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O papa e um bispo da igreja anglicana tentam reafirmar a realidade física do céu e do inferno. Seria mesmo desta forma? O que nos fala a Doutrina Espírita sobre este assunto? Pedro da Fonseca Vieira comenta.

  • Data :19/02/2008
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O fogo eterno queima mesmo

O papa e um bispo da igreja anglicana tentam reafirmar a realidade física do céu e do inferno

Jerônimo Teixeira

As religiões neopentecostais, com seus exorcismos e cultos performáticos, são hoje as que mais fazem alarde do céu, do inferno e do demônio. Entre os fiéis das igrejas tradicionais, as retribuições da vida eterna se tornaram um tanto abstratas, um recurso didático para incutir princípios morais nas crianças. É como se as igrejas mais antigas houvessem se secularizado, relegando idéias que antes inspiravam temor (o inferno) e esperança (o céu) para o plano das figuras de linguagem. É em resposta a esse  enfraquecimento de princípios que alguns líderes religiosos vêm  reafirmando a verdade física do céu e do inferno. No ano passado, o papa Bento XVI reiterou, em um sermão para fiéis de Roma, que o inferno não é uma imagem literária - trata-se realmente de um lugar onde as pessoas queimam por toda a eternidade. E uma das maiores autoridades teológicas da igreja anglicana, o bispo N.T. Wright, de Durham, na Inglaterra, acaba de lançar um livro que pretende esclarecer a natureza do céu - que é, defende o autor, bem menos etérea do que se imagina.

A pregação direta e assustadora de Bento XVI não diverge da linha dura que ele vem imprimindo a seu papado. O papa anterior, João Paulo II, amainou um tanto a noção de inferno, definindo-o como um lugar em que Deus está ausente. Cioso dos fundamentos do catolicismo, Bento XVI não faz mais do que relembrar o que está nos textos sagrados. O capítulo 25 do Evangelho de São Mateus, para ficar em um exemplo, é inequívoco: os colocados à esquerda de Deus,  que não deram de beber a quem teve sede nem alimentaram quem teve fome, serão banidos “para o fogo eterno destinado ao demônio e seus anjos”. A definição do bispo Wright para céu vai um pouco mais longe: ele não apenas reafirma os textos sagrados, mas também tenta desmontar uma interpretação supostamente equivocada do Novo Testamento. Em seu livro Surprised by Hope (Surpreendido pela Esperança), o teólogo anglicano contesta a visão do céu como um lugar elevado, um paraíso espiritual no meio das nuvens. Os fiéis não vão ascender aos céus, diz Wright - é Jesus que descerá à Terra, unificando-a com o plano divino. E não se viverá apenas em espírito: no Juízo Final, haverá a ressurreição da carne. Os fiéis se levantarão para tomar seu lugar junto a Jesus.

O bispo ampara-se em passagens das epístolas de São Paulo para sustentar essa visão. Ainda que seu cenário apocalíptico tenha base  bíblica, ele se choca com a iconografia cristã - basta pensar nas inúmeras pinturas renascentistas em que o céu é representado nas alturas, como um oposto exato do inferno subterrâneo. Wright diz que a visão dos mestres renascentistas provém de uma deturpação das concepções judaicas originais. “Ainda que escrito em grego, o Novo Testamento é profundamente judaico, e os judeus intuíam que a ressurreição final seria física, não só espiritual”, disse o bispo em entrevista à revista Time . A influência da filosofia grega de Platão sobre o cristianismo primitivo teria pervertido essa noção, fixando a idéia de um céu espiritual e idealizado.

A continuidade da vida após a morte tem sido um princípio fundamental de muitas religiões. Na mitologia grega, os mortos  destinavam-se ao mundo sombrio do deus Hades, guardado por monstros como Cérbero, o cão de muitas cabeças - não é de estranhar que Hades seja freqüentemente traduzido como “inferno”. As religiões monoteístas - e em particular o cristianismo - fixaram a idéia de um mundo pós-morte dividido em zonas antípodas, o céu e o inferno (com uma zona intermédia no purgatório). No século XIV, a Divina Comédia , monumental poema do italiano Dante Alighieri, deu a configuração literária definitiva a essa cosmologia. O curioso é que o Inferno de Dante, com suas descrições detalhadas e sensoriais de todo tipo de tormento e tortura, é muito mais concreto do que o Paraíso , um lugar luminoso mas pouco palpável. “Dante foi acusado de pintar um frio  retrato de Deus no Paraíso, mas a abstração nos lembra que em última análise nada conhecemos dele”, diz a historiadora da religião Karen Armstrong em Uma História de Deus . O mesmo se verifica agora, quando líderes religiosos tentam restabelecer a realidade física ao além: o inferno do papa parece mais real do que o estranho céu do bispo anglicano.

Matéria publicada em Veja.com , em 20 de fevereiro de 2008.

Pedro da Fonseca Vieira comenta*

É importante ressaltar que a Lei de Liberdade (e a Constituição Federal) asseguram a plena legitimidade de crenças e não temos o direito de censurá-las nem fazer delas rotulações e juízos de valor. A análise dos conceitos, entretanto, pode e deve ser feita objetivando a reflexão e o estudo.

A quem afirme a natureza física do céu e do inferno, resta identificar junto com os Astrofísicos onde estariam situados no Universo. Como são ambientes físicos, inequivocamente devem obedecer às leis da Física, o que nos leva à imediata conclusão de que a alma teria que ser material para conviver e se manter lá presa. Se a alma é material, criamos inúmeros problemas filosóficos e lógicos, tais como: para o céu ou o inferno, materiais, atraírem a alma, isso só pode ser feito por meio de um campo, seja gravitacional ou eletromagnético. Se a alma não tem massa mensurável, o campo necessário para atraí-la certamente seria mais do que suficiente para destruir o planeta, achatando-o ou desintegrando-o. Se formos seguindo a lógica, veremos que inúmeras inconsistências impedem que se sustente esse raciocínio por mais do que alguns minutos. Por isso é que a Doutrina Espírita situa a felicidade ou a infelicidade do Espírito - incorpóreo - em sua intimidade e o “céu” ou o “inferno” seriam representações de estados de consciência, este último, entretanto, nunca com “Deus ausente” - pelo contrário, Deus sempre presente como Pai educando seus filhos e não os abandonando.

A matéria traz ainda outro ponto interessante da fala do bispo anglicano: “os judeus intuíam que a ressurreição final seria física, não só espiritual”. O dicionário eletrônico Houaiss já repete o entendimento dado pelos Espíritos em O Livro dos Espíritos: a ressurreição da carne judaico-cristã é sinônimo de reencarnação (acepção 2 do verbete “reencarnar-(se)” do referido dicionário). Natural entender que, na impossibilidade de conceber, pelas limitações de pensamento da época, a alma como entidade imaterial independente do corpo, a noção de “retornar ao mundo” (reencarnar) devesse ter uma acepção de “retornar ao mesmo corpo” (ressuscitar). A partir do momento em que as pesquisas psíquicas em todo o mundo demonstram, por séculos, que a inteligência é extracorpórea a idéia pode se completar, mantendo a acepção original de “retornar”, mas a “outro corpo”, já que o mesmo foi decomposto e, em última instância, sua substância já forma outros corpos. Se todos ressucitassem ao mesmo tempo haveria cabeça de um grudada no braço de outro, etc, já que a matéria orgânica é a mesma.

  • Pedro da Fonseca Vieira é expositor e médium espírita. Colabora com o centenário Centro Espírita Cristófilos e com o Centro Espírita Léon Denis, no Rio de Janeiro, além de algumas outras casas.