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  • Como o Cristianismo moldou a figura de Satanás para combater outras religiões

Ao longo da história, observa-se uma correlação entre os momentos políticos e sociais e as representações do diabo. Até o século 11, segundo um pesquisador, ele quase sempre foi retratado com aparência humana. Jorge Hessen comenta.

  • Data :01/10/2018
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Edison Veiga

De Milão para a BBC News Brasil

Em uma biblioteca histórica na cidade de Tréveris, atualmente Alemanha, há um manuscrito feito provavelmente entre os anos 800 e 825 com o texto do livro bíblico do Apocalipse. Totalmente ilustrado com iluminuras. “Uma gravura mostra a luta do Arcanjo Miguel contra os anjos rebeldes. Nessa gravura, há dois grupos de anjos: os rebeldes e os que permaneceram fiéis a Deus. O interessante é que não há nenhuma distinção entre ambos os grupos, apenas a posição de cada um no quadro.

Essa é, talvez, a mais antiga representação dos demônios de que se tem notícia”, diz Edin Sued Abumanssur, professor do departamento de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Nele, o diabo é representado como um enorme dragão, mas seus companheiros rebeldes e decaídos são iguais aos anjos que os fizeram precipitar: têm asas, vestes longas, cabelos encaracolados. A única coisa que lhes falta é a aureola”, descreve a jornalista e escritora italiana Paola Giovetti, no livro “L’Angelo Caduto” (o anjo caído).

Segundo Abumanssur, ao longo da história, observa-se uma correlação entre os momentos políticos e sociais e as representações do diabo. “No campo das artes, pictórica, escultórica ou literária, a tentativa de traçar um desenvolvimento cronológico da imagem do diabo dificilmente renderá bons frutos. Há contradições e permanências em diferentes formas de representá-lo, que se superpõem sem nenhum critério claro e apreensível”, afirma o professor.

Até o século 11, conforme aponta o pesquisador, ele quase sempre foi retratado com aparência humana.

No Ocidente, a partir do ano 1000, o diabo começa a ser representado com aparência grotesca e monstruosa, entre o humano e o animal. “Na Idade Média, os processos imaginários não eram homogêneos. Grandes contingentes populacionais, espalhados por extensos territórios, em uma época na qual as comunicações e as trocas culturais eram lentas, fragmentadas e de baixa densidade, faziam com que diferentes compreensões e ideias sobre o diabo convivessem em mutualidade”, diz o pesquisador.

“Podemos afirmar com alguma margem de segurança que, a partir do século 11, características não humanas da figura do demônio começam a ganhar certa hegemonia no meio da população embora ainda sobrevivam, por essa época, representações de anjos caídos que guardam proximidade com a figura do homem.”

O escritor e semiólogo italiano Umberto Eco tratou dessa questão no livro “História da Feiura”. “É somente a partir do século 11 que ele começa a aparecer como um monstro dotado de cauda, orelhas animalescas, barbicha caprina, artelhos, patas e chifres, adquirindo também asas de morcego”, escreveu.

Vermelho e com chifres

Eco ressalta que “parece óbvio, também por motivos tradicionais, que o diabo deva ser feio”. “O feio, sob a forma do terrificante e do diabólico, faz seu ingresso no mundo cristão com o Apocalipse de São João Evangelista. Não é que faltassem menções ao demônio e ao inferno no Antigo Testamento e nos outros livros do Novo Testamento, mas nesses textos o diabo é nomeado sobretudo tudo através das ações que realiza e dos efeitos que produz (as descrições dos endemoniados nos Evangelhos, por exemplo), à exceção do Gênesis, onde assume forma de serpente”, dissertou o semiólogo. “Ele nunca aparece com a evidência ‘somática’ com que será representado na Idade Média”.

A figura mais icônica do demônio, o ser vermelho, com rabo, chifres e tridente é uma construção paulatina e gradual. “Inicia-se a partir do século 11 um processo de sistematização dogmática da figura do diabo que tenta reunir em uma síntese tanto a teologia quanto as representações do imaginário social do período e que ao mesmo tempo venha em socorro das necessidades políticas de uma ordem medieval que começa a esboroar-se”, aponta o sociólogo Abumanssur.

“A extensa iconografia do diabo dá testemunho da luta teológica e política, violenta não poucas vezes, que faz emergir aos poucos a figura de um senhor terrível, que subjuga os homens e mulheres na maldade. A imagem soberana, senhorial e majestática, inumana mesmo, do diabo, emerge lentamente no processo de consolidação do poder papal e da figura do rei autocrático como torreões de fortaleza capazes de resistir a um deus da maldade cada vez mais poderoso e antagonista da paz e da ordem.”

Tal figura é a mescla da cultura erudita dos monges e teólogo medievais com a cultura popular eivada de superstições e paganismo. “A fome, as pestes e o lento desmonte do sistema feudal cooperaram para que o diabo assumisse suas características inumanas a partir do século 11”, diz Abumanssur. “A assimilação da cultura grega e seus deuses por parte do cristianismo trouxe contribuições como os chifres, os pés de bode e o rabo, características do deus Pã. A entrada do cristianismo nos países celtas, ao norte da Europa, contribuiu para reforçar essa imagem próxima do deus Cernu, ou Cernunno.”

Conforme lembra o teólogo Volney Berkenbrock, professor de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, a versão caricata do diabo como um serzinho vermelho e chifrudo é consequência daquilo que o cristianismo procurava combater, no início, ou seja, as crenças greco-romanas.

“Nos embates de culturas - e, no caso específico, de religiões - os símbolos da religião dos outros serão postos como algo extremamente ruim e malévolo. Dessa forma, Satanás ganhou adereços de quem se estava combatendo”, explica.

“Concretamente: o cristianismo, ao combater a religião grega - e também a romana - coloca chifres no diabo por conta do Deus grego Pã, uma figura representada como meio homem, meio carneiro chifrudo, que seduzia as jovens. Da mesma forma, usa o tridente, para combater Posseidon, o Deus grego dos mares - Netuno para os romanos -, pois o tridente era o símbolo dessa divindade.”

Essa dicotomia, aponta o pesquisador, ocorre até hoje. “Um exemplo típico é como algumas igrejas cristãs identificam a figura de Exu, advinda da religião africana dos iorubanos, como o demônio”, pontua.

Cultura

As representações culturais da figura de Satanás são recorrentes desde a Idade Média. Atualmente, essa carga imagética ganha referência da cultura pop - dos filmes às histórias em quadrinhos.

“No cinema o filme “O Exorcista”, de 1974, foi um divisor de águas. Ele marcou a filmografia subsequente”, acredita Abumanssur. “Há uma imagem feita entre 1471 e 1475, de autor conversando com São Teófilo de Adana. O diabo mostra um livro a São Teófilo e, talvez, seja a primeira pintura a simbolizar um pacto com o diabo. Isso é interessante, pois marca o valor da assinatura como forma de validar acordos. Os acordos financeiros se valeram dessa mudança cultural.”

De origem hebraica, a palavra satanás significa “acusador” ou “adversário”. Suas ocorrências mais antigas, portanto, não aludem a uma figura oposta a Deus, muito menos de algo que personifique o mal. “Ele era simplesmente o acusador, quase o que hoje se poderia chamar de promotor de Justiça”, compara o teólogo Berkenbrock.

“A ideia de satanás como personificação do mal entrou para o judaísmo provavelmente por meio de influência babilônica, mais especificamente da religião de Zaratustra (o Mazdeísmo), que conhece uma figura oposta ao Deus (Ahura Mazda), figura esta chamada de Ahriman. Assim, o judaísmo passou - já no tempo de Jesus - a assumir o imaginário de uma figura contraente de Deus, usando para isto a palavra satanás.”

As palavras diabo e demônio são legado da influência grega sobre o cristianismo. Demônio (ou daimon) significa força, impulso - e passou a ser identificada como força negativa. Diabo (diabolos) é divisor, aquele que causa divisão.

Em seu livro “O Cristo Pantocrator”, a pesquisadora Wilma Steagall De Tommaso, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Museu de Arte Sacra de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião, ressalta que o contexto da Idade Média foi favorável a criação da imagem de satanás.

“A vida humana estava sempre sob ameaça. Os fardos cotidianos eram pesados. A morte era um guia constante e os moribundos se questionavam para saber se poderiam esperar a vida eterna após a morte ou as torturas do inferno”, afirma.

“O medo do além era tão presente e tão físico que era acompanhado de um temor religioso profundo. Ninguém poderia escapar do julgamento final, mas era tido como certo trabalhar durante a vida para a salvação.”

“Foi assim”, prossegue a pesquisadora, “que o tema do Juízo Final se tornou o predileto dos tímpanos - arcos situados acima da entrada da igreja - , constituindo-os num grande vetor monumental, uma grande invenção da arte românica.”

Era Deus colocado em paralelo ao diabo. A ameaça constante do mal se apossando das pessoas. “Os sermões dos padres visavam amedrontar, desgrenhando a condição humana sob cores vivas, às vezes em excesso, e representando artisticamente o destino sobre as paredes pintadas”, explica Tommaso.

“Juízo Final”, não à toa, é considerado o principal afresco da carreira do renascentista Michelangelo. Entre 1535 e 1541, o artista toscano pintou na Capela Sistina, no Vaticano, a representação artística do julgamento de Deus, narrado no livro bíblico do Apocalipse.

Outras representações

No livro “História da Feiura”, Umberto Eco lembra de outras representações da figura do mal. “Existiam em diversas culturas vários tipos de demônio”, escreveu. No Egito antigo, havia o monstro Ammut, híbrido de crocodilo, leopardo e hipopótamo. A cultura mesopotâmica tinha referências a seres de feições bestiais.

“Quanto à cultura hebraica, que influencia diretamente a cristã, é o diabo, assumindo a forma de serpente, quem tenta Eva, no Gênesis”, afirmou Eco. “Sempre na Bíblia, encontramos menções a Lilith, monstro feminino de origem babilônica que, na tradição hebraica, transforma-se em demônio feminino com rosto de mulher, longos cabelos e asas.”

Deusa adorada na Babilônia e na Mesopotâmia, Lilith era associada a ventos que, segundo se acreditava à época, traziam enfermidades e morte. Na tradição judaica antiga, ela aparece como um demônio noturno. Para os islâmicos, Lilith foi a primeira mulher do personagem bíblico Adão - e acabou acusada de ter sido ela a serpente que fez com que Eva comesse o fruto proibido.

Notícia publicada na BBC Brasil , em 8 de agosto de 2018.

Jorge Hessen* comenta

De A a Z, ou seja, de “Abaddon” da mitologia cristã a “Zulu Bangu” da mitologia africana, há mais de 200 codinomes para designar os “demônios”. Entretanto, sabemos que os “demônios”, como são caracterizados pela teologia decrépita, não são seres reais. Segundo o senso comum, a expressão “demônios” significa seres essencialmente malfazejos e seriam, como todas as coisas, criação de Deus. Ora, Deus que é soberanamente justo e bom não poderia ter criado seres predispostos ao mal para toda a eternidade.

O Espiritismo nos faz distinguir a natureza e a origem desses “demônios”, apreciando o princípio de que todos os seres humanos foram criados simples e ignorantes, portanto imperfeitos, sem conhecimentos e sem consciência do bem e do mal. Pela lei de evolução, todos nós, sem qualquer exceção, conseguiremos alcançar a relativa perfeição e gradativamente desenvolveremos virtudes a fim de avançarmos na hierarquia espiritual até alcançarmos a plena felicidade na “angelitude”.

Ainda sobre os famigerados “demônios”, o Codificador do Espiritismo nos instrui que eles são nossos irmãos, porém são Espíritos que ainda se encontram moralmente nas classes inferiores, todavia, chegará um dia em que se cansarão dos sofrimentos e compreenderão a necessidade de buscarem o bem. Os “demônios” devem, portanto, ser entendidos como referentes aos Espíritos impuros, que frequentemente não são melhores que os designados por esse nome, mas com a diferença de serem os seus estados tão-somente transitórios. Na verdade, são os Espíritos imperfeitos que resmungam contra as suas provações e por isso as sofrem por mais tempo, entretanto chegarão por sua vez livremente à perfeição, quando se dispuserem a isso.

Se houvesse “demônios”, eles seriam criação de Deus, ora, o Senhor da vida seria justo e bom se tivesse criado seres devotados eternamente ao mal e infelizes? Se há “demônios”, descrevem os Benfeitores a Kardec, “eles habitam em teu mundo inferior e em outros semelhantes. São esses homens hipócritas que fazem de um Deus justo, um Deus mau e vingativo e creem lhe serem agradáveis pelas abominações que cometem em seu nome”.(1)

O vocábulo demônio não implica na ideia de Espírito mau senão na sua acepção contemporânea, porque a terminologia grega Daimon, da qual se origina, significa “Deus”, “poder divino”, “gênio”, “inteligência”, e se utiliza para indicar os seres incorpóreos, bons ou maus, sem distinção. Porém, há pessoas que acreditam no poder do demônio e até o enaltecem em suas igrejas. Não me surpreenderia se fossem fechadas muitas igrejas se os seus dirigentes deixassem de acreditar em Satanás. (Pasme!)

Os antigos e modernos sacerdotes fizeram e fazem com os “demônios” o mesmo que com os “anjos”. Do mesmo modo que construíram a imagem de seres perfeitos desde toda a eternidade, pintaram também os Espíritos inferiores por seres perpetuamente maus. Os partidários da “doutrina dos demônios” se apóiam nas supostas repreensões do Cristo. Chegou-se ao absurdo de instituir o exorcismo para afugentamento de tais entidades.

Amparados no alarido beneditino “vade retro demônio!”, os exorcistas exortam os espíritos demoníacos a saírem do corpo dos possessos, valendo-se igualmente da invocação do nome de Deus, de Cristo e todos os anjos. Ao fim das extenuantes algazarras e invocações, sempre sob o arrimo da “reza brava”, o resultado poderá surgir de forma rápida, sem sustento duradouro.

Os espíritas compreendem que os tais “capetas”, “coisa-ruim”, “lúcifer”, “diabo”, “satanás”, “satã”, “cão”, “demo”, “besta” e outros “demônios” que reverberam na mente do povo não são seres votados por Deus à prática do mal, e sim seres humanos desencarnados que se desequilibraram em atitudes infelizes perante a vida. “Na raiz do problema encontramos a necessidade de considerar os chamados “espíritos das trevas” [demônios] por irmãos verdadeiros, requisitando compreensão e auxílio, a fim de se remanejarem do desajuste para o reequilíbrio neles mesmos.”(2)

Inexplicavelmente há instituições “espíritas” que promovem sessões de “desobsessão”, que são mais “fortes” e com efeitos “imediatos”, conforme garantem seus realizadores, contudo infelizmente nesses estranhos “tratamentos espirituais” são normatizados exclusivamente um procedimento forçoso, o afastamento instantâneo e transitório do obsessor. Mas será que esse rápido afastamento espiritual é possível? Ora, é impossível “rebentar, de um instante para outro, algemas [mentais] seculares forjadas nos compromissos recíprocos da vida em comum?”(3) Impossível, mesmo!

Referência bibliográfica:

(1) KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, questão 131, RJ: Ed. FEB, 2001;

(2) XAVIER, Francisco Cândido. Caminhos de Volta, ditado por espíritos diversos, SP: edição GEEM, 1980;

(3) XAVIER, Francisco Cândido. Missionários da Luz, pelo Espírito André Luiz. 8ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1970.

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal aposentado do INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (vinte e seis livros “eletrônicos” publicados). Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.