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Os sonhos sempre intrigaram e foram objeto de estudo, mas agora eles estão sendo levados mais a sério por neurologistas, psicanalistas e biólogos. Enquanto a biologia explica as estruturas cerebrais envolvidas, a psicanálise investiga seu conteúdo. Carlos Miguel Pereira comenta.

  • Data :01/10/2009
  • Categoria :

A ciência do sonho

Novos livros e estudos ajudam a decifrar seu significado e mostram como isso pode melhorar a nossa vida

por Jones Rossi e Juliana Tiraboschi

“Eu acordei com uma música maravilhosa na minha cabeça. Fui até o piano e comecei a achar as notas. Tudo seguiu uma ordem lógica. Gostei muito da melodia, mas, como havia sonhado com ela, não podia acreditar que tinha escrito aquilo. Foi a coisa mais mágica do mundo.”

É dessa maneira que Paul McCartney explica a criação de “Yesterday”, 45 anos atrás. A canção até hoje figura no livro Guinness dos Recordes como a música que ganhou o maior número de versões cover na história, por volta de 3 mil.

Deixando um pouco de lado a necessária dose de genialidade para a composição de um clássico dessa magnitude, sobram questionamentos sobre se o que aconteceu com o sonho do Beatle foi uma obra do acaso, uma predisposição genética ou uma técnica que pode ser decifrada e difundida. E hoje, como nunca antes, os cientistas se debruçam sobre os meandros do que acontece conosco enquanto dormimos, tentando descobrir seu mistério e, quem sabe, ajudar algum compositor dorminhoco a escrever uma nova “Yesterday”.

É fato que os sonhos sempre intrigaram e foram objeto de estudo, mas o que está acontecendo agora é que eles estão sendo levados mais a sério por neurologistas, psicanalistas e biólogos. Enquanto a biologia procura explicar quais são as estruturas cerebrais envolvidas, a psicanálise se põe a investigar seu conteúdo. Da união dessas duas disciplinas nasceu a neuropsicanálise, uma tentativa de entender os aspectos físicos e psíquicos do sonho.

Nos últimos 50 anos, apesar de a ciência entender cada vez mais como nosso cérebro funciona quando estamos dormindo, os sonhos foram tratados como um subproduto do sono. Em 1983, o britânico Francis Crick, famoso por descobrir a estrutura do DNA, e seu colega Graeme Mitchison publicaram um trabalho afirmando que os sonhos funcionavam como uma espécie de lixeira virtual, descartando todas as memórias “inúteis” acumuladas durante o dia. Era o ápice da negação aos estudos do austríaco Sigmund Freud (1856-1939) - pai da psicanálise e autor de livros como A Interpretação dos Sonhos -, que ocorria desde o começo da década de 50.

Os estudos que vêm sendo publicados desde a virada do milênio e os novos livros programados para chegar às prateleiras neste ano reabilitam os pensamentos de Freud. Para ele, as imagens durante o sono simulavam nossos desejos e nos protegiam contra a dor e os traumas passados. Essas pesquisas também defendem a utilidade dos sonhos em ajudar a resolver problemas do cotidiano e organizar ideias, como aconteceu com McCartney.

FREUD ESTAVA CERTO?

Na avaliação de Carey Morewedge, professor assistente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Carnegie Mellon, EUA, a verdade sobre os sonhos se encontra em uma intersecção das três teorias predominantes sobre eles: a freudiana; a de que sonhos servem para consolidar memórias e aprendizado; e a crença de que suas imagens são totalmente aleatórias. “É provável que haja um pouco de verdade em cada uma delas”, diz.

“Freud acertou no que viu e no que não viu. A gente cada vez mais resgata a obra dele”, afirma o brasiliense Sidarta Ribeiro, Ph.D. em neurobiologia, doutor em neurociências pela Universidade Rockefeller com pós-doutorado pela Universidade Duke, EUA, e idealizador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN), ao lado de Miguel Nicolelis, doutor em neurofisiologia pela USP, professor de neurobiologia na Duke e cotado ao prêmio Nobel de Medicina deste ano.

A dupla defende que os sonhos têm relação direta com o nosso dia a dia. “Eles estão ligados de uma maneira forte com aquilo que está acontecendo ao sonhador. Um exemplo: a gente sabe que pessoas que estão experimentando uma crise no casamento sonham bastante com isso”, afirma Sidarta.

Luciano Ribeiro Pinto Júnior, neurologista e pesquisador da disciplina de medicina e biologia do sono da Unifesp, concorda. “Você sonha com coisas que viveu durante o dia. Imagine uma pessoa que encontrou um conhecido e sonhou com um contato sexual com essa pessoa. Juntou um desejo, uma emoção, a uma memória. A pessoa em questão pode representar alguma coisa ou ser só um instrumento para realizar o desejo.”

A relação entre sonhos e o sexo é tema do livro Sex Dreams and Symbols: Interpreting Your Subconscious Desires (Sonhos sexuais e símbolos: interpretando seus desejos subconscientes), da psicóloga Pam Spurr. O título, lançado em janeiro, faz parte do boom editorial a respeito do assunto. Nos próximos dois meses, serão publicados três importantes obras somente nos EUA. Nenhuma delas têm previsão de chegar ao Brasil.

As novidades vão de manuais práticos, caso de A Day in the Life of Your Brain (Um dia na vida do seu cérebro) e de How and Why We Dream (Como e por que sonhamos), a uma versão atualizada de The Dream Encyclopedia (A Enciclopédia dos Sonhos), de James Lewis, professor de filosofia da Universidade de Wisconsin-Stevens Point. Catorze anos depois da primeira edição, Lewis retoma o assunto para listar mais de 700 significados e histórias envolvendo sonhos, religiões e culturas distintas, além de apresentar estudos que apontam para a relação entre essas imagens e os problemas e ansiedades do cotidiano.

VESTIBULAR

Há pelo menos duas pesquisas nessa linha sob a supervisão de Sidarta. A primeira, conduzida por Rafael Scott, aluno do neurocientista e mestrando em psicobiologia, levantou o conteúdo dos sonhos de 94 estudantes que tentavam uma vaga na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Desse grupo, 27 vestibulandos entraram: 16 sonharam com a prova, 11, não. Entre as explicações levantadas por Scott para o resultado, a principal é que o sonho sinaliza a importância da prova para a sobrevivência social do aluno por meio do sistema de recompensa do cérebro. “Houve até quem sonhasse com a festa da aprovação.”

Outro experimento também realizado por um aluno, André Pantoja, mobilizou 22 pessoas que jogam o violento game Doom. O objetivo do título é matar monstros usando armas capazes de explodir os adversários. Novamente, quem sonhou com o jogo obteve melhores resultados. “Nossa conclusão preliminar é que existe uma correlação entre a melhoria no desempenho e a intensidade do sonho relacionado ao jogo”, diz Sidarta. Ou seja, sonhar dormindo aumenta as chances de realizá-los quando estamos acordados.

A relação não acontece por acaso. O especialista tem proposto nos últimos anos que a única maneira para entender a função dos sonhos é estudá-los quando os seres humanos estão diante de situações semelhantes àquelas vividas pelos nossos ancestrais. “O Doom e o vestibular são tentativas de estudar o sonho em um contexto de alto estresse. Os sonhos na vida contemporânea não revelam sua função porque a gente não enfrenta os problemas de 10 mil anos atrás. Se eu estiver com fome, vou a um restaurante. Para ter onde morar, basta possuir dinheiro para o aluguel.”

Isso também explicaria os sonhos que não fazem nenhum sentido. Sem grandes problemas para resolver, o homem moderno tece uma colcha com pedaços de memória do cotidiano. Sem precisar lutar por comida ou abrigo, os sonhos modernos perdem sentido.

ORÁCULO

“Existe essa função biológica de reverberar as memórias do passado para simular o futuro possível”, diz Sidarta. Surge então a teoria dos “oráculos probabilísticos”. Os sonhos reuniriam informações prévias guardadas em nossa memória para simular um futuro possível. Quando o seu cotidiano é muito duro, muito violento, as imagens do sono se tornam um mecanismo para prever com maior chance como o amanhã deve ser. Porque você não pode errar. Se um oficial está na guerra, ele sabe que não deve passar em determinado lugar porque há um inimigo esperando. Nessas condições, aumentam muito as chances de o soldado ter o sono preenchido com cenas desse tipo.

O pesquisador finlandês Antti Revonsuo demonstrou o mesmo princípio quando comparou os sonhos de crianças que moravam no Curdistão e na Finlândia. Entre as crianças do Curdistão - uma região encravada entre o Irã, o Iraque e a Turquia, vítima de ataques com armas químicas durante o governo de Saddam Hussein -, a incidência de pesadelos foi muito maior que entre as finlandesas.

Em outro estudo realizado na Universidade de Wisconsin, ratos foram privados do sono REM (sigla para Rapid Eye Movement, ou movimentos oculares rápidos), período em que os sonhos acontecem predominantemente. Nessa fase, que ocorre de quatro a cinco vezes por noite, cada uma durando 20 minutos em média, nossos olhos se agitam debaixo das pálpebras. Outros animais analisados também tiveram o comportamento alterado pelo sono REM: mexem os olhos, o rabo, as patas. “Isso é a ativação da mesma consciência da vigília: sentem raiva, fome, medo, impulso sexual”, diz Luciano Ribeiro Júnior. Ou seja, o sonho deve estar ligado a essas emoções e a acontecimentos cotidianos.

Após várias noites de sono sem o estágio REM, os ratos foram expostos a situações ameaçadoras similares a algumas que enfrentariam em seus hábitats. Resultado: em momentos nos quais era necessário apenas agir por instinto, os animais falharam em procurar abrigo e sair do campo de visão dos predadores, além de se mostrarem desorientados. Mesmo depois de receberem pequenas doses de anfetamina, que reverteria os efeitos se o problema fosse somente a privação do sono, o comportamento dos roedores não se alterou.

Descobertas como essa fizeram Antti Revonsuo concluir que “os sonhos exercem o papel de um campo de treinamento para comportamentos essenciais à nossa sobrevivência. Impedidos de sonhar, os ratos ficaram incapazes de ensaiar seu exercício”. Para Morewedge, o mesmo acontece com os humanos. “A memória e o aprendizado são definitivamente prejudicados quando as pessoas não conseguem desfrutar do tipo de sono que está associado com o sonho.”

POR QUE SONHAMOS?

A resposta à pergunta acima continua desconhecida. Mas entre os vários motivos já especulados pelas recentes pesquisas está a regulação de emoções e fatos aos quais damos importância, minimizando os sentimentos perturbadores. Outro é selecionar e armazenar informações na memória de longo prazo, formando uma rede de experiências relacionadas que podem ser úteis no futuro.

Não foram apenas os Beatles que se beneficiaram com isso. A tabela periódica, segundo relato de seu inventor, o químico russo Dmitri Mendeleev (1834-1907), surgiu durante um sonho. Mágica? Não, provavelmente durante o sono o cérebro do químico organizou várias informações com as quais vinha trabalhando.

Talvez essa aparente “função treino” esteja relacionada com a importância das imagens mentais para a memória e o aprendizado. Segundo escreveu Jonathan Winson, professor da Universidade Rockefeller, EUA, falecido no ano passado, os estudos sobre a função do hipocampo, do sono REM e de uma onda cerebral chamada “ritmo teta” mostram que os sonhos são o reflexo de um aspecto fundamental do processamento da memória. Esse mecanismo ajuda a transferirmos informação da memória de curto prazo para a de longo prazo. Na prática, a função teria um caráter evolutivo: avaliar as experiências e estratégias de sobrevivência, melhorando nossas performances em diversos aspectos da vida.

Luciano Ribeiro Pinto Júnior acredita que não há um motivo específico pelo qual sonhamos. “Tudo é fruto da atividade cerebral.” Segundo o neurologista, há estudos que comprovam a ligação entre o sono REM, o sonho e a memória, mas isso está se ampliando, já que pesquisas mostram que em outras fases também há mecanismos ligados ao armazenamento de informação. “O sono REM é importante para a memória, o aprendizado e a atividade mental. O sonho é consequência disso”, diz.

QUATRO ANOS E OITO MESES

Nossos processos de pensamento trabalham 24 horas por dia. A atividade da mente não é interrompida quando dormimos. Durante o sono, ela começa a selecionar quais informações guardaremos na memória de longo prazo e o que será descartado.

“Aparentemente, os critérios de seleção estão baseados em valores emocionais para a autopercepção, nossa ideia de quem somos e quem desejamos nos tornar”, diz Rosalind Cartwright, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Rush, em Chicago, e autora de mais 200 artigos e três livros sobre o tema.

O sonho toma entre 20% e 25% do sono. Supondo que dormimos durante 8 horas, o brasileiro, que segundo o IBGE tem uma expectativa de vida de 72,5 anos, passará 4 anos e 8 meses sonhando. Quem manda no cérebro durante esse tempo todo é o sistema límbico, que engloba estruturas como o hipocampo e a amígdala. Elas estão relacionadas à construção da memória, à resposta a agressões, ao medo e ao impulso sexual.

Segundo Rosalind, qualquer experiência que tivemos durante o dia que seja relevante aos nossos valores é reativada e conduzida para o hipocampo e o neocórtex. Quando o sono REM começa, ele transfere essa informação para a memória, procurando por experiências parelhas. “Isso forma a base do sonho”, afirma Cartwright. Ou seja, o sonho é uma mistura de imagens novas e antigas relacionadas a aspectos importantes de nós mesmos. Essa mistura é que muitas vezes torna os sonhos estranhos e surreais, como padronagens sobrepondo-se umas sobre as outras, em vez de uma história com começo, meio e fim.

A HORA DO PESADELO

Os mecanismos que desencadeiam os pesadelos se parecem com os dos sonhos. Ativam as mesmas áreas do cérebro, mas acionam circuitos diferentes. Uma pesquisa da Universidade de San José, na Califórnia, sugere que o estresse tem um papel importante nesse processo. Além disso, afirmam que os sonhos ruins possuem uma função benéfica.

Os pesquisadores dividiram os entrevistados em três grupos, de acordo com a frequência e intensidade de seus pesadelos, e avaliaram cada um em relação a fatores de estresse presentes no dia a dia. O resultado foi que aqueles que tinham mais pesadelos conseguiam lidar melhor com as dificuldades diárias, sugerindo que esse tipo de experiência proporciona mais jogo de cintura na hora de encarar os problemas.

Para Rosalind, os pesadelos ocorrem quando sentimos alguma emoção muito intensa, inesperada ou desafiante, sem nenhuma situação correspondente ou similar na memória de longo prazo para ajudar a processar aquela informação. “Isso chama a atenção da mente consciente para um grande problema a ser resolvido”, afirma.

Um trabalho liderado pela professora avaliou os sonhos de pessoas com diagnóstico de depressão. Aqueles que tiveram mais pesadelos no início do sono tinham uma probabilidade maior de estarem com os sintomas da doença controlados depois de um ano, em comparação com os que tiveram mais sonhos negativos no final da noite. Para ela, isso indica que os pesadelos que ocorrem no início do sono estão prestando esse serviço de regulação do humor e alívio do estresse, enquanto que o pesadelo tardio pode indicar uma falha nesse processo.

Mas, é claro, sonhar é melhor que ter pesadelos. Em outro estudo, Rosalind realizou testes com pessoas que estavam se divorciando. Aqueles que tiveram mais sonhos positivos com o ex-cônjuge eram também os que estavam lidando melhor com o estresse da separação, sinal de que a qualidade do sono pode ser um reflexo do estado de espírito da pessoa ou uma maneira de “calibrar” a relação.

Geralmente é quando os eventos do dia causam uma ansiedade ou excitamento emocional que os sonhos nos mostram como nós estamos refletindo sobre tais questões. “Não quer dizer que temos que prestar atenção ao significado do sonho ao acordar. Eles cumprem sua função quer prestemos atenção neles ou não”, diz Cartwright. Ou seja, mesmo que você não ligue muito para o que acontece durante o sonho, eles estão trabalhando duro para colocar seus pensamentos em ordem.

Ainda de acordo com Cartwright, aplicar na vida real o que acontece quando se está dormindo depende de entender os seus próprios sonhos. Essa linguagem não tem nada a ver com dicionários de simbologia, daqueles que associam sonhar que perdeu um dente com a morte de um conhecido e que uma cobra é sinônimo de traição.

Esse entendimento é pessoal, baseado em um sistema de códigos individual, formado pelas experiências de vida de cada um. Aí cabe a você analisar seus medos, desejos, decepções, e tentar adaptá-los ao que sonhou na noite passada. No processo, quem sabe, pode vir à luz mais um clássico da canção ocidental. Se isso não acontecer, é no mínimo reconfortante saber que a ciência está caminhando para desvendar o modo como a cabeça de Paul McCartney funcionou naquela manhã de 1964. Para os cientistas, o sonho não acabou.

Matéria publicada na Revista Galileu , em maio de 2009.

Carlos Miguel Pereira comenta*

Mesmo depois dos enormes avanços da ciência, o sono e os sonhos ainda são um profundo mistério da existência humana. Em termos fisiológicos, o sono é um momento de descanso físico, onde existe uma diminuição do consumo de energia e uma reorganização das memórias cerebrais. Para a ciência, os sonhos são um subproduto do sono, dividindo-se os estudiosos entre os que o explicam essencialmente pela produção de impulsos elétricos, sem ordem aparente, que o cérebro tenta interpretar, e os que defendem a existência de um predomínio do subconsciente, que permitiria a interpretação psicanalítica dos sonhos como desejos reprimidos e insatisfeitos.

Sem negar que estas explicações são válidas em determinados sonhos, existem algumas questões que são intrigantes na compreensão do sonho. Um estudo do físico português Hélder Bértolo, que consistiu na análise dos sonhos de cegos congênitos, permitiu verificar que existiam conteúdos visuais nesses sonhos. Ele concluiu que “os resultados demonstraram que não há grande distinção entre o sonho de um cego e o de um normovisual.” Mais informações em http://www2.fcsh.unl.pt/cadeiras/ciberjornalismo/ciber2000/invisuais/ sonhar.htm .

Como é possível que um cego de nascença possa ter sonhos visuais? A Doutrina Espírita tem uma explicação para esta e outras problemáticas, como por exemplo os sonhos inspirativos e premonitórios: Quando adormecemos, o corpo descansa e os nossos sentidos vão enfraquecendo progressivamente à medida em que penetramos em estados de sono mais profundos. O nosso Espírito aproveita o relaxamento progressivo dos órgãos físicos e vai se libertando gradualmente das amarras que o corpo físico lhe cria. Quando o desprendimento está na fase inicial, as sensações, os desejos e as preocupações da vida quotidiana misturam-se com a realidade que o Espírito experimenta. Como a atenção da alma se desvia do corpo, como já não regula as funções cerebrais, essa atividade cerebral é automática provocando alguma desordem e incoerência em algumas imagens que nos recordamos quando sonhamos. À medida que a alma se desprende cada vez mais dos liames da matéria, a ação dos sentidos psíquicos se torna predominante e mais capazes nos tornamos para assumir a plenitude espiritual, transportando-nos a um plano mais ou menos elevado do extra-físico, onde, com a ajuda desses sentidos próprios mais despertos, podemos interagir, conversar e conviver com outros Espíritos e receber as suas sugestões. A história humana está recheada de situações em que os sonhos produzem inspirações sublimes e encantadoras, transformadas em memoráveis obras de arte. Por aqui também se podem explicar os conteúdos visuais nos sonhos dos cegos congênitos. Durante o sono, a percepção visual é percebida pelos sentidos psíquicos que, nesta altura, se encontram mais despertos, e, mesmo não havendo uma recordação perfeita do seu conteúdo, o cérebro consegue registrá-los.

Como nos explica Allan Kardec em O Livro dos Espíritos :

“Isso explica porque, muitas vezes, o sonho é lúcido, repleto de cores, sons, imagens, e quando acordamos perdemos totalmente a lembrança. Ficamos apenas com as sensações no fundo da alma.

O cérebro, que é o instrumento pelo qual a mente se expressa em nível físico, é ainda muito grosseiro para registrar as impressões sutis que a mente liberta é capaz de registrar. É como se o cérebro não conseguisse decodificar as informações que lhe chegam durante o desprendimento pelo sono.”

O sono é um estado de emancipação da alma que nos permite, diariamente, o contato com a nossa verdadeira natureza. A Doutrina Espírita, antes da existência de qualquer teoria científica sobre os sonhos, já os explicava tal como a ciência atual, como uma simples manifestação cerebral, e, antes da psicanálise de Freud, como a manifestação dos desejos e preocupações humanas. Mas para além destas explicações, foi ainda mais além e reconheceu-os também como as lembranças das atividades do Espírito aproveitando o desprendimento que o sono lhe proporcionava. Um dia a ciência também chegará lá.

  • Carlos Miguel Pereira trabalha na área de informática e é morador da cidade do Porto, em Portugal. Na área espírita, é trabalhador do Centro Espírita Caridade por Amor (CECA), na cidade do Porto, e colaborador regular do Espiritismo.net.