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O que compromete a credibilidade da mensagem espírita

Entrevista concedida por Pedro da Fonseca Vieira a Luzia Abdalla, em 10 de fevereiro de 2008.

1) Os espíritas têm estudado a codificação da Doutrina Espírita? Como conscientizar os trabalhadores espíritas da necessidade de se estudar primordialmente as obras básicas da codificação?

Aqui é muito mais importante a pergunta do que minha visão pessoal. Esse questionamento, se feito repetidamente, no âmbito íntimo e do Centro Espírita, levará sempre a bons resultados. Não se pode conhecer Espiritismo sem Allan Kardec, como não se pode começar a construir um prédio de seu último andar. Além de fundamentais, se corretamente estudadas, as obras básicas do Espiritismo são de agradabilíssima leitura e de aplicação imediata nos temas interessantes e necessários do dia a dia. “Redescobrir Kardec”, acredito - e espero - que seja a expressão de ordem da nova geração de espíritas que já estão entre nós.

2) Ao classificar os espíritas em categorias distintas, Allan Kardec deixou claro que as pessoas possuem um desenvolvimento espiritual diferenciado entre si. Algumas são mais aptas a compreender a Doutrina; outras, sentem dificuldades. De que forma deve o Centro Espírita se portar perante estas diferenças?

A diferenciação que Allan Kardec faz na conclusão de O Livro dos Espíritos, e repete em O Livro dos Médiuns, reflete muito mais o interesse pela Doutrina Espírita, ou a dedicação real que se dá ao Espiritismo, do que propriamente uma diferença de capacidades dos percipientes, já que as informações espíritas são muito simples e claras e entre suas lides encontram-se doutores e pessoas de menor escolaridade formal e, não raro, esses últimos aplicam melhor o conhecimento espírita em sua vida do que os primeiros. Essa diferença deve-se, portanto, a quanto nos deixamos tocar pela mensagem espírita e o quanto estamos dispostos a mudar nossa vida frente às revelações que ela nos traz. É uma questão de vontade - assim posto, fica mais difícil justificar a postura com um eventual atraso espiritual.

3) Como entender as reuniões/palestras públicas no sentido de superficialidade de conhecimento que as mesmas oferecem? Poder-se-ia entendê-las como um chamado ou um cartão de visita para os estudos doutrinários e, conseqüentemente, um estudo mais aprofundado da Doutrina Espírita?

Nem todos têm a profundidade de um Allan Kardec, que permite a todos os níveis culturais uma leitura atenta e proveitosa de sua obra, mas podemos nos espelhar nele. A experiência tem mostrado que quando usamos termos simples para explicar coisas complexas tornamos nossas exposições agradáveis a todos - o mais experiente dela extrai novas visões para suas reflexões e o mais novato o estímulo ao estudo. Tal o caráter das palestras e cartas escritas por Allan Kardec para que nos espelhemos nele. Isso não significa que o Centro Espírita não deva oferecer outras oportunidades de estudo mais aprofundado, o que é sempre salutar.

4) O desenvolvimento intelectual e moral varia de pessoa a pessoa, de que forma, então, compreender a casa espírita para abranger essa variedade diferenciada de desenvolvimento?

Responderei com Pestalozzi: 1) Ame o que vai falar; 2) Conheça o objeto de sua fala; 3) Fale de forma simples e amorosa, “da forma como uma mãe carrega um filho”. O que comove na Doutrina Espírita é sua simplicidade e sua aplicação direta nos problemas da vida. Levando a mensagem espírita, ela fará o resto, porque mesmo com as pequenas diferenças intelecto-morais, os homens todos têm as mesmas aspirações íntimas por respostas e por felicidade.

5) Ainda com relação à variedade de desenvolvimentos individuais, de que forma compreender e vivenciar as seguintes assertivas: “0 espírita é reconhecido pelo seu exemplo” - “por seu exemplo, provam que a moral espírita não é uma palavra vã e se esforçam por justificar esta notável palavra de um incrédulo: com uma tal doutrina, não se pode ser Espírita sem ser homem de bem.” (Allan Kardec, em Revista Espírita: Nov/1864)?

Allan Kardec estabelece claramente o que é ser espírita. Vale somente lembrar mais uma vez que é uma questão de vontade, de esforço e não pressupõe nenhuma necessidade excepcional já adquirida. A reflexão se somos ou não espíritas segundo esse critério é individual.

6) Sabendo-se que o compromisso do dirigente espírita é a Doutrina Espírita, como entender a luta pelo poder e pelo status que ocorre na maioria das Casas, organismos e instituições Espíritas, levando à dissidências, rupturas e outros atos, inclusive o de se abandonar a Doutrina Espírita?

Sendo feito para toda a humanidade, o Espiritismo é democrático. A mesma filosofia que agrega Espíritos iluminados e abnegados também é oportunidade para almas atrasadas e ignorantes, que não só não compreendem o objetivo da Doutrina Espírita, como a buscam utilizar para sua promoção pessoal. Infelizes desses, que serão duplamente culpados, porque viram a luz e optaram pela treva. Repetirei com um conhecido orador espírita: “eles desencarnarão”. Façamos a nossa parte, por hora e oremos por eles.

7) O movimento pró-humanização entre os trabalhadores do Centro Espírita deve ser interpretado como exercício da primeira frase da assertiva: “Espíritas, amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruí-vos, eis o segundo.” (O Espírito da Verdade, em O Evangelho segundo o Espiritismo: Cap. VI, item 5)?

Existe essa idéia, falsa e que felizmente está sendo abandonada, de que seriedade é sinônimo de sisudez (obrigado aos jovens espíritas!). O que você chama de “pró-humanização” eu chamo de Espiritismo, que sempre foi uma Doutrina absolutamente humana, que estabelece a Lei de Sociedade como base para a Lei de Progresso (veja que uma antecede a outra na parte terceira de O Livro dos Espíritos). Ou seja, o contato entre os Espíritos é absolutamente fundamental para o crescimento de todos. A redescoberta da proposta humanista da filosofia espírita pode ser um remédio para as dissidências ainda existentes por conta do orgulho e do egoísmo, repetindo Jesus: “Meus discípulos serão conhecidos por muito se amarem”.

8) Doutrina religiosa, sem dogmas propriamente ditos, sem liturgia, sem símbolos, sem sacerdócio organizado, ao contrário de quase todas as demais religiões, o Espiritismo não adota em suas reuniões, e em suas práticas, rituais, dogmas e rotinas. Como entender a prática ou adoção de alguns ou vários destes rituais no Centro Espírita, o que, por muitas vezes, acaba confundindo aqueles que vêm buscar a Doutrina Espírita pela primeira vez? De que forma, então, desvincular rituais adotados pelos encarnados no exercício da Doutrina Espírita dentro de uma casa espírita?

Abro mão de comentar os sincretismos religiosos nos quais somos especialmente capazes e me aterei aos centros espíritas. O Brasil modificou a prática espírita de forma muito notória - ou seja, se Allan Kardec entrasse hoje num Centro Espírita brasileiro, demoraria um tempo até entender que nasceu da Doutrina que ele codificou. Duas práticas que se vêem hoje em dia: o passe e água magnetizada (ou “fluidificada”) nasceram de dois imperativos - um dito por Kardec da proximidade entre o Magnetismo e o Espiritismo e outra social na busca da substituição da comunhão e da água benta. Não discuto sua utilidade ou aplicabilidade dentro das sociedades espiritistas, apenas é importante que reflitamos em relação a isso e aos demais pontos, a cada dia, se são de fato práticas porque nascem de uma utilidade ou se se transformaram em rituais, sobre os quais somos incapazes de entender o objetivo. Se essa reflexão for constante, o efeito é salutar; se for esquecida, é devastador.

9) Como combater o “Espiritismo” estranho ao projeto dos Espíritos e codificado por Kardec?

Só o conhecimento combate a ignorância. O estudo das obras espíritas e a imersão no pensamento de Allan Kardec.

10) Os centros se distanciaram das finalidades básicas a que foram criados? Por quê?

De forma geral, que tenho visto, não. A raiz religiosa do povo brasileiro permite que a finalidade moral (“básica”) do Espiritismo seja preservada, embora alguns serviços como a evocação de entes queridos, a análise das mensagens mediúnicas, a união dos médiuns promovendo o controle universal dos ensinos dos Espíritos, entre outros, estejam esquecidos. A médio prazo esse afastamento de práticas fez surgir um fenômeno interessante, em que passamos a “depender” de informações de um só ou dois Espíritos, por “médiuns consagrados”, o que, por si só, impede a atualização e a revisão dos pontos da Doutrina Espírita, porque reflete, por melhor que sejam os médiuns, a opinião de um reduzido número de entidades espirituais. O ressurgimento ou o descongelamento do Espiritismo passa, entretanto, por um necessário resgate que começa com o estudo profundo de Allan Kardec.

11) O Centro Espírita deve ser ortodoxo com relação à codificação espírita ou pode se adequar ao progresso tecnológico e científico?

Se o centro espírita for “ortodoxo” (“fiel às bases”), ele se adequará ao progresso tecnológico e científico. As duas coisas, longe de serem contrapontos, são complementares. É exatamente isso que via Allan Kardec que, além de pregar, também realizou, utilizando todos os meios à sua disposição na época para a aplicação dos conceitos de análise e divulgação do Espiritismo. Não gosto, entretanto, de qualquer denominação diferente de “espírita” - essa palavra deveria resumir tudo.

12) Como entender a pureza da prática da Doutrina Espírita?

Altivo Pamphiro, ex-presidente do Centro Espírita Léon Denis, do Rio de Janeiro, disse certa vez: “Está em Kardec, nós fazemos; não está, nós não fazemos”. Deixo essa frase do querido amigo como orientação básica.

13) No Movimento Espírita existe uma idéia generalizada de que as equipes mediúnicas não devem evocar os desencarnados nas suas sessões práticas. De que forma entender as seguintes assertivas: “os Espíritos podem comunicar-se espontaneamente, ou acudir ao nosso chamado, isto é, vir por evocação. Pensam algumas pessoas que todos devem abster-se de evocar tal ou tal Espírito e ser preferível que se espere aquele que queira comunicar-se. (…)” – “Em nossa opinião, isso é um erro. (…)” (Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns: Parte II, Cap. 25, item 269) e “Quando se deseja comunicar com determinado Espírito, é de toda necessidade evocá-lo.” (Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns: Parte II, Cap. 25, item 270)?

Da forma como deve ser entendido. Essa prevenção de que você fala é qualquer coisa, menos espírita. Veja como é sábio Allan Kardec - respondeu há quase 150 anos aos argumentos que ainda são vistos hoje.

14) Como conduzir, praticar e orientar os pedidos, solicitações e buscas por notícias do plano espiritual sobre os entes queridos já desencarnados?

Estamos num estágio em que essa prática não pode ser retomada de imediato. Os passos a se seguir são: 1) Estudar a Doutrina Espírita, aprofundar-se nos princípios espíritas e no método kardequiano pelas obras básicas, Revista Espírita e O que é o Espiritismo - estudo individual e em grupo; 2) Preparar os médiuns com um desenvolvimento mediúnico aos moldes de “O Livro dos Médiuns”, em especial prestando atenção aos detalhes, buscando informações desde cedo em testes com nomes de desencarnados e encarnados, atentando à mudança de caligrafia, às sensações dos médiuns, etc, sem preconceitos e sem tabus; 3) Estabelecer um grupo-teste, buscando concentrar-se em exercícios de percepções medianímicas conjuntas, seguindo o princípio de Kardec de que “uma reunião é um ser coletivo”. Ajustar o grupo pelos padrões de entendimento e bem querer para aumentar a força de percepção deste; 4) Quando o grupo começar a ter resultados, buscar prestar esse serviço ao público, seja mediunicamente, seja animicamente, até que este adquira confiança em si mesmo e possa desenvolver a tarefa. Vale dizer que é um dos pilares da mediunidade: seu uso no consolo do próximo. A “mediumlatria” trouxe esse efeito colateral: desenvolvimento mediúnico inadequado, incompleto ou tolido.

15) Como orientar e conduzir as mensagens psicografadas recebidas em reunião mediúnica do Centro Espírita? Deve haver, quanto a elas, o exercício do C.U.E.E. (Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos)?

Nada há que impeça tais comunicações, mas todo exercício da mediunidade deve antes ter uma finalidade útil e séria. Qual seria a finalidade do intercâmbio? Trazer consolo aos presentes? A prudência diz que, se for esse o caso, o ideal seria submetê-la a uma análise de um grupo treinado para isso, corrigi-la, julgá-la para só lê-la na semana posterior. Isso teria dupla vantagem: evitar-se-ia a divulgação de algum erro mediúnico ou idéia estranha vinda dos Espíritos e exercitaria um grupo no importante trabalho de análise mediúnica, base para o Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos, um desdobramento desse exercício.

16) De que forma entender e proporcionar a Divulgação Espírita através da mídia?

Como Allan Kardec fazia: com lógica, bom senso, método e sem preconceitos. Em 2008 comemoramos os 150 anos da Revista Espírita, que permanece sendo o mais perfeito exemplo de divulgação espírita até hoje. Allan Kardec publicava nela até artigos contrários ao Espiritismo, desde que considerados sérios e eximia-se de julgamentos precipitados sobre as coisas, embora as analisasse em termos de possibilidades. Com esse bom senso, a relação com a mídia será lenta, mas sólida, sem apelações mercadológicas que são muito mais nocivas do que úteis à Doutrina Espírita.

17) Como combater o preconceito existente na utilização da Internet como meio de estudo e divulgação doutrinária?

Analisando Allan Kardec, que utilizou todos os meios à sua disposição para a propagação da idéia espírita. Se estivesse hoje entre nós, certamente utilizaria a Internet, já que o meio é pouco importante frente ao fim da divulgação em si.

18) Como perceber, inserir e dar oportunidade de trabalho ao jovem espírita no Centro Espírita? E qual a importância disto?

Chego à conclusão de que o retorno a Allan Kardec está nas mãos dos jovens. As jovens Julie e Caroline Baudin e Ermance Dufaux foram as principais médiuns da codificação (entre 14 e 16 anos). Chico Xavier mostrava-se médium natural desde os 4 anos. Florence Cook colocou-se à disposição da incredulidade do Sir William Crookes com 14 anos de idade. Pelos jovens é que a Doutrina Espírita sempre colocou-se em movimento e é com muitíssima satisfação que vejo a inquietação dos jovens buscando informações e surpreendendo-se com a coerência de Allan Kardec. O centro espírita que alijar o jovem desse importante processo, deixando de dar-lhe oportunidade, estará cometendo um suicídio institucional. O dirigente que lhe obstar o desenvolvimento assumirá todas as conseqüências de sua loucura e dos que deixarem de ser atendidos em razão dela. “Deixai vir as mim as criancinhas”, disse Jesus. Deixai ir a Kardec os jovens!

19) O Centro Espírita tem cumprido seu papel diante da proposta da Doutrina Espírita?

É uma pergunta que cada casa tem que se fazer e, caso receba uma resposta negativa, tomar as rédeas e ousar mudar.

20) E o Espiritismo? Tem cumprido o seu papel?

Caso não esteja cumprindo, a culpa certamente não é nem da Doutrina nem de Allan Kardec. É uma reflexão íntima.