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Depois da Revolução de dezembro de 1989 na Romênia e da derrubada do líder comunista Nicolae Ceausescu, o mundo descobriu o universo misterioso dos orfanatos onde crianças haviam sido mantidas em condições precárias durante o período ditatorial. Gert Bolten Maizonave comenta.

  • Data :21/07/2016
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21 de julho de 2016

‘Cresci como um animal enjaulado num orfanato, mas às vezes tenho saudades’

Depois da Revolução de dezembro de 1989 na Romênia e da derrubada do líder comunista Nicolae Ceausescu, o mundo descobriu o universo misterioso dos orfanatos onde crianças haviam sido mantidas em condições precárias durante o período ditatorial.

As espantosas condições em que meninos e meninas viviam ali chocaram o planeta: as fotos mostravam centenas de crianças raquíticas e sujas, algumas amarradas às suas camas; outras, balançando para frente e para trás, com olhares perdidos. Os sinais de negligência eram óbvios.

Organizações humanitárias se apressaram a encontrar uma maneira de melhorar a vida dos menores.

Centenas de crianças foram adotadas por famílias do Ocidente. Uma delas foi Izidor Ruckel, que passara toda a infância em uma instituição para crianças “irrecuperáveis” - um dos locais onde as condições eram especialmente devastadoras.

O ambiente era sombrio. Mau cheiro terrível, sujeira e excrementos podiam ser encontrados por todos os lados. Para lá eram encaminhados os casos mais graves, as crianças que necessitavam do melhor atendimento possível – e que estavam recebendo o pior.

Izidor contou sua história à BBC:

“Quando tinha seis meses de idade, fiquei doente e meus pais me levaram a um hospital para ser atendido. Mas em vez de voltar curado, acabei tendo um problema muito pior: saí de lá infectado com poliomielite.

Meus pais me levaram, então, a outro hospital. E nunca mais voltaram para me buscar.

Órfão de pai e mãe, acabei sendo levado para uma instituição de crianças com deficiência, um orfanato conhecido como ‘o hospital para crianças irrecuperáveis’.

Ninguém está preparado para o que encontrei lá. Os funcionários pareciam adorar nos espancar. Eu pensava: se essas pessoas tiverem filhos, será que elas os espancam em casa também?

Eu acabei virando cruel também. Desde cedo aprendi a ter controle sobre as demais crianças. Os funcionários perceberam isso, e pensaram: ’ele não deve ser tão deficiente assim’. E me deram a tarefa de bater nas crianças quando elas se portassem mal, da mesma forma como (os adultos) batiam na gente.

Isso era tudo o que conhecíamos, tudo o que podíamos lembrar.

Não tínhamos compaixão; não tínhamos quaisquer sentimentos ou emoções. Simplesmente existíamos para vegetar.

Éramos animais selvagens que precisavam ser enjaulados.

Passei ali 11 anos da minha vida e cresci naquelas condições, um ano repetindo o outro.

Depois da queda do comunismo, as coisas começaram a melhorar. Eu mudei para melhor, houve mudanças na direção e na equipe. Nós passamos a poder sair (do orfanato), fomos educados. Começamos a expandir nossa mente.

Lidando com o trauma

Depois disso, fui adotado por uma família de San Diego, na Califórnia, Estados Unidos: o casal Marlis e Daniel Rackhome. Disseram para eles: ’essa criança tem sérios problemas, é deficiente’. Eles responderam: ‘o aceitamos como ele é’.

Cheguei em 1991. (Mas) foi muito difícil, porque eu não conseguia me adaptar a um ambiente familiar.

Três dias após chegar aos EUA, eu já estava discutindo com a minha mãe por conta do cinto de segurança (do carro).

Minha cabeça estava acostumada com a instituição (romena). Eu sentia raiva, fiquei muito amargo e estava desesperado para voltar à Romênia.

Até escrevi aos assistentes sociais para pedir a eles que me deixassem ficar lá, na Romênia, até que completasse 18 anos. Todos me disseram não.

Retorno

Visitei a Romênia em 2001, aos 21 anos. Fui encontrar minha família biológica em busca de respostas. Também visitei a instituição onde cresci.

Tentei entender minha mãe e conhecê-la de verdade.

Mas infelizmente, nem todos os pais estão dispostos a assumir seus filhos.

Se eu nunca tivesse vindo para os Estados Unidos, eu com certeza estaria morto ou vivendo como um mendigo nas ruas (da Romênia). Há tantas crianças que são simplesmente expulsas do sistema.

Hoje moro no Colorado (EUA) e escrevi minha autobiografia.

Quando vejo, na Romênia ou em qualquer outro país, algum adulto balançando para frente e para trás ou se comportando do jeito típico de pessoas institucionalizadas, posso reconhecer na hora: ele cresceu em um orfanato.

Ainda assim, às vezes eu sinto falta dessa instituição. As pessoas não conseguem entender, porque nunca viveram essa experiência. Estávamos acostumados a isso, ali foi onde crescemos, era o nosso lar.”

Notícia publicada na BBC Brasil , em 11 de abril de 2016.

Gert Bolten Maizonave comenta*

O artigo se focaliza na história de uma pessoa digna de compaixão, e apresenta diversas fenômenos interessantes da psicologia no comportamento humano e da sociologia, mas para aqueles que, crentes ou ateus, estão atentos à lei da justiça divina, há que verificar de que maneira Deus pode ser equânime ao permitir que crianças inocentes iniciem a vida em meio a tanta violência.

Aqueles que alguma vez folhearam as páginas de O Livro dos Espíritos provavelmente dirão que a explicação está na reencarnação, e que também existe a lei de causa e efeito. Que essas crianças foram adultos que fizeram o mal, que agora estão sofrendo o mal, para pagar o que fizeram. Seguramente, já que vivemos nossas vidas eternas sob a égide desse Deus justo e vingativo, como reza a Torá. A dúvida é, como diria Platão, se estamos dentro do Espiritismo, mas ainda acorrentados pelas crenças limitantes que carregamos por milênios.

Para começar, devemos contestar a afirmativa de que Deus necessita vingar-se para ser justo, e podemos fazer isso comparando-a com a justiça dos homens. Imaginemos, por exemplo, algum crime, como maltratar um pobre cãozinho, até a sua morte. A pessoa que fez isso no Brasil, nos nossos dias, é enquadrado na Lei 9.605/98, em seu artigo 32, que assim dispõe:

“Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: “Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. “§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. “§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.”

Poderíamos considerar que o réu foi justiçado, na medida do possível, através de uma espécie de “vingança”, em que ele perderá sua liberdade por algum tempo e sofrerá consequências sociais talvez por toda sua vida. Seu exemplo desencorajará outras pessoas a repetir a façanha, e muitos supõe que aí está a função da justiça. Mas existe uma exceção: se o réu é uma criança, o procedimento é bem diferente. Por quê?

Considera-se que a criança não possui conhecimento suficiente sobre as coisas da vida, e por isso não é capaz de julgar as consequências dos seus atos. A criança ainda não teve tempo para observar o que aconteceu com outras pessoas que maltrataram animais de estimação. Ou seja, a criança não é considerada má, porém ignorante. Sob esse ponto de vista, a ação requerida não é a punição, mas a educação.

Reconhecemos, pois, que a criança comete erros, mas isso é perfeitamente perdoável. Perdoamos mesmo antes que os cometa, pois sabemos que essa é uma condição temporária, e que a educação a tornará adequada para conviver em sociedade. Como espíritas, e portanto sabedores de que todos nós encarnados, adultos e crianças, estamos no rumo do progresso, não resta dúvida que Deus não pode ser vingativo, e que as consequências dos nossos atos têm fim sempre educativo, e nunca meramente punitivo.

Se a lei do retorno não consiste de vingança, por que então sofremos tanto?

A maioria dos animais não possui consciência da própria existência e portanto não podem calcular a consequência dos próprios atos. Mesmo os mais primitivos, porém, são capazes de aprender e associar consequências boas ou más a certas atitudes. Assim se estabelece um mecanismo automático de progresso, que os animais copiam, procurando proporcionar sofrimento aos seres que lhe causaram dor. Nós, humanos, apesar de recém saídos desse ciclo primitivo, possuímos uma capacidade de aprendizado muito mais delicada. Podemos recriar o mundo dentro de nós, utilizando informações de diversas fontes para deduzir com suficiente exatidão qual será o retorno. Virtualmente dispomos de todo o aparato para evitar o sofrimento, mas temos ainda fortemente arraigados os hábitos ancestrais. Temos um “sentimento” de que justiça está sendo feita quando sofre aquele que fez sofrer, e, porquanto pareça ilógico, buscamos o sofrimento quando sentimos culpa, desejamos a auto-vingança.

Conquanto o sofrimento é auto-regulador e eficaz como ferramenta evolutiva, seja quando sofremos queimaduras ao experimentar com fogo, ou quando planejamos participar voluntariamente de flagelos coletivos, é muito mais produtivo abandonarmos a passividade e utilizarmos essa maravilhosa ferramenta, conquistada através dos milênios: o intelecto. Existem já inúmeras histórias e romances psicografados explicando de que maneira o sofrimento é amenizado através da reforma íntima, e do quão simples é a prática de aperfeiçoamento moral, mesmo para os mais tímidos pensadores da raça humana. Deixamos aqui a receita de Santo Agostinho na nossa obra mais básica:

“919) Qual o meio prático mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal?

“Um sábio da antiguidade vo-lo disse: Conhece-te a ti mesmo.”

“a) - Conhecemos toda a sabedoria desta máxima, porém a dificuldade está precisamente em cada um conhecer-se a si mesmo. Qual o meio de consegui-lo?

“Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma. Aquele que, todas as noites, evocasse todas as ações que praticara durante o dia e inquirisse de si mesmo o bem ou o mal que houvera feito, rogando a Deus e ao seu anjo de guarda que o esclarecessem, grande força adquiriria para se aperfeiçoar, porque, crede-me, Deus o assistiria. Dirigi, pois, a vós mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes feito e com que objetivo procedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestes alguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis, sobre se obrastes alguma ação que não ousaríeis confessar. Perguntai ainda mais: “Se aprouvesse a Deus chamar-me neste momento, teria que temer o olhar de alguém, ao entrar de novo no mundo dos Espíritos, onde nada pode ser ocultado?”

“Examinai o que pudestes ter obrado contra Deus, depois contra o vosso próximo e, finalmente, contra vós mesmos. As respostas vos darão, ou o descanso para a vossa consciência, ou a indicação de um mal que precise ser curado.

“O conhecimento de si mesmo é, portanto, a chave do progresso individual. Mas, direis, como há de alguém julgar-se a si mesmo? Não está aí a ilusão do amor-próprio para atenuar as faltas e torná-las desculpáveis? O avarento se considera apenas econômico e previdente; o orgulhoso julga que em si só há dignidade. Isto é muito real, mas tendes um meio de verificação que não pode iludir-vos. Quando estiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, inquiri como a qualificaríeis, se praticada por outra pessoa. Se a censurais noutrem, não na poderia ter por legítima quando fordes o seu autor, pois que Deus não usa de duas medidas na aplicação de Sua justiça. Procurai também saber o que dela pensam os vossos semelhantes e não desprezeis a opinião dos vossos inimigos, porquanto esses nenhum interesse têm em mascarar a verdade e Deus muitas vezes os coloca ao vosso lado como um espelho, a fim de que sejais advertidos com mais franqueza do que o faria um amigo. Perscrute, conseguintemente, a sua consciência aquele que se sinta possuído do desejo sério de melhorar-se, a fim de extirpar de si os maus pendores, como do seu jardim arranca as ervas daninhas; dê balanço no seu dia moral para, a exemplo do comerciante, avaliar suas perdas e seus lucros e eu vos asseguro que a conta destes será mais avultada que a daquelas. Se puder dizer que foi bom o seu dia, poderá dormir em paz e aguardar sem receio o despertar na outra vida.

“Formulai, pois, de vós para convosco, questões nítidas e precisas e não temais multiplicá-las. Justo é que se gastem alguns minutos para conquistar uma felicidade eterna. Não trabalhais todos os dias com o fito de juntar haveres que vos garantam repouso na velhice? Não constitui esse repouso o objeto de todos os vossos desejos, o fim que vos faz suportar fadigas e privações temporárias? Pois bem! Que é esse descanso de alguns dias, turbado sempre pelas enfermidades do corpo, em comparação com o que espera o homem de bem? Não valerá este outro a pena de alguns esforços? Sei haver muitos que dizem ser positivo o presente e incerto o futuro. Ora, esta exatamente a ideia que estamos encarregados de eliminar do vosso íntimo, visto desejarmos fazer que compreendais esse futuro, de modo a não restar nenhuma dúvida em vossa alma. Por isso foi que primeiro chamamos a vossa atenção por meio de fenômenos capazes de ferir-vos os sentidos e que agora vos damos instruções, que cada um de vós se acha encarregado de espalhar. Com este objetivo é que ditamos O Livro dos Espíritos.” SANTO AGOSTINHO.

“Muitas faltas que cometemos nos passam despercebidas. Se, efetivamente, seguindo o conselho de Santo Agostinho, interrogássemos mais amiúde a nossa consciência, veríamos quantas vezes falimos sem que o suspeitemos, unicamente por não perscrutarmos a natureza e o móvel dos nossos atos. A forma interrogativa tem alguma coisa de mais preciso do que qualquer máxima, que muitas vezes deixamos de aplicar a nós mesmos. Aquela exige respostas categóricas, por um sim ou não, que não abrem lugar para qualquer alternativa e que são outros tantos argumentos pessoais. E, pela soma que derem as respostas, poderemos computar a soma de bem ou de mal que existe em nós.”

  • Gert Bolten Maizonave é gaúcho de Bento Gonçalves, estudante de eletrônica, trabalhador espírita desde 2000 e participa das atividades do Serviço de Perguntas e Respostas do Espiritismo.net desde 2004.