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  • 'Se em nome de Cristo destroem, em nome de Cristo vamos reconstruir': evangélicos ajudam a reerguer terreiro queimado

Em meio a diversos casos de intolerância e violência contra religiões de matriz africana, um grupo arrecadou mais de R$ 12 mil para as obras no templo, depois que o espaço foi parcialmente destruído em um incêndio. Jorge Hessen comenta.

  • Data :28 May, 2018
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Lugar de encontro e devoção de praticantes do candomblé há 17 anos, o terreiro de Conceição d’Lissá tem recebido, nos últimos meses, visitantes inusitados. O templo, localizado em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, está sendo reconstruído com a ajuda de evangélicos. Em meio a diversos casos de intolerância e violência contra religiões de matriz africana, um grupo arrecadou mais de R$ 12 mil para as obras depois que o espaço foi parcialmente destruído em um incêndio.

Em uma manhã de sábado de fevereiro, a pastora Lusmarina Campos, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, foi ao local acompanhada de três voluntários para, pessoalmente, ajudar na remoção de entulhos - tijolos e pedaços de madeira que faziam parte do segundo andar do terreiro, área atingida pelo fogo em junho de 2014.

Na época presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do estado (Conic-Rio), Lusmarina organizou a campanha de arrecadação, concluída no fim do ano passado, para a reconstrução do templo.

“Logo que a gente ouviu sobre a destruição do terreiro, eu pensei: ‘Se em nome de Cristo eles destroem, em nome de Cristo nós vamos reconstruir’. É extremamente importante dar um testemunho positivo da nossa fé, porque o Cristo que está sendo utilizado para destruir um terreiro está sendo completamente mal interpretado”, explica Lusmarina.

Aquele foi o oitavo ataque ao local de culto da mãe de santo. Antes, tiros haviam sido disparados contra o templo e a casa de Conceição. Três carros que pertenciam a candomblecistas de seu grupo foram queimados. A polícia ainda não identificou os responsáveis pelos crimes. Para tentar se proteger, Conceição instalou grades e reforçou muros e cadeados do templo. Sem apontar suspeitos, ela afirma que os ataques têm cunho religioso: “Não há roubo de televisão, rádio, uma porção de coisas que poderiam usar para fazer dinheiro. Não levam nada, só destroem.”

No ano passado, 71,5% dos casos de intolerância religiosa registrados no Rio de Janeiro foram contra grupos de matriz africana, segundo a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos. Crimes de ódio contra os adeptos de religiões como o candomblé e a umbanda também ocorrem em outras partes do país, que possui cerca de 600 mil devotos de crenças de origem africana, segundo o Censo de 2010.

“É um fenômeno nacional, agora com essa face cruel, que já se expressou em 2008 e vem desde a década de 90, que são os traficantes instrumentalizados por grupos neopentecostais que atacam os templos religiosos nas periferias e favelas”, comenta o babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa.

“O arcabouço do que está acontecendo no Rio de Janeiro, em termos de violência religiosa, tem como fundo uma lógica de guerra”, complementa a pastora Lusmarina.

“Faz parte de um projeto de poder a descaracterização de outros grupos religiosos, ou seja, uma linguagem de desrespeito e condenação. Porque, nesse tipo de concepção, a diversidade não é permitida. É um enfrentamento que precisamos fazer porque é muito mais amplo do que a questão estritamente religiosa. A questão é política. Por isso, a gente precisa se unir.”

O babalaô acompanhou desde o início a ação de apoio ao terreiro em Duque de Caxias organizada por Lusmarina. “Esse ato é um divisor de águas na luta contra a intolerância religiosa no país”, comenta ele. A entrega do dinheiro, com o maior aporte vindo de fiéis da Igreja Cristã de Ipanema, que é evangélica, foi celebrada no fim do ano passado com uma cerimônia inter-religiosa no terreiro de Conceição.

Alguns dos que participaram tiveram de enfrentar críticas e ameaças, principalmente na internet e nas redes sociais. Lusmarina conta que um youtuber evangélico gravou um vídeo em que incentiva outras pessoas a agredirem. “Ele diz: ‘Pastora vadia, vagabunda…Tem que tomar tapa na cara’, de maneira muito agressiva e violenta.”

A discriminação, no entanto, não é exclusiva de grupos extremistas. Os próprios voluntários que acompanharam Lusmarina na preparação do terreiro para as obras admitiram que, em determinado momento da vida, chegaram a ter uma visão negativa em relação a religiões de matriz africana, por acreditarem que eram ligadas ao mal.

“O candomblé sofre preconceito desde que era a religião professada pelos nossos antepassados, que vieram para o país escravizados”, comenta Conceição. “As pessoas hoje endemonizam o candomblé como se tivéssemos uma relação estreita com essa figura chamada diabo, sem saber que o diabo não faz parte do nosso panteão de divinizados. É uma visão eurocristã que não tem nada a ver conosco.”

A exemplo da iniciativa tomada no Rio de Janeiro, a direção nacional do Conic decidiu criar o Fundo de Solidariedade para o Enfrentamento de Violências Religiosas. A entidade já começou a receber doações e pretende criar um comitê inter-religioso que fique responsável por gerir o fundo e selecionar pessoas e espaços que precisem ser atendidos - em especial, os de religiões de matriz africana.

“Essa repercussão já significou um racha na base de um grande bloco de igrejas que parecia mais ou menos uniforme”, diz Lusmarina. “Embora uma parte das igrejas e de pessoas dentro de igrejas não tenha apoiado a nossa ação, a grande maioria das pessoas apoiou e a grande maioria das igrejas prefere o respeito à violência, prefere o amor, a aproximação… que é de fato a mensagem central do evangelho. Esses são valores fundamentais dos quais não podemos abrir mão.”

As obras no terreiro da mãe de santo Conceição começaram pela cozinha, que estava funcionando no quintal desde que a estrutura interna da casa foi danificada pelo incêndio. O local é considerado “o coração do barracão”, uma vez em que lá são produzidas as oferendas - parte importante da tradição candomblecista.

“Quando eles vêm dar essa ajuda pra gente, é justamente (uma forma de) reconhecer que, primeiro, a gente sofre o ataque. Depois, é reconhecer que a gente tem o direito de existir e professar o nosso sagrado”, comenta Conceição.

“Eles não vieram aqui pra me mudar, evangelizar ou dizer que o que eu faço está feio ou é do diabo. Vieram para dizer: ‘Faça aquilo que você crê. Eu vou te ajudar’.”

Reportagem Ana Terra Athayde, do Rio de Janeiro para a BBC Brasil

Notícia publicada na BBC Brasil , em 24 de abril de 2018.

Jorge Hessen* comenta

Conforme registra a reportagem, eis um excelente exemplo de tolerância religiosa, mas não é a regra, infelizmente. Intolerância religiosa, eis aí um gravíssimo nódulo cancerígeno do mundo contemporâneo.

O fanatismo religioso é marcado pela aversão a diferenças de crenças, resultando em perseguição à liberdade de credo e pluralismo religioso. Ódios que podem levar a prisões ilegais, espancamentos, sequestros, torturas, execução injustificada, negação de benefícios e de direitos e liberdades civis. Como ocorre na Nigéria, onde a maioria das pessoas do norte é muçulmana, mas nem todas interpretam o Corão da mesma forma que o grupo extremista nigeriano Boko Haram. Em face desse radicalismo, muitos muçulmanos estão sendo convertidos ao Cristianismo.

Estudiosos afirmam que a rápida expansão do cristianismo e do Islã na África se deve, em grande parte, ao sentido religioso, ao respeito e à tolerância inerentes à cultura tradicional. Os africanos descobriram que essas novas religiões provenientes do exterior continham muitos aspectos das crenças fundamentais (Ser Supremo, culto aos mortos/antepassados, espíritos etc.) e dos valores (centralidade da pessoa, importância da comunidade, a caridade e o perdão) de sua própria experiência religiosa. Mas nem todos os convertidos interpretam dessa forma, e utilizam a crença para busca do poder político.

Atualmente, cerca de 80% dos conflitos armados que existem por todo mundo são decorrentes de questões religiosas. Em todo mundo estamos vendo o desenrolar de guerras e mais guerras em nome de algo que eles chamam de “fé”. Mas entenda a palavra “fé” que eles usam como: ambição, fanatismo, incredulidade, loucura ou falta da verdadeira FÉ!

Com o aumento da diversidade religiosa no Brasil, verifica-se um crescimento da intolerância religiosa, tendo sido criado até mesmo o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa [21 de janeiro], por meio da Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007. Vários países ao redor do mundo incluíram cláusulas nas suas constituições proibindo expressamente a promoção ou prática de certos atos de intolerância religiosa ou de favorecimento religioso dentro das suas fronteiras.

A Doutrina Espírita nos faz entender quem somos efetivamente, quem realmente é o ser humano em sua vocação e circunstância, visão que possibilita, por sua vez, a compreensão e a vivência de uma vida social moralmente correta a partir da qual podemos julgar com retidão se determinadas atitudes e ideias propostas por grupos religiosos e/ou políticos correspondem àquilo que o próprio Criador espera de nós.

Deus nos quer abertos para a realidade, para a beleza das coisas criadas, para a ventura transcendente da liberdade humana de buscar esse ou aquele caminho para Deus, e não acabrunhados pelo medo e, em última análise, cegos pelo fanatismo. Talvez com aquela cegueira suprema, apontada por Jesus Cristo, conforme registra João, 9:21: “Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece."

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal aposentado do INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (dois livros publicados), Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.