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  • Como ela perdoou o assassino do filho e começou trabalho de leitura para detentos

‘Em nenhum momento eu tive ódio. A família se uniu, os amigos ajudaram. Não alimentar o ódio me deu mais força. Eu só queria mais critério sobre o porte de arma. Tem pessoas que veem o porte de arma como segurança para a sua família, mas é o contrário.’ Jorge Hessen comenta.

  • Data :02 Nov, 2018
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Bárbara Forte

Do BOL, em São Paulo

Há dois anos, Isa Vilas Boas, de 48 anos, sofreu a maior perda de sua vida. O filho mais velho, Yuri Vilas Boas, morreu após levar um tiro em Poços de Caldas (MG). O crime mudou a vida de toda a família da vítima, que vive em Botelhos. Após o assassinato, a mãe do jovem transformou a tragédia em força para mudar a vida de detentos por meio da leitura.

No relato abaixo, ela conta:

“No dia do acidente, Yuri tinha passado o dia ensaiando, ele tinha uma banda e ia se apresentar em um bar em Poços de Caldas. Depois do ensaio, ele voltou para casa e, de noite, foi com os amigos da própria banda ao bar onde fariam um show na semana seguinte. Meu filho e o baterista ficaram no lugar até 3h. Lá, eles encontraram um conhecido do baterista, que saiu do estabelecimento junto com eles. O rapaz se ofereceu para ir com os dois para o apartamento do amigo de Yuri.

Quando os três chegaram, o baterista foi se trocar, enquanto Yuri e o outro jovem ficaram na cozinha.

O moço tinha ido só para conversar, mas estava com uma arma. Ele era escrivão da polícia, por isso tinha o porte. Na hora que viu o que tinha acontecido, o baterista pediu que ele [o agressor] pegasse um pano e, com medo de levar um tiro, fugiu antes mesmo de conseguir chamar o Samu.

O menino disse que Yuri não chegou a pronunciar uma frase, não houve discussão. O escrivão foi preso em flagrante e, em abril deste ano, foi julgado. A defesa alegou problemas psicológicos e disse que ele tomava remédios controlados. O juiz o condenou pelo crime, mas sem a intenção de matar. Ele passou dois anos e dois meses preso e, hoje, está solto.

Yuri era meu filho primogênito, eu tive ele com 21 anos. Em seguida tive a Cora e, mais tarde, o Enzo. Ele foi um filho muito planejado, desejado, o primeiro neto da família do Marcelo, meu marido. Quando ele nasceu, eu não trabalhava. Levava as crianças para brincar na praça, eles adoravam brincar na rua, Yuri amava videogame, os amiguinhos se reuniam em casa.

“Seu filho está morto”

Recebi mensagens de muita gente que nem me conhecia aqui de Botelhos, onde vivo com meu esposo, e de Poços de Caldas, onde Yuri morava com os irmãos (Cora, hoje com 25 anos, e Enzo, de 19) por conta da faculdade. Foi difícil de aceitar.

Mas, olhando tudo, eu penso que antes mesmo eu já estava sendo preparada por uma força divina. Eu cheguei a falar que eu estava com medo da morte. Na noite em que ele foi morto, eu não dormi, o que é incomum, e passei a madrugada vendo dois filmes - ambos retratavam a morte. Um deles, “Em busca de um caminho”, conta a história de um pai que vai para a Europa após o filho morrer no Caminho de Santiago de Compostela. Lá, ele resolve fazer o percurso que seu filho não conseguiu terminar.

Recebi a notícia na minha casa, era quase meio-dia. Antes, a polícia ligou para minha irmã, que mora em Poços de Caldas. Ela foi para Botelhos, até a casa da minha mãe, antes de todos virem para cá. Minha mãe quis me contar pessoalmente. Foi terrível. Eu falava que ele estava vivo, minha mãe me dizia que não. Foi o pior não que eu escutei na minha vida. Eu fui para Poços, eu queria ter certeza, precisava enxergar. Na hora em que o vi dentro do caixão foi um bálsamo, vi que era ele, me acalmei. Só ali eu consegui parar de tremer.

Quando me falaram do assassino, eu apenas perguntei: ele tem filhos? A resposta foi não. E depois questionei: e pais? Sim, me responderam, ele tem mãe e pai. Foi nesse momento que eu percebi que eu não aguentaria a dor de ter um filho preso.

Amor para combater violência

Em nenhum momento eu tive ódio. A família se uniu, os amigos ajudaram. Não alimentar o ódio me deu mais força.

Eu só queria mais critério sobre o porte de arma. Tem pessoas que veem o porte de arma como segurança para a sua família, mas é o contrário. Se o jovem que matou meu filho saía com a arma é porque ele se sentia seguro, mas ele transformou a vida de muita gente por um ato não pensado.

Depois que acontece, é um tiro fatal num milésimo de segundo. Eu vi o sofrimento nos olhos da mãe e do pai dele. Quando me entristeço, que não consigo dormir, eu rezo para a mãe do rapaz que matou meu filho. No dia do julgamento, eu dei um abraço no pai e na mãe dele.

Meu filho não vai voltar. O que eu procuro é ver o que eu faço para que outras pessoas não passem por isso. A educação, a gentileza, o amor são os meios mais eficientes para combater a violência.

Tem dia que a gente ainda chora, mas hoje eu criei uma rede de apoio grande. Ao expor meu luto, eu comecei a receber mensagens de outras mães que já passaram pelo mesmo. Hoje, uma segura a mão da outra, é uma maneira de me ajudar e ajudar outras pessoas.

Uma chance atrás das grades

Depois do acidente, eu comecei a buscar dar voz ao que ele [Yuri] pensava. Ele era uma pessoa do bem, que defendia a paz, as pessoas que não têm voz. Isso me fez buscar um trabalho voluntário, mas eu queria que fosse algo diferente. Foi então que, em fevereiro do ano passado, eu entrei para um projeto de incentivo à leitura em presídios.

Eu conheci o projeto através de uma sobrinha, ainda em 2016, que pediu livros para doação. Como eu sou diretora de uma escola e havia adquirido muitas obras com uma amiga, entrei em contato com o grupo de pessoas da PUC-MG, faculdade que meu filho cursou, inclusive, para doá-los. No mesmo momento pedi para participar, como voluntária, das ações na cidade de Botelhos.

O grupo atua, ainda, em detenções de Poços de Caldas e Andradas, onde há até a remissão de penas. No projeto, o detento escolhe um livro e faz uma resenha, que é lida e avaliada por uma equipe - estudantes de psicologia e direito. A cada obra, o preso tem a remissão de três dias na condenação.

Eu estava sofrendo muito naquela época, estava pensando como eu estaria se fosse o meu filho no lugar do assassino, preso, e queria ocupar meu tempo com algo para ajudar outras pessoas. Como dizem, a lambida da cadela é a cura da mordida.

Eu queria ajudar, conhecer aquela realidade. É impactante no começo. As primeiras visitas eram estranhas e, por sermos de uma cidade pequena, muitos deles me conheciam. Alguns conheciam até o assassino do meu filho. Com o tempo, eles foram se aproximando. É uma energia muito pesada, mas, ao mesmo tempo em que eu saio dali carregada, também saio leve. Um deles que eu consiga ajudar a ocupar a cabeça com algo produtivo já é uma vitória.

A primeira vez que fui ao presídio foi muito tensa, quase não conversei, apenas distribuí o material. Eu pensava muito no Yuri. A prisão tem pessoas de todos os tipos, mas tem muitos jovens também. Eu pensava como seria se fosse meu filho ali. Eles falam da saudade da família, da mãe, você começa a dar muito valor à liberdade.

O perdão por meio da fé

O filme que assisti na noite em que meu filho foi morto me fez ficar com muita vontade de fazer o Caminho de Santiago de Compostela. Um ano depois do crime, eu resolvi fazer o percurso para Aparecida, a 300 quilômetros de distância de Botelhos. Foram sete dias de caminhada na Semana Santa. Neste ano eu não iria, então o padre me chamou para dar um depoimento na semana das dores de Maria.

A sétima e última delas é a dor de perder um filho. Eu fui falando como tinha sido o processo de aceitação, e, no finalzinho, eu percebi e disse que Maria não tinha em quem pôr a culpa e teve força para perdoar tantas pessoas, então eu perdoava o assassino do meu filho.

Quando o grupo da igreja voltou a Aparecida, neste ano, o julgamento do rapaz já havia sido marcado. No final eu acabei indo e, ao longo dos 300 quilômetros, de Botelhos, no interior de Minas, até o interior paulista, fui orando para que Deus fizesse o que fosse justo, independentemente do lado.

Eu queria Justiça, mesmo, para ele. Porque nada traria meu filho de volta. Pedia que a condenação durasse o tempo para ele aprender a ser melhor, para não trazer mais sofrimento para ninguém, principalmente para a família dele. Foi isso que eu pedi. E se ele cumpriu sua pena e hoje está livre, meu perdão também valeu. Só espero que ele também se perdoe, pois eu sei que nunca mais ele vai esquecer isso. Que ele saiba conviver e encontre uma maneira de transformar tudo em luz.”

Notícia publicada no BOL Notícias , em 22 de outubro de 2018.

Jorge Hessen* comenta

Com Kardec aprendemos que devemos amar os criminosos [que nos ultrajam] como criaturas de Deus, “às quais o perdão e a misericórdia serão concedidos, se se arrependerem”(1), como também a nós, pelas faltas que cometemos contra sua lei. Não nos cabe dizer de um criminoso: é “um miserável; deve-se expurgar da terra; não é assim que nos compete falar. Que diria Jesus, se visse junto de si um desses desgraçados? Lamentá-lo-ia; considerá-lo-ia um doente bem digno de piedade; estender-lhe-ia a mão. Em realidade, não podemos fazer o mesmo; mas, pelo menos, podemos orar por ele”.(2)

No quotidiano, quando somos ofendidos por esse ou aquele motivo, quase sempre encapsulamos o desejo de revanche e mantemos o “link” mental com as forças poderosas do mal, que somadas a outras tantas circunstâncias potencializam as sombras de nossos desagravos. Naturalmente, o perdão não significa conivência com o erro, até porque atitudes de perdoar e desculpar sem limites pode incitar o criminoso à prática do mesmo ato reprovável. Isto não é perdoar, mas, subserviência ou omissão.

Ora, todos sabemos que perdoar coisas leves contra nós mesmos é relativamente fácil, porém quando se trata de algo mais grave, como um assassinato, um estupro, uma infidelidade conjugal, por exemplo, a dificuldade de superação da mágoa aumenta consideravelmente. Por isso que a Doutrina Espírita leva a refletir que o perdão será sempre o sentimento que nas superações pessoais transcendem ao próprio ser.

Escutemos as palavras de Jesus: “Ouvistes que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem e caluniam."(3) E mais: “Se perdoares aos homens as faltas que cometeram contra vós, também vosso Pai celestial vos perdoará os pecados; mas, se não perdoardes aos homens quando vos tenham ofendido, vosso Pai celestial também não vos perdoará os pecados."(4)

Não resta dúvida que aprendendo a perdoar estaremos promovendo nosso crescimento espiritual. Mas não podemos deixar-nos ensopar de hipocrisia ao ponto de dizermos que já conseguimos perdoar todos os que nos ofendem. Certamente, os agravos que nos façam não ficarão isentas das consequências naturais, mas deixemos a cargo do Criador a justa reparação.

Ouçamos o Mestre: “Aprendestes que foi dito: olho por olho e dente por dente. - Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal que vos queiram fazer; que se alguém vos bater na face direita, lhe apresenteis também a outra…"(5) Os Benfeitores advertem: “No Cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram. Jesus não quis dizer para deixarmos de reprimir o mal, mas para não pagar o mal com outro mal. Perdão é o pagamento do mal com o Bem… O perdão nivela os homens pelo que neles há de melhor, libertando quem perdoou dos maus sentimentos que o escravizavam a quem o feriu.”(6)

Refrear o desejo de vingança não é possível quando alguém sente o coração transbordar de fúria. Contudo, lembremos que entre o desejo de vingança e a execução da ação vingativa existe espaço suficiente para exercermos o livre-arbítrio, ou seja, a escolha entre o bem e o mal. A vingança será sempre uma atitude insensata e inútil, até porque, nenhum benefício trará ao nosso progresso, e, uma vez consumada, terá satisfeito, apenas, à nossa inconformação diante dos desconhecidos motivos da nossa provação.

Referências bibliográficas:

(1) Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Caridade para com os criminosos, instruções de Elisabeth de France (Havre, 1862), Rio de Janeiro: Ed. FEB, 2000, Cap. 11;

(2) Kardec, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Caridade para com os criminosos, instruções de Elisabeth de France (Havre, 1862), Rio de Janeiro: Ed. FEB, 2000, Cap. 11;

(3) Mateus, 5: 43 e 44;

(4) Mateus, 6: 14 e 15;

(5) Mateus, 5, 38 a 42;

(6) Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, RJ: Ed. FEB, 2003, cap. VI, item 5.

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal aposentado do INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (vinte e seis livros “eletrônicos” publicados). Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.