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Se, por um lado, 51% da população se diz a favor da reserva de vagas para negros, por outro, 86% concordam que as cotas devem beneficiar pessoas pobres e de baixa renda, independente da cor. Jorge Hessen comenta.

  • Data :10 Jun, 2009
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Brasileiros veem cota como essencial e humilhante, revela Datafolha

ANTÔNIO GOIS da Folha de S. Paulo , no Rio

Polêmicas desde que começaram a ser implementadas, em 2002, no Brasil, as cotas para negros nas universidades continuam dividindo opiniões. Se, por um lado, 51% da população se diz a favor da reserva de vagas para negros, por outro, 86% concordaram com a afirmação de que as cotas deveriam beneficiar pessoas pobres e de baixa renda, independentemente da cor.

As respostas seguem contraditórias quando 53% dos brasileiros concordam que cotas são humilhantes para negros, mas, ao mesmo tempo, 62% dizem que elas são fundamentais para ampliar o acesso de toda a população à educação. Também 62% dizem que elas podem gerar atos de racismo.

Leituras diversas

Como era esperado, o resultado da pesquisa do Datafolha gerou leituras diversas de críticos e de pessoas favoráveis ao sistema.

A antropóloga Yvonne Maggie, contrária à reserva de vagas por cor ou raça, destaca a incoerência dos resultados do levantamento. Para ela, no entanto, é natural que, dependendo da forma como a pergunta é feita, a população concorde com a ideia de dar vantagens àqueles que se sentem mais discriminados.

“Quem vai negar vantagens aos que dizem ser mais discriminados? As pessoas, no entanto, acreditam no esforço pessoal e também são favoráveis ao mérito, até em percentual maior. Também acham que as cotas podem provocar racismo. Será que estão fazendo o cálculo de que é melhor racismo, contanto que as pessoas ganhem alguns privilégios?”, questiona a antropóloga.

Aceitação

Renato Ferreira, do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e defensor do sistema, diz não ter dúvidas de que há uma aceitação à política de cotas.

“Os meios de comunicação, via de regra, se manifestam contrariamente. Se sai algo positivo, quase não comentam. Se é negativo, isso reverbera. Dentro desse contexto, acho significativo que a maioria da população hoje concorde com as cotas raciais”, afirma.

Ferreira fez um levantamento que mostra que, no Brasil, já há 82 instituições públicas adotando algum critério de ação afirmativa no acesso ao vestibular, seja ele de cotas ou de bonificação extra para alunos por sua cor, renda ou tipo de escola cursada no ensino médio.

As ações afirmativas em exames de ingresso, no entanto, estão sendo contestadas numa ação que ainda não foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Até agora, essas universidades têm conseguido manter nas instâncias inferiores da Justiça seus sistemas.

O STF, porém, ainda não julgou uma ação movida pela Confenen (Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino) contra o ProUni, programa do governo federal que adota ações afirmativas na distribuição de bolsas para estudo em instituições privadas. Caso declare inconstitucional esse critério, a decisão afetará as instituições públicas.

“A Constituição determina que ninguém terá tratamento desigual perante a lei e que o acesso ao ensino superior se dá por mérito. Na reserva de vagas, há uma discriminação ao contrário, e entendemos que isso é ilegal”, diz Roberto Dornas, presidente da Confenen.

Qualidade

Enquanto não há decisão definitiva, as universidades que divulgaram resultados sobre o desempenho acadêmico dos cotistas têm defendido que isso não afetou a qualidade.

Ricardo Vieralves, reitor da Uerj, uma das pioneiras, diz que houve necessidade de criar aulas de reforço, mas que os alunos que se formam saem com a mesma qualidade. Ele afirma também que não foram registrados casos de racismo.

Adriana Pastor, 23, que entrou no curso de odontologia da Uerj graças às cotas, diz não ter percebido diferenças no desempenho entre cotistas e os demais. “Acho que fui uma das melhores alunas de minha turma e não percebi nenhum tipo de preconceito entre meus colegas. Para mim, a maior dificuldade do curso foi que o material era muito caro”, diz.

Notícia publicada na Folha Online , em 23 de novembro de 2008.

Jorge Hessen comenta*

A Carta Magna brasileira determina que “ninguém terá tratamento desigual perante a lei e o acesso ao ensino superior se dará por mérito."(1) As cotas para negros nas universidades, desde sua implantação, no Brasil, em 2002, têm dividido opiniões. Pouco mais da metade da população, ou melhor, 51% são favoráveis à reserva de vagas para negros, mas, paradoxalmente, 86% defendem as cotas para pessoas pobres e de baixa renda, independentemente de raça. O mapa estatístico retrata que 53% dos brasileiros creem que estabelecer cotas para negros é humilhá-los. Todavia, contraditoriamente, 62% concebem que elas são fundamentais para ampliar o acesso de toda a população à educação. Contudo, 62% dizem que elas (cotas) podem gerar atos de racismo. Em verdade, “a sobrevivência da ideia de raça é deletéria, por estar ligada à crença continuada de que os grupos humanos existem em uma escala de valor."(2)

Sobre a problemática racial, seja por pudor ou por uma questão de consciência, os brasileiros, atualmente, mostram-se, aparentemente, menos preconceituosos do que há uma década. Todavia, o brasileiro reconhece o preconceito no outro, mas não em si mesmo. Ou, como já definiu a historiadora da USP, Lilia Moritz Schwarcz, “todo brasileiro se sente como uma ilha de democracia racial, cercado de racistas por todos os lados”. É preocupante constatar que a ambivalência se mantém. Parece que os brasileiros jogam, cada vez mais, o preconceito para o outro. Eles são, mas eu não.

No passado, a crença de que as raças humanas possuíam diferenças biológicas substanciais e bem demarcadas contribuiu para justificar discriminação, exploração e atrocidades. Podemos encontrar o racismo em teorias, em formulações filosóficas que, em nosso País, fundamentaram, durante muito tempo, o preconceito racial e a suposta superioridade do branco. É o caso da teoria arianista do cruzamento de raças, que considerava a inferioridade econômica e cultural do Brasil como consequência da miscigenação, da mistura entre as raças.(3) O Conde de Gobineau foi o principal teórico das teorias racistas. Sua obra, “Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas”, de 1855, lançou as bases da teoria arianista, que considera a raça branca como a única pura e superior às demais, tomada como fundamento filosófico pelos nazistas, adeptos do pan-germanismo.

O racismo(4) é um tema pouco abordado nas hostes doutrinárias. A bibliografia é escassa. Os escritores e estudiosos espíritas brasileiros ainda não se debruçaram com maior profundidade sobre o assunto, exceto Herculano Pires e Deolindo Amorim, “en passant”, referiram-se ao assunto.

No bojo da literatura basilar da Terceira Revelação, Kardec ressalta que, “na reencarnação desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade."(5)

Ante os ditames da pluralidade das existências, ainda segundo Kardec, “enfraquecem-se os preconceitos de raça, os povos entram a considerar-se membros de uma grande família."(6)

Entretanto, apesar da atitude (para alguns, preconceituosa) atribuída a Kardec em relação ao negro, fruto do contexto em que viveu sobre discriminação e preconceito a determinada etnia, sua obra sai indene de todas as críticas no sentido ético. Até porque, para abordar o tema era imprescindível contextualizá-lo de acordo com teorias de superioridade racial muito em voga na época. A frenologia, por exemplo, advogava uma relação entre a inteligência e a força dos instintos em um indivíduo com suas proporções cranianas. Uma espécie de “desdobramento” pseudocientífico da fisiognomonia.

Num artigo publicado na Revista Espírita, de abril de 1862, “Frenologia espiritualista e espírita - Perfectibilidade da raça negra”(7), Kardec faz uma espécie de releitura dessa “ciência” com um enfoque espiritualista, demonstrando que o “atraso” dos negros (habitantes da África à época) não se deveria a causas biológicas, mas por seus espíritos encarnados ainda serem, relativamente, jovens.(8)

A concepção de que o homem possa encarnar na condição de branco, negro, mulato ou índio, estabelece uma ruptura com o preconceito e a discriminação raciais. Porém, na Grã-Bretanha, ainda hoje, muitos adeptos do Neo-espiritualismo rejeitam a tese da reencarnação, por não admitirem a possibilidade de terem tido encarnações em posições inferiores quanto à raça e à condição social. Com os princípios espíritas, “apaga-se, naturalmente, toda a distinção estabelecida entre os homens segundo as vantagens corpóreas e mundanas, sobre as quais o orgulho fundou castas e os estúpidos preconceitos de cor”.(9) Como se observa, uma doutrina libertária, como o Espiritismo, não compactua, sob quaisquer pretextos, com ideologias que visem a discriminação étnica entre os grupos sociais. Porém, sem dúvida alguma, o racismo brasileiro, ainda escamoteado e acobertado pelo mito da “democracia racial”, é um estigma, uma nódoa presente na mente dos brasileiros, e que faz parte do cotidiano de todos nós. Deus não concedeu superioridade natural aos homens, nem pelo nascimento, nem pela morte. Diante d’Ele, todos são iguais. Dessa forma, é mais do que lógico o próprio negro entender que somente ele poderá conquistar seu espaço nas diversas áreas do conhecimento. Ninguém fará por ele aquilo que deve ser feito para o seu próprio bem estar, e isso vale para todas as raças.

Fontes:

(1) Constituição Federal, Editora Saraiva;

(2) Sérgio Pena, autor do livro “Humanidade Sem Raças?” (Publifolha, 2008), da Série 21;

(3) Raimundo Nina Rodrigues, ensaísta, etnógrafo e sociólogo, um dos primeiros a estudar o comportamento dos negros brasileiros, e Sílvio Romero, ensaísta e historiador, foram, no começo do século, os principais elaboradores da teoria arianista, que considera a raça branca como sendo superior às demais;

(4) Segundo a acepção do “Novo Dicionário Aurélio” é “a doutrina que sustenta a superioridade de certas raças”;

(5) Kardec, Allan. A Gênese, Rio de Janeiro: Editora FEB, 2002, pág. 31;

(6) Idem, págs. 415-416;

(7) Publicado na Revista Espírita, artigo “Frenologia espiritualista e espírita - Perfectibilidade da raça negra”, de abril de 1862;

(8) Idem;

(9) Kardec, Allan. Revista Espírita de abril de 1861 págs. 297-298.

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal lotado no INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (dois livros publicados), Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.