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Num mundo cada vez mais complexo, em que os desafios no convívio social aumentam em progressão geométrica, adotar regras se tornou uma questão de sobrevivência. Mas é preciso saber escolher as que funcionam. Sergio Rodrigues comenta.

  • Data :13/01/2008
  • Categoria :

A vida com instruções

Num mundo cada vez mais complexo, em que os desafios no convívio social, familiar e profissional aumentam em progressão geométrica, adotar regras se tornou uma questão de sobrevivência. Mas é preciso saber escolher as que funcionam

Okky de Souza e Vanessa Vieira

A certa altura do livro O Apanhador no Campo de Centeio , o célebre romance de J.D. Salinger, o professor Spencer diz ao aluno rebelde Holden Caulfield: “A vida é um jogo, rapaz. E ele deve ser jogado de acordo com as regras”. O Apanhador foi escrito no início dos anos 50, em um tempo em que as regras para viver em sociedade eram em sua maioria guiadas pelo instinto, pelo bom senso, pela naturalidade, dando-se chance à sorte, ao destino, às surpresas. Hoje é diferente. As regras são produzidas em linhas de montagem e viraram mercadorias cada vez mais valorizadas. Jamais houve tanta gente vendendo e comprando ensinamentos sobre como se comportar no trabalho, conquistar o parceiro ideal, ficar mais bonito, melhorar o casamento, educar os filhos, falar bem em público, ganhar mais dinheiro… A lista é interminável.

Espalhou-se com força na corrente cultural do nosso tempo uma febre por regras que, teoricamente, podem garantir sucesso no enfrentamento das mais diversas situações. A evidência mais estridente dessa febre são os livros de auto-ajuda, um ramo de negócios que no último ano, no mundo, arrecadou 8,5 bilhões de dólares. No site da livraria virtual Amazon há nada menos que 37.000 livros diferentes que carregam no título a palavra rule (regra, em inglês). A essa enxurrada de regras compiladas em livros somam-se outras tantas transmitidas em programas de TV e palestras. Elas se tornaram rotina nas empresas como forma de motivar funcionários e lhes inculcar as regras de convivência, quando não de sobrevivência, corporativa.

A busca incessante por regras resulta da necessidade de organizar a vida num mundo cada vez mais complexo em todos os aspectos. Os desafios no convívio social, familiar e profissional aumentaram em proporção geométrica. Os casamentos tradicionais perderam terreno, enquanto famílias formadas por filhos de várias uniões se tornaram mais comuns. Como educá-los na nova ordem familiar? Como devem ser as relações entre os descasados e destes com os novos companheiros de seus ex? Mais gente ainda escolhe viver sozinha, o que acarreta uma mudança na forma de ver e ser visto pela sociedade. No trabalho, os funcionários de perfil tradicional, especializados em sua função, deram lugar à exigência de que todos na empresa tenham habilidades múltiplas. Além do mais, a pressão da sociedade para obter sucesso na vida profissional a todo custo é tremenda. Paralelamente a isso, o volume de informações que circulam pelos meios de comunicação e pela internet é uma algaravia. Todas essas mudanças causam perplexidade e, sobretudo, fazem com que as relações humanas sejam mais complicadas e conturbadas. Daí a necessidade de buscar regras que tornem menos dolorosa, ou mais prazerosa, a adaptação ao admirável mundo novo. Um mundo, enfim, que exige manual de instruções. “A globalização e a crise de valores provocada pela rápida mudança nos costumes no século XX criaram um vácuo de paradigmas na sociedade. Por isso as pessoas buscam novas regras em que se apoiar”, diz Roberto Romano, professor de ética da Universidade Estadual de Campinas.

Na pré-história, quando os homens eram apenas caçadores e coletores, não havia grande necessidade de regras senão aquelas básicas, ditadas pela frágil condição humana diante das forças descomunais da natureza. A escassez de espaço e de comida no período subseqüente, o da Idade do Gelo, que se encerrou há 11.000 anos, desencadearia a criação de regras que acompanham a humanidade desde então. Nossos antepassados tiveram a necessidade premente de estabelecer normas mais complexas de convivência. Foi nesse período que o Cro-Magnon, o Homo sapiens , desenvolveu os conceitos de família, de religião e de convivência social. Sabe-se disso porque os homens da Idade do Gelo legaram evidências arqueológicas de uma revolução criativa que inclui desde os espetaculares desenhos nas cavernas até os rituais de sepultamento dos mortos. “Naquele período, era preciso definir quem pertencia à família ou não, e com quem se deveriam compartilhar os alimentos. Portanto, era necessário criar regras específicas”, disse a VEJA a arqueóloga Olga Soffer, da Universidade de Illinois. “Podemos afirmar que as primeiras regras sobre propriedade foram criadas nessa fase. Enquanto o território pertencia ao grupo, algumas categorias de objetos passaram a ser individuais”, diz o antropólogo Ian Tattersall, curador do Museu Americano de História Natural, em Nova York. Boa parte das regras de convivência social que hoje recheiam os manuais tem como base esse conjunto de normas ancestrais: não mate, não roube, respeite pai e mãe, proteja-se do desconhecido, tema o invisível… As religiões em seu aspecto comunitário nada mais são do que criadoras e garantidoras do cumprimento de regras sob pena da punição divina. Os Dez Mandamentos, base do judaísmo e do cristianismo, são um exemplo notável disso. As regras menores desciam a detalhes quase inimagináveis, como a proibição de usar uma vestimenta feita com dois materiais diferentes, conforme prescreve o Velho Testamento.

É impossível imaginar, portanto, o avanço da civilização humana sem o estabelecimento de regras. Elas nos trouxeram até aqui. Paradoxalmente, a quebra de regras também propiciou grandes saltos evolutivos. Mas, mesmo quando elas são quebradas, precisam ser substituídas por outras. Isso porque as regras garantem não só a ordem e a proporção como a transmissão de conhecimento. São famosos os exemplos de duas escolas inglesas, Summerhill e Dartington, criadas no início do século XX, na Inglaterra. Elas tentaram formar jovens livres da imposição de regras e pregavam o “autogoverno” dos alunos. Eles não eram obrigados a assistir às aulas, não precisavam fazer o dever de casa e só compareciam às provas se quisessem. Intelectuais como o filósofo Bertrand Russell e o escritor Aldous Huxley apressaram-se em enviar seus filhos para estudar em Dartington. Nos anos 60 e 70, décadas da contracultura, Summerhill chegou, inclusive, a ser considerada uma referência para a modernização das escolas do mundo todo. Dartington foi fechada em 1987, depois de uma série de escândalos envolvendo drogas e sexo entre menores de idade. Summerhill ainda funciona, mas vive ameaçada de fechamento pelo governo britânico, sob a alegação de que os estudantes deixam a escola sem os conhecimentos necessários para entrar na universidade. Ou seja, o vazio de regras leva ao vácuo comportamental e intelectual. “Quanto mais complexa e diversificada uma sociedade, maior a necessidade de regras que equilibrem direitos, deveres e privilégios”, diz o antropólogo Roberto DaMatta, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A questão que se coloca, hoje, não é sobre a necessidade ou não de regras. É se não estão sendo criadas regras demais, além da conta mesmo num mundo mais complicado que o de cinqüenta anos atrás. Pautar-se pelos manuais de auto-ajuda, o aspecto mais visível do excesso de normas, não tornaria a existência mais burocrática e previsível? O psicoterapeuta Eduardo Ferreira-Santos, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, acha que sim. Diz ele: “A busca pelas regras prontas sufoca a espontaneidade, a capacidade humana de encontrar respostas novas para novas perguntas. Os manuais com regras para relacionamentos amorosos e educação infantil, por exemplo, desprezam o fato de que nem todos os pais e filhos são iguais. Cada um tem uma história e uma personalidade diferentes”. Correto. Regras rígidas levam ao aprisionamento do físico e da alma. Elas são essenciais, porém, para a criação de uma base comum de entendimento da realidade. Elas ajudam a valorizar e a medir os eventos naturais e humanos, dando-lhes uma gradação. O que separa o acrobata de circo do ginasta olímpico? Ora, as regras. Um acrobata pode encantar, mesmerizar, tirar o fôlego da platéia. Outro acrobata entra no picadeiro e desperta as mesmas emoções. Quem é o melhor? Ninguém sabe. Talvez a intensidade dos aplausos seja um indicador de quem mais agradou, mas a questão de quem é o melhor permanece em aberto. Em uma Olimpíada as regras ajudam a apontar, sem muita contestação, quem é o melhor. O atleta olímpico é obrigado a desempenhar uma série mínima de rotinas seguidas de outras manobras que podem ser metrificadas e comparadas e recebe uma nota de zero a 10. O fenômeno que ocorre no mundo atual com uma força avassaladora é justamente esse. Nos mais recônditos domínios da vida humana, as regras e as notas estão substituindo o que antes era apenas uma avaliação mais livre das coisas. O que era apenas graça e ousadia está se tornando cada vez mais treino e segurança. Isso é ruim? Isso é bom? Nem um nem outro. É inevitável.

O desafio que se coloca ao bom senso de cada um é justamente definir quando as regras estão deixando de ser balizamentos saudáveis para se tornar uma prisão. Isso vale para os relacionamentos, para as dietas de emagrecimento e para a política de uso dos computadores pelas crianças da casa. Vale para o código de conduta esperado dos filhos e dos amigos. Vale para o modo de se vestir. Qual o limite? Depende de cada um e de todos, pois as regras só são regras quando aceitas por unanimidade. As mais simples são sempre as melhores. Um livro com o título Como um Cavalheiro Deve Se Vestir pode parecer algo do século XIX, tão anacrônico quanto as polainas, tão inútil como os tílburis. Mas um livro com esse nome existe e é sucesso de vendas na cadeia de lojas de roupas masculinas Brooks Brothers dos Estados Unidos. Seus conselhos são práticos e sábios. No capítulo “Como deve se vestir um cavalheiro para uma entrevista de trabalho”, o livro informa que ele deve se vestir da maneira como se vestem as pessoas que já ocupam a posição que ele busca. Ou seja, seria um erro vestir-se como um professor de pré-primário quando se é entrevistado por um selecionador de uma empresa de advocacia. Sábio conselho.

A mesma atitude se deve adotar para diferenciar os manuais de auto-ajuda que contêm regras válidas e razoáveis daqueles que são meros caça-níqueis. O melhor aval, naturalmente, são as qualificações do autor. O médico americano Michael Roizen, considerado uma sumidade na área da longevidade humana, tornou-se um bem-sucedido autor de manuais de auto-ajuda sobre saúde. Seu lançamento mais recente, O Corpo Inteligente , em parceria com o colega Mehmet Oz, vendeu 2,5 milhões de cópias apenas nos Estados Unidos. Ninguém duvida das qualificações de Roizen e, portanto, seus manuais de popularização da medicina, recheados de regras práticas para viver mais e melhor, desfrutam credibilidade. A Universidade Harvard, uma das mais conceituadas instituições de ensino americanas, edita regularmente uma série de manuais médicos com conselhos e regras sobre os mais variados aspectos relacionados à saúde. Escritos com rigor científico, mas em linguagem para leigos, também são um bom exemplo de auto-ajuda.

Outro critério para se orientar no cipoal das obras de auto-ajuda é a longevidade de seu sucesso. Em nenhuma área a febre de consumir regras é tão evidente quanto no mundo dos negócios. Uma miríade de manuais chega às livrarias todo ano, e a maioria deles cai no esquecimento. Uma das obras pioneiras do gênero, Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas , do vendedor americano Dale Carnegie (1888-1955), foi lançada em 1937 e já vendeu 50 milhões de cópias. Até hoje é usada em cursos de treinamento profissional de executivos. Seu segredo é o grande conhecimento que o autor tem das relações humanas. As regras que sugere são gerais e versam basicamente sobre a arte de se comunicar. “Conselhos muito específicos podem levar um funcionário ou executivo a decisões que vão contra os interesses da empresa”, diz a paulista Lilian Guimarães, ex-diretora de recursos humanos de um grande banco. A psicóloga Lídia Aratangy, autora de O Anel que Tu Me Deste – O Casamento no Divã , avalia que os manuais com conselhos e regras para casais devem ser olhados com especial desconfiança. “Inclusive porque há muitas oposições impossíveis de ser contempladas. O que para um é respeito para o outro é pouco-caso ou abandono. O que para um é demonstração de carinho para o outro é invasão de privacidade”, ela comenta.

Se os manuais de auto-ajuda são desprezados por muita gente, não falta quem diga que teve a vida transformada por suas regras. O exemplo mais célebre é o do americano Morris Goodman, um ex-corretor de seguros. Em 1981, sofreu um desastre de avião que o deixou paralisado numa cama. Embora ele estivesse consciente, todas as suas funções vitais eram monitoradas por aparelhos. Apenas oito meses depois do acidente, Goodman saiu do hospital andando e ganhou o apelido de “Miracle Man” (Homem-Milagre). Ele credita sua recuperação às intermináveis horas que passou ouvindo os conselhos de Zig Ziglar, um palestrante motivacional que presta serviços a grandes empresas americanas. “O principal conteúdo das fitas eram mensagens de esperança, de inspiração, embutidas em regras para a manutenção de uma atitude de persistência, de nunca desistir. Essas regras ajudaram a me concentrar nos meus objetivos e desligar a mente de todas as coisas negativas que eu vinha escutando da equipe médica”, contou Goodman a VEJA. É evidente que a recuperação de Goodman se deve aos tratamentos que recebeu e à capacidade de recuperação de seu organismo, mas as fitas que ouvia certamente o ajudaram a atravessar os longos meses de agonia. Esse é o papel da auto-ajuda: fornecer regras para levantar o astral nos momentos difíceis. No mundo complexo de hoje, eles são cada vez mais freqüentes. Mas é preciso que cada um selecione as normas que mais lhe convêm e que elas não se transformem em camisas-de-força. Romper com certas regras em determinados momentos é também uma norma a ser observada, para quem busca o sucesso e a felicidade pessoal e profissional.

Matéria publicada em Veja.com , em 9 de janeiro de 2008.

Sergio Rodrigues comenta*

O texto nos incita a uma reflexão sobre este interessante aspecto comportamental adotado pela sociedade atual: a normatização do comportamento, visando sempre a obtenção do máximo em resultados.

A cada dia, a vida moderna nos traz maiores comodidades, com  maiores possibilidades de conquistas materiais que o progresso tecnológico nos oferece. No campo das comunicações, aumenta, de modo crescente, a quantidade de informações que recebemos,  tornando, em conseqüência, as pessoas mais informadas e melhores capacitadas para a busca dessas conquistas. A competição passa a ser exercida de modo exacerbado em todos os setores da vida de relação.

Mas não apenas nas questões que envolvem valores materiais, como a disputa por emprego, por exemplo, a sociedade vem buscando encontrar um modo de proceder que melhor atenda à busca da felicidade. Também o relacionamento familiar sofreu a influência do progresso realizado no campo do conhecimento. Crianças mais espertas, detentoras de mais informações que a geração de seus pais, tornaram cada vez mais complexo o relacionamento entre pais e filhos e, conseqüentemente, exigindo métodos educacionais diferentes, mais condizentes com a nova realidade. Até mesmo a dissolubilidade do casamento, mencionada na matéria e que antes era considerada um tabu, hoje é uma realidade que acontece rotineiramente, atingindo inúmeros casais e criando uma situação nova, até então pouco comum, que suscita dúvida sobre como administrá-la: o relacionamento entre o(a) “ex” e o(a) novo(a) companheiro(a) e com os filhos trazidos do relacionamento rompido.

Todos esse fatores sociólógicos somados criaram um ambiente favorável ao aparecimento dos livros com que se ocupa a matéria, propondo padrões de comportamento que seus autores consideram mais adequados à obtenção dos objetivos pretendidos ou do chamado “sucesso”. São os ditadores de regras, propondo modos de procedimentos que consideram os mais eficientes em tais casos.

O que ocorre, na verdade, é que esse modismo acaba interferindo num dos mais sagrados direitos que o ser humano deve usufruir e que deve ser tâo amplo e irrestrito quanto possível, que é o direito de liberdade. Liberdade de pensar, de fazer escolhas, de agir, de consciência. Na dúvida sobre como proceder em situações semelhantes às apontadas, dentre outras que se nos apresentam na vida de relação, o homem passa a seguir, de maneira, muitas das vezes, como autômatos, de maneira impensada e contrária ao que dita a sua consciência, aceitando as normas estebelecidas pela sociedade, através desses formadores de opinião.

Premido pelas circunstâncias e na ilusão de que as fórmulas recomendades são infalíveis, o homem, em muitos casos, se “artificializa”, deixando de ser ele mesmo para se transformar num “eu programado”, imaginando tornar-se um protótipo do sucesso. Porém, nem sempre esse ser artificial, ditado pelo “manual de instrução” aplicável à ocasião, obtém o êxito pretendido e, então, resta a frustração por não ver recompensada a violação de seu modo de ser, ou, em última análise, da sua personalidade.

Refletindo a respeito, concluímos que o melhor ainda é agirmos conforme a nossa consciência nos direcione, sem o constrangimento de agir em desacordo com o nosso modo de pensar e sem nos tornarmos hipócritas. Deixemos que esses manuais de instrução continuem trazendo prosperidade para a indústria editorial, sem nos comprometermos com suas regras.

*Sergio Rodrigues é espírita e colaborador do Espiritismo.Net.