciência e ética são dois sistemas isolados de que as mesmas entidades fazem uso, assim como pôquer e bridge são dois jogos diferentes que usam o mesmo baralho”, escreve ele no livro Como a Mente Funciona. “O livre-arbítrio é uma idealização que torna possível o jogo da ética.”

Continuaríamos, assim, a viver no mundo descrito por Cássio em Júlio César. “Há momentos em que os homens são donos de seu fado”, diz ele. Neurocientistas como Pinker estão prontos a concordar com isso - desde que se entenda o livre-arbítrio como uma ilusão necessária para o jogo das leis e da ética - e desde que se ponha o cérebro o lugar dos astros, como o grande condutor de nossos atos.

Matéria publicada na Revista Veja , em 27 de fevereiro de 2012.

Carlos Miguel Pereira comenta*

“Sem o livre-arbítrio o homem seria uma máquina.” (O Livro dos Espíritos .)

Retirar do Homem a liberdade pelas suas escolhas, colocando-o como um joguete de alguma força desconhecida, não é uma ideia nova: O Calvinismo acredita que o Homem já nasce predestinado a um futuro definido por Deus; a corrente behaviorista clássica igualava o ser humano a um animal, determinando os seus comportamentos pelas influências recebidas no meio que o envolvia; o geneticismo justifica algumas escolhas e aptidões com a existência ou não de um gene específico; a neurociência vê o ser humano como uma máquina, um autômato programado pelo acaso e que, tomando como base o título desta notícia, nem pode ser responsabilizado pelas suas atitudes. Todas estas formas de entender o comportamento humano estão baseadas num paradigma que é fatalista, redutor e profundamente corrosivo para a consciência humana: o materialismo.

Analisemos os resultados das experiências relatadas na notícia, das quais se concluiu que “o livre-arbítrio não existe”: Em algumas atividades elementares que envolviam um reduzido esforço de decisão, cientistas descobriram que existe uma atividade elétrica em determinadas zonas do cérebro que precede a escolha tomada pelo indivíduo. Este é o fato simples a partir do qual se fizeram as extrapolações e as teorias deterministas que a notícia relata. Mas o que provoca a atividade cerebral identificada? Como os cientistas podem garantir que os impulsos elétricos detetados não são uma consequência de um processo anterior de racionalização, ponderação ou até de emotividade? Julgo que não conseguem garantir tal coisa.

Para quem estuda a Doutrina Espírita, o resultado que estas experiências relatam não é novo. O Homem não possui liberdade absoluta de ação, tal como está referido na questão 846, de O Livro dos Espíritos . As nossas decisões e escolhas individuais estão condicionadas por importantes fatores heterogêneos e dinâmicos, alguns deles caóticos e impossíveis de prever, que influenciam os nossos comportamentos: a hereditariedade e a carga genética, o meio cultural, familiar e social em que estamos inseridos e as experiências a que fomos expostos. No entanto, estes fatores não determinam as nossas ações, porque, caso contrário, não poderíamos assumir qualquer responsabilidade sobre as atitudes próprias, nem tão pouco haveria mérito por nossas aquisições. Seríamos criminosos porque havíamos sido condicionados à criminalidade ou gênios por uma qualquer razão fortuita. O destino de cada um seria moldado independentemente da sua vontade e responsabilidade. A vida não teria qualquer sentido.

A Doutrina Espírita está no extremo oposto do materialismo e é sua missão desmistificar estas teorias reducionistas que teimam em depreciar o ser humano e o sentido da sua existência. Sendo certo que não possuímos liberdade absoluta de ação, também não estamos condenados ao fatalismo. O Homem não é o resultado fortuito de contingências aleatórias e casuais. O acaso teria engenho para idealizar o Universo? Como o acaso teria arte para criar a magia da vida? Poderia o acaso ter dirigido o progresso social, tecnológico e moral alcançado pela humanidade? Onde o acaso descobriu a elevação necessária para proferir o Sermão da Montanha ou a inspiração para moldar a Pietá de Miguel Ângelo? Incapaz de encontrar explicações mais convincentes, a ciência mecanicista justifica os mistérios da suprema magnificência do que a rodeia como uma obra do acaso. Se a existência de um acaso inteligente ainda poderia ser encarada como uma coincidência singular e fantástica, acreditar num tão grande número de acasos extraordinários e inteligentes já ultrapassa os limites da crendice.

A consciência e a inteligência não são um curto-circuito nem o subproduto acidental da interação de umas quaisquer moléculas. Enquanto a ciência permanecer cingida à matéria e não alcançar a dimensão do que não pode ver, tocar e ouvir, ficará ainda muito distante de tanger os arrabaldes da verdade que procura. A sede do pensamento é o Espírito imortal. Poderão ser estudados exaustivamente os impulsos elétricos e as conexões nervosas de um cérebro, dissecá-lo e dividi-lo até à escala atômica e, mesmo assim, não serão encontrados vestígios da vontade que esteve na origem de um comportamento. De acordo com a premissa materialista, as conclusões deste estudo são verdadeiras: no materialismo, o livre-arbítrio não existe. A matéria não possui livre-arbítrio porque ela age impulsionada por uma vontade. Mas como o Homem não é apenas matéria, ele dispõe de liberdade para pensar, vontade para agir e consciência para medir os seus atos, corrigi-los e melhorá-los. O livre-arbítrio é um atributo da alma imortal, sendo através dele que a vontade individual poderá superar as tendências impostas pela matéria e pelos condicionalismos da personalidade, agindo de acordo com o sentir e as necessidades íntimas daquele que é dono e responsável pelo seu próprio destino: O Espírito, a verdadeira essência daquilo que somos.

  • Carlos Miguel Pereira trabalha na área de informática e é morador da cidade do Porto, em Portugal. Na área espírita, é trabalhador do Centro Espírita Caridade por Amor (CECA), na cidade do Porto, e colaborador regular do Espiritismo.net.