Carregando...

  • Início
  • Vítima de tráfico de pessoas, mulher busca a mãe e tenta recomeço no Rio

Charlotte Cohen foi adotada ilegalmente em 1987 e levada para a França. Atualmente, mora no Rio de Janeiro, onde leciona francês. Apesar da trajetória difícil, ela diz não ter mágoas e sonha com o dia em que poderá abraçar a mãe. Claudia Cardamone comenta.

  • Data :18/01/2015
  • Categoria :

18 de janeiro de 2015

Vítima de tráfico de pessoas, mulher busca a mãe e tenta recomeço no Rio

Charlotte Cohen foi adotada ilegalmente em 1987 e levada para a França. ‘Não tenho raiva de minha mãe’, afirma a jovem.

Henrique Coelho Do G1 Rio

Nome francês e sangue brasileiro. Adotada ilegalmente por um casal francês logo após o nascimento, Charlotte Cohen-Tenoudji, de 27 anos, cresceu convivendo diariamente com o preconceito. As diferenças físicas em relação aos pais adotivos eram motivos de agressão. A sensação de viver em um “lugar errado” deu início à busca por sua origem. Foi então que ela descobriu que era uma vítima de tráfico de seres humanos.

Em 2012, Charlotte voltou ao Brasil com dois objetivos: encontrar sua mãe biológica e tentar responsabilizar uma mulher de quase 80 anos, chamada Guiomar Morselli. Segundo a CPI de Tráfico de Pessoas da Câmara dos Deputados, finalizada em 2014, ela foi a responsável pela adoção ilegal de Charlotte e por outros casos semelhantes. “Com quantas crianças ela fez isso? É necessário que se investigue isso a fundo, e que ela pague por isso de alguma forma. A processei porque ela não me deixou outra alternativa”, disse Charlotte, em entrevista ao G1.

Atualmente, Charlotte mora no Rio de Janeiro, onde leciona francês. Apesar da trajetória difícil, ela diz não ter mágoas e sonha com o dia em que poderá abraçar a mãe, a quem manda uma mensagem:

“Não sei em quais circunstâncias fomos separadas e nunca irei fazer nenhum julgamento sobre o que aconteceu. Eu quero poder abraçar você, olhar para o seu rosto e agradecer você por tudo o que você me deu. A vida foi o presente maior que você podia ter me dado. Eu nunca julgarei nenhuma das suas ações e mesmo que você tivesse tido que me doar ou que me deixar sem dar nome não faz a menor diferença”, disse Charlotte que mantém uma página no Facebook para ajudar na busca por sua mãe.

Infância e descoberta

Charlotte conta que, desde criança, percebia que não era parecida fisicamente com os pais e sofria com isso. “Eu tinha cabelo cacheado, tanto que as crianças na escola perguntavam: ‘É esse o seu cabelo?’ Eu tinha vergonha do que eu era. Da minha pele, que mostrava que eu não era francesa. Me sentia no lugar errado, no país errado, sendo a pessoa errada”.

A mãe adotiva, Blanch-Jacqueline, contava para a filha que uma amiga, Cristiane, havia conhecido algumas crianças no Brasil através de uma mulher chamada Guiomar Morselli, dona do Lar da Criança Menino Jesus. No entanto, Charlotte conta que a mãe não gostava de falar sobre o assunto e ficava irritada com a insistência da filha. Segundo ela, a mãe a xingava e a humilhava constantemente.

A primeira descoberta aconteceu aos 14 anos, quando ela abriu uma pasta, que levava o seu nome, no escritório de seu pai. Embora ela tivesse sobrenome francês, encontrou na pasta documentos em que estava registrada com outro nome. “Lá vi os exames médicos, um passaporte e uma certidão de nascimento, em nome de Charlote Pinto da Mota. Meu sobrenome era o mesmo dos meus pais, como aquilo podia acontecer? Quando vi, senti vertigens, fiquei bem mal”, explicou.

Após ser questionada pela filha, Blanch-Jacqueline contou que Charlotte havia sido recebida por Guiomar através de uma mulher, que seria sua mãe biológica. Guiomar, então, havia registrado a criança como filha de uma de suas empregadas: Maria das Dores Pinto da Mota.

“Minha mãe disse que, pelo que sabia, uma mulher jovem, por volta dos 19 anos, havia me entregado a Guiomar. E que se não tivesse sido isso, eu estaria morta, como se Guiomar me tivesse feito um favor”, conta Charlotte.

Documentação e depoimentos

Entre os documentos encontrados, havia uma certidão de nascimento, do dia 30 de maio de 1987, e um exame médico realizado anteriormente, no dia 15 de maio. A adoção só foi reconhecida na França em 1992, como atesta documento de adoção assinado em 27 de maio daquele ano.

“Consta na folha do exame realizado que o nome da paciente seria Isabella Morselli. Em outro exame consta o nome Charlotte Morselli. Mas, na certidão de nascimento, consta Charlote Pinto da Mota”, diz trecho do relatório final da CPI do Tráfico de Pessoas, que cita também a investigação feita pela Polícia Federal contra Guiomar Morselli.

O texto ainda diz que Guiomar e seu marido, Franco Morselli, foram indiciados pela comissão pelos crimes de sequestro e cárcere privado, associação criminosa e promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior de forma ilegal com fins lucrativos. Para falsificar documentos de adoção de Charlotte, segundo a CPI, Guiomar recebeu 69 mil francos em junho de 1990, o que equivale a cerca de 15 mil euros atualmente.

Maria das Dores Pinto da Mota, a empregada que serviu de falsa mãe para Charlotte, confessou em depoimento que recebeu ordens para registrar, em seu nome, a criança que chegou ao Lar Menino Jesus com apenas dois meses. “Ela (Guiomar) afirmou que não haveria problema, e eu disse ok”, afirmou.

Outros dois casos semelhantes, em 1992 e 1999, foram descobertos pela CPI após depoimento da delegada da Polícia Federal Tatiane Almeida. De acordo com inquérito da PF, de 1992, Guiomar teria oferecido pagar uma laqueadura a uma mulher para que ela registrasse em nome dela uma criança, de nome Julian, que seria enviada para a França, tal como Charlotte em 1987.

Procurados pelo G1, Guiomar e Franco Morselli não responderam às ligações.

Recomeço

Charlotte conseguiu sair da casa dos pais em 2003, graças a uma assistente social e morou por um ano na Espanha e nos Estados Unidos antes de vir para o Rio de Janeiro. “Quando vi uma praia pela primeira vez, não acreditei. Achei que fosse mentira. Essa cidade é muito linda”, derrete-se. O caso de Charlotte foi revelado na novela Salve Jorge, que tinha o tráfico de pessoas como pano de fundo da história.

O Ministério Público de São Paulo afirmou que o crime cometido por Guiomar estaria prescrito, pela inexistência do Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1992, na época do crime. Este fato impediria a condenação de Guiomar. Charlotte, porém, deixa claro que vai lutar na Justiça por reparação de danos morais, em um processo movido na área cível.

“Estou requerendo isso através da Defensoria Pública de São Paulo junto a um procurador. Vou lutar pelos meus direitos. Até porque não tenho direito a um RG brasileiro por causa do meu problema com a certidão de nascimento. Isso tem que ser resolvido”, finaliza.

Notícia publicada no Portal G1 , em 6 de novembro de 2014.

Claudia Cardamone comenta*

A venda de crianças foi uma triste realidade e ainda é em alguns lugares. Infelizmente pessoas se aproveitam do grande desejo de alguns casais de adotar uma criança e das dificuldades que algumas mães passam no momento do nascimento de seu filho(a). Poderíamos refletir sobre diversos aspectos, mas, neste momento, vou destacar apenas um e buscar uma reflexão doutrinária a respeito dele:

“O Ministério Público de São Paulo afirmou que o crime cometido por Guiomar estaria prescrito, pela inexistência do Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1992, na época do crime. Este fato impediria a condenação de Guiomar.”

A legislação humana é uma construção social, é uma produção humana e está sujeita ao seu progresso. Isto fica claro na resposta da questão 795 de O Livro dos Espíritos:

“795. Qual a causa da instabilidade das leis humanas?

  • Nos tempos de barbárie são os mais fortes que fazem as leis, e as fazem em seu favor. Há necessidade de modificá-las à medida que os homens vão melhor compreendendo a justiça. As leis humanas são mais estáveis à medida que se aproximam da verdadeira justiça, quer dizer, à medida que são feitas para todos e se identificam com a lei natural.”

Durante muito tempo a infância foi vista como algo sem muito valor. Somente com o desenvolvimento das civilizações é que este conceito foi adquirindo a relevância que conhecemos hoje. Somente na idade moderna a criança foi compreendida como um ser que possui uma natureza singular, que a caracteriza como ser que sente e pensa o mundo de um jeito específico e que necessita ser compreendida e respeitada a partir de suas singularidades. Mas o caminho até este conceito foi muito lento. Como explicar esta mudança? Moralmente falando, o progresso com relação às crianças foi enorme, já que estas eram mortas, por exemplo, no século V antes de Cristo, caso tivessem alguma deformidade. Como o Espiritismo entende este desenvolvimento?

Podemos iniciar a reflexão pela questão 780 de O Livro dos Espíritos:

“780. O progresso moral segue sempre o progresso intelectual?

  • É a sua consequência, mas não o segue sempre imediatamente.

780-a. Como o progresso intelectual pode conduzir ao progresso moral?

  • Dando a compreensão do bem e do mal, pois então o homem pode escolher. O desenvolvimento do livre-arbítrio segue-se ao desenvolvimento da inteligência e aumenta a responsabilidade do homem pelos seus atos.

780-b. Como se explica, então, que os povos mais esclarecidos sejam frequentemente os mais pervertidos?

  • O progresso completo é o alvo a atingir, mas os povos, como os indivíduos, não chegam a ele senão passo a passo. Até que tenham desenvolvido o senso moral eles podem servir-se da inteligência para fazer o mal. A moral e a inteligência são duas forças que não se equilibram senão com o tempo.”

A notícia em questão demonstra claramente este processo. O que antes não era considerado um crime, pois a compreensão sobre a criança e seus direitos era ainda muito pouca e falha, na medida em que a humanidade foi estudando e compreendendo mais sobre a infância e sobre as crianças, pode perceber e elaborar novas regras de conduta social que deveriam levar em consideração as características e singularidades desta etapa do desenvolvimento humano. Toda esta compreensão, construída durante séculos, possibilitou o progresso moral que experimentamos hoje, onde é inconcebível alguém agredir, de qualquer forma, uma criança. Como este progresso não ocorre ao mesmo tempo para todas as pessoas, algumas ainda não alcançaram esta compreensão e consequentemente este progresso moral. Para elas, receber dinheiro em troca de uma facilitação ilegal da adoção é aceitável. Estas pessoas terão que passar por provas e expiações até que progridam ao ponto de compreender a maldade dos atos cometidos.

  • Claudia Cardamone nasceu em 31 de outubro de 1969, na cidade de São Paulo/SP. Formada em Psicologia, pelas FMU, e em Pedagogia, pela UNISUL. Reside atualmente em Santa Catarina, onde trabalha como professora. É espírita e trabalhadora do Grupo União e Amor de Formação Espiritual, em Paulo Lopes/SC.