Como destacamos em artigo anterior,1 a diversidade entre as denominações cristãs ou cristianismos não é apenas um fenômeno atual. Mesmo entre os cristãos da Antiguidade, que certamente mantinham pontos doutrinários em comum, é possível observar ideias discordantes, que ora se aproximam, ora se afastam das atuais conclusões espíritas e das demais tradições religiosas. Nessa direção, podemos assumir que preceitos espíritas já permeavam a tradição cristã em sua infância em meio há pensamentos contrários, mesmo antes da institucionalização da Igreja.
Como também apontamos, essa diversidade se manifesta, por exemplo, nos textos cristãos dos séculos II e III, início do período da História do Cristianismo denominado Patrística, que reúne um “conjunto de escritos primitivos da era cristã, registrando suas experiências, seus ensinamentos, seus rituais e a vida eclesial” 2 . Esse conjunto de textos recebeu algumas menções de Kardec 3 e certa atenção de Léon Denis,4 contudo, guarda ainda uma enorme riqueza a ser explorada pelos espíritas. Seu estudo, por exemplo, pode trazer mais lucidez sobre a presença de ideias semelhantes às espíritas entre as primeiras comunidades cristãs, logo apontar a plausibilidade de episódios narrados em obras mediúnicas que abordam esse período, como as ditadas pelo Espírito Emmanuel a Chico Xavier.
Nessa direção, perante a impossibilidade de se provar a veracidade histórica de boa parte dos episódios apresentados mediunicamente, entendemos como fundamental investigar sua coerência com as informações que temos de outras fontes que se aproximam do contexto, da cultura e da mentalidade dessas comunidades cristãs. Falar de plausibilidade é falar de certos paradigmas adotados pela historiografia mais recente, que não apresenta certezas e resultados absolutos, mas probabilidades.5 Podemos, na melhor das hipóteses, concluir com certa probabilidade que tal ou qual pensamento fazia parte das comunidades cristãs dos séculos II e III. Já aplicável à pesquisa histórica, entendemos que este também é um dos critérios válidos para a análise de obras mediúnicas de caráter histórico, como as que abordaremos aqui.6 Como veremos, há textos cristãos desse período que corroboram informações trazidas por Emmanuel.
Duas de suas obras, particularmente, referem-se ao segundo e ao terceiro séculos, respectivamente: “Cinquenta anos depois” e “Ave, Cristo!”. Em ambas, a crença na reencarnação, alvo desse artigo, é registrada entre cristãos de diferentes comunidades.
Na obra “Cinquenta anos depois”, que descreve episódios da primeira metade do século II, vamos encontrar a cristã romana Célia declarando sentir em seu espírito “o peso de uma idade milenar” e acreditar no enriquecimento das almas “no campo das experiências humanas”, o que parece ter deduzido da leitura de autores gregos. Em Antipátris, na Samaria, instruída pelo escravo cristão Ciro, confirma essa crença reencarnacionista nos próprios textos cristãos, como na famosa orientação à Nicodemos sobre a necessidade de se “nascer de novo” (Jo 3:7). Todavia, interessante é a explicação que Emmanuel nos traz sobre Ciro: não havia deduzido a reencarnação dos textos cristãos, nem dos gregos, mas de sua vivência anterior na Índia, o que lhe permitia “interpretar com simplicidade e clareza de raciocínio” passagens como essa acima.7
Na mesma obra, anos depois, quando Célia vive disfarçada como Irmão Marinho em comunidade cristã próxima a Alexandria, recebe mediunicamente informações sobre encarnações anteriores de Ciro, bem como sobre as causas expiatórias de sua reencarnação recente.8 Contudo, não fica claro na obra se aquela comunidade partilhava de suas convicções.
Em “Ave, Cristo!”, porém, que apresenta episódios do século III, somos informados que na igreja de Alexandria as ideias de Pitágoras eram estudadas, particularmente a de que “nascemos muitas vezes na Terra”. Essa referência é feita pelo cristão Corvino nas catacumbas de Roma, também partindo da conversa de Jesus com Nicodemos.9 Todavia, é de sua igreja de origem, em Lyon, que temos informações mais precisas. Entre os lioneses, muitos “relacionam-se com os mortos” e parecem, nas palavras de Corvino, crer que “morreremos e renasceremos muitas vezes”.10 Anos depois, o cristão Basílio, de origem romana e membro da comunidade de Lyon, retoma o tema de forma ainda mais explícita, localizando a origem de suas crenças reencarnacionistas em experiência pretérita no Egito, “em cogitações profundas sobre a transmigração das almas”, e em pesquisas nos arquivos da Índia védica, da Pérsia, da Grécia e do próprio Egito.11
Todavia, dado o caráter aparentemente minoritário da crença reencarnacionista em toda a História do Cristianismo, são plausíveis as informações trazidas por Emmanuel? É possível que realmente houvesse comunidades cristãs que partilhassem desse pensamento na Antiguidade? Sim, e o próprio texto de Emmanuel faz referência a importante figura da igreja de Lyon, cujos registros parecem apoiar essa conclusão.
Segundo ele, os cristãos lioneses guardavam as “mais vivas tradições do evangelho”, tanto em relíquias do apóstolo João e de outros cristãos da primeira hora, como no quase intacto “espírito piedoso da comunidade de Jerusalém”. No trabalho social, na educação da infância, na cooperação fraternal entre seus membros, na capacidade de sacrifício pessoal, bem como no campo dos estudos teológicos, destacavam-se entre as igrejas do período. Dentre eles, destacou-se Ireneu, que fora aprendiz de Policarpo de Esmirna, um discípulo direto do apóstolo João, e “grande bispo e orientador da coletividade evangélica da cidade”.12 Em sua notável obra Cristianismo e Espiritismo, Léon Denis cita Ireneu em dois momentos: quando este defende a importância da tradição oral na divulgação do Cristo e quando comenta a famosa frase de Jesus “sois deuses” (Jo 10:34).13
Personagem importante da tradição cristã, nasceu em torno do ano 140 d.C. em Esmirna, no litoral da atual Turquia, onde foi evangelizado pelo já citado Policarpo. Por volta do ano 180, sob boas recomendações por parte das lideranças de Lyon e Viena, foi a Roma entregar algumas cartas ao bispo da cidade, em meio a perseguições do Império e dissenções entre os próprios cristãos. Indo de Roma para Lyon, acabou eleito bispo da cidade onde desenvolveria intenso trabalho e concluiria suas importantes obras. Tradições apontam para sua morte com aproximadamente 70 anos, martirizado por cristãos “heréticos” ou num massacre geral de cristãos lioneses em torno do ano 200. 14
Segundo Emmanuel,
Ireneu dedicara-se a minuciosas observações da Escritura. Manejando o grego e o latim com grande mestria, escreveu expressivos trabalhos, refutando os adversários da Boa-Nova, preservando as tradições apostólicas e orientando os diversos serviços da edificação cristã. 15
Nessa direção, seu texto mais importante, Contra as heresias, foi escrito entre os anos 170 e 200 e, como indica o próprio nome, teve por objetivo principal refutar os pensamentos que contrariavam a incipiente ortodoxia cristã. Ireneu conhecia muito bem a tradição bíblica, mas também as ideias gregas de Platão, que, segundo ele, teriam influenciado certas concepções cristãs equivocadas e deveriam ser, em boa parte, rejeitadas.16
Algo que buscou refutar com ênfase foi a ideia de reencarnação entre alguns cristãos. Por exemplo, segundo Ireneu, para o cristão Carpócrates e seus discípulos, “as almas, pelas passagens sucessivas nos corpos, devem experimentar todo tipo de vida e todas as ações, a menos que alguém faça tudo numa só vez e numa só passagem”, ou, em outras palavras, “é preciso que às almas, feitas todas as experiências da vida, ao sair dos corpos, não lhes falte nenhuma, porque, se por acaso faltar alguma coisa à liberdade deles, serão obrigados a voltar em outro corpo”. Segundo eles, quando Jesus diz que não sairemos da prisão antes de pagar “o último centavo” (Lc 12:58-59), é exatamente disso que está falando. Para Ireneu, contudo, essas ideias “não somente nos são proibidas de dizer ou de experimentar, mas até de pensar e de acreditar que possam acontecer com alguém que vive nas mesmas cidades onde nós estamos”.17
Em outro trecho, também criticando posições cristãs equivocadas em seu entendimento, diz recusar a ideia de “transmigração das almas de corpo em corpo pelo fato de elas não se lembrarem do passado”. Afinal, “se foram enviadas a este mundo para praticar todas as ações, deveriam lembrar-se daquelas que já fizeram para completar o que ainda falta e não ter que se envolver sempre nas mesmas experiências”. Entre outros argumentos e críticas ao próprio Platão, utiliza os registros dos profetas hebreus a seu favor: se guardam lembrança de suas experiências extáticas e “comunicam aos outros o que viram e entenderam espiritualmente durante as visões celestes”, deveriam também se lembrar das vidas passadas.18 Para ele, a própria parábola do rico e Lázaro (Lc 16:19-31) atesta que as almas guardam lembranças de sua vida no mundo terrestre, logo deveriam mantê-las se viessem a renascer, o que não ocorre.19 Interessante é que Kardec lidou com argumentos semelhantes e apresentou excelentes respostas em O Evangelho segundo o Espiritismo.20
A leitura que Ireneu também faz de outros trechos bíblicos (Is 26:19 e 66:13-14; Ez 37:1-14 etc.),21 nos quais nós espíritas poderíamos enxergar indícios de um pensamento reencarnacionista, reforça o entendimento que se tornaria tradicional no mundo católico e protestante: não há reencarnação, mas ressurreição futura dos mesmos corpos. Todavia, destacando o objetivo central do artigo, temos em Contra as heresias o indício textual de que havia cristãos que pensavam de forma diferente, como nos apresenta Emmanuel. Em verdade, outros preceitos espíritas, como a mediunidade,22 são também atestados por Ireneu e criticados por ele, mostrando que semelhanças entre as práticas de alguns cristãos da Antiguidade e as práticas espíritas atuais são plausíveis. Por exemplo, tratando do que nos parece algo próximo a uma reunião mediúnica, critica o cristão Marcos, que dá ordens, “nos seus jantares, a toda essa gente brincando de oráculos, ordenando uns aos outros profetizarem coisas que são do seu desejo”. Todavia, “os espíritos que recebem ordens deles, que falam quando eles querem, são terrenos e fracos, temerários e irreverentes, são enviados por Satanás”.23
Os cristãos criticados por Ireneu são denominados por ele gnósticos. Até a descoberta dos textos gnósticos em Nag Hammadi em 1945,24 seu texto foi a melhor fonte para o conhecimento desses grupos no século II.25 Dentre esses textos, famosos se tornaram o Evangelho de Tomé e o Evangelho de Felipe, não comentados por Ireneu. O Gnosticismo, enquanto conjunto de sistemas de pensamento religioso manifestados na Antiguidade, permeou também o cristianismo nascente. Ainda que vasto, variado e complexo, tem por característica central um forte dualismo em diversos sentidos, como na divisão radical entre iniciados e não-iniciados no conhecimento verdadeiro (gnose), entre um mundo terrestre maligno e um mundo celestial bom, entre o Bem e o Mal, entre alma e corpo etc.26 Nos textos citados por Ireneu e nos manuscritos de Nag Hammadi, muitos de visível autoria cristã, podemos encontrar proximidades com o pensamento cristão majoritário antigo e mesmo com o pensamento espírita, contudo muitas divergências em várias direções. Por exemplo, ainda que o Espiritismo claramente defina espírito e matéria como princípios diferentes e entenda o desapego material como condição de salvação, não considera a matéria como fonte dos problemas humanos nem propõe seu abandono radical.27 De qualquer forma, como dissemos sobre os textos da Patrística, entendemos que uma leitura espírita dessas obras pode ser bem interessante e produzir ricas análises comparativas.
Concluindo, compreendemos, a partir dos textos de Ireneu de Lyon, que são plausíveis as descrições de Emmanuel sobre cristãos que acreditavam na reencarnação nos séculos II e III nas localidades que citamos. Em outras palavras, ainda que não possamos provar a veracidade do que é narrado em suas obras, há textos não mediúnicos de autoria e datação bem atestadas que descrevem pensamentos semelhantes entre cristãos da Antiguidade. Naturalmente, nada podemos concluir sobre o grau de penetração desse pensamento no mundo cristão como um todo, nem que os cristãos apresentados em “Ave, Cristo!” e “Cinquenta anos depois” fossem gnósticos.
Outros pontos também merecem destaque. Mesmo que Emmanuel pareça elogiar a postura de Ireneu como refutador dos “adversários da Boa-Nova”, notável é que a reencarnação, princípio fundamental do Espiritismo, seja também refutada. Isso, contudo, não desmerece a importante atuação de Ireneu como defensor de outros princípios básicos cristãos, nem o comentário de Emmanuel. De qualquer forma, está em Ireneu uma das primeiras manifestações sistemáticas cristãs contra heresias e a favor de um pensamento ortodoxo.
Além disso, interessante é o cuidado de Emmanuel em descrever as origens da interpretação reencarnacionista como externas ao texto bíblico. Todos os cristãos citados declararam ter aprendido esse conceito a partir de outras tradições religiosas, como as gregas, indianas, egípcias e persas, e não de cristãos ou escritos cristãos anteriores. Apenas com essas perspectivas enxergaram na citada conversa de Jesus com Nicodemos uma referência à reencarnação. Isso também indica a pluralidade de influências de outras religiosidades e filosofias, além das judaicas, na constituição da doutrina cristã.
Nesse sentido, enfatizamos novamente a diversidade do pensamento cristão já na Antiguidade, que inclui conclusões semelhantes às espíritas dentre outras bem diferentes, frutos das reflexões dos que tentavam entender, como nós, a mensagem, os exemplos e os episódios extraordinários em torno da figura de Jesus e dos apóstolos. Esse pensamento nos convida a uma postura mais compreensiva perante as demais tradições cristãs, do passado e do presente, sem, contudo, relativizar a posição espírita. Quanto ao ponto central do texto, entendemos que o princípio espírita da pluralidade das existências contém a explicação mais racional e justa para várias questões fundamentais da humanidade.
REFERÊNCIAS:
SILVA, Daniel Salomão. Espíritos e demônios no século II. Revista Reformador, FEB, ano 143, ed. 2353, p. 47 a 52, Abril/2025. ↩︎
BOGAZ, Antônio S; et al. Patrística: caminhos da tradição cristã. 2. ed., São Paulo: Paulus, 2008, p. 25 e 26. ↩︎
KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos, ano III: 1860. 2ª ed., Catanduva: EDICEL, 2017, p. 335 [outubro]; KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2009, “Terceiro diálogo - O padre”, p. 125. ↩︎
DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2008, c. 4, 5, entre outros. ↩︎
No que se refere ao Cristianismo Primitivo, boas introduções a esse critério estão em MEIER, J. P. Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1992, v. 1.; CHARLESWORTH, J. H. Jesus dentro do Judaísmo: novas revelações a partir de estimulantes descobertas arqueológicas. 3. ed., Rio de Janeiro: Imago, 1992; e POWELL, M. A. Jesus as a figure in History: how modern historians view the man from Galilee. Westminster: J. Knox Press, 1998. ↩︎
Temos pensado dessa forma em artigos recentes, como em SILVA, Daniel Salomão. Gamaliel e a Epístola aos Hebreus. Revista Reformador, FEB, n. 2340, p. 44 a 49, mar/2024; Paulo e a médium de Filipos. Revista Reformador, FEB, n. 2330, p. 38 a 44, mai/2023 etc. ↩︎
XAVIER, Francisco C. Cinquenta anos depois. Pelo Espírito Emmanuel. 34. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2020, 1. p., c. 2, p. 35 a 41. ↩︎
Idem, 2. p., c. 6, p. 250 e 251. ↩︎
XAVIER, Francisco C. Ave, Cristo! Pelo Espírito Emmanuel. 24. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2020, 1. p., c. 2, p. 41. ↩︎
Idem, 1. p., c. 3, p. 55. ↩︎
Idem, 2. p., c. 2, p. 167 e 168. ↩︎
Idem, 1. p., c. 3, p. 62 a 64. ↩︎
DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2008, notas comp. 2 e 8, p. 356 e 389. ↩︎
IRENEU DE LYON. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995, introdução, p. 14 a 16. ↩︎
XAVIER, Francisco C. Ave, Cristo! Pelo Espírito Emmanuel. 24. ed., Rio de Janeiro: FEB, 2020, 1. p., c. 3, p. 62. ↩︎
MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. 2. ed., São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 91. ↩︎
IRENEU DE LYON. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995, p. 106. ↩︎
Idem, p. 236 e 237. ↩︎
Idem, p. 239. ↩︎
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2009, c. 4 e c. 5, i. 11. ↩︎
IRENEU DE LYON. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995, introdução, p. 609. ↩︎
Idem, p. 72 e 234. ↩︎
Idem, p. 72. ↩︎
ROBINSON, James M. (org). A Biblioteca de Nag Hammadi. 3. ed., São Paulo: Madras, 2014. ↩︎
IRENEU DE LYON. Demonstração da pregação apostólica. São Paulo: Paulus 2014, introdução, p. 15. ↩︎
MORESCHINI, Claudio. História da filosofia patrística. 2. ed., São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 43 a 70. ↩︎
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de janeiro: FEB, 2009, c. 16, i. 7 e c. 17, i. 11. ↩︎