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Se andamos de carro, nos achamos no direito de acusar os ciclistas de serem folgados sem respeito pelo trânsito. Se estamos sobre a bicicleta, ignoramos os pedestres e desafiamos os carros. Se andamos a pé, gritamos com o motorista, como se eles fossem todos assassinos cruéis. Jailton Pinheiro comenta.

  • Data :11/04/2013
  • Categoria :

8 de abril de 2013

O trânsito, a guerra e a paz

Denis Russo Burgierman

Vinha eu pela rua, de bicicleta, a caminho do trabalho e, vendo que não havia ninguém na direção contrária, passei pelo sinal vermelho. Um pedestre que atravessava pela faixa se incomodou e falou, num tom baixo, tranquilo: “o farol”. Não respondi, nem parei, nem olhei. Veterano da “guerra do trânsito” que sou, deixei o pedestre para trás se sentindo desprezado. Segui meu caminho.

Mas segui pensando.

Eu poderia ter parado. Como minha bicicleta é pequena e eu ia devagar, bastaria flexionar um tiquinho as falanges da mão, apoiar a ponta de um pé no chão e eu estaria de frente para o pedestre. Poderia fixar meus olhos nos olhos dele e falar num tom igualmente baixo, igualmente tranquilo: “eu vi você, só passei o sinal vermelho porque tinha certeza de que não iria colocar ninguém em perigo. Minha bicicleta é pequenininha, eu sabia que não iria assustar você.”

Mas não falei nada disso, segui em frente ignorando o sujeito. Afinal, eu sou um ciclista, ele é um pedestre, somos de exércitos diferentes na guerra do trânsito. Não conversamos.

Esse (des)encontro num cruzamento de São Paulo me fez lembrar dos textos da jornalista Natália Garcia, criadora do projeto Cidades Para Pessoas. Natália costuma dizer que nós não somos “ciclistas”, “pedestres”, “motoristas”, “motoqueiros”. Somos, antes de mais nada, pessoas.

Tanto eu quanto aquele pedestre quanto os motoristas à nossa volta somos seres humanos. Por acaso, naquele dia, por algum motivo, eu decidi que o melhor jeito de chegar ao trabalho seria de bicicleta – enquanto outras pessoas pela cidade optaram por andar de carro, a pé, de ônibus, de metrô, de táxi, de helicóptero. Isso não precisa fazer de nós inimigos.

Eu não sou “ciclista”. Sou uma pessoa, filho dos meus pais, irmão dos meus irmãos, amigo dos meus amigos, funcionário do meu empregador, pagador de impostos na minha cidade. Não sou um guerreiro de uma guerra imaginária. Minha bicicleta não me define. Assim como o carro imenso de vidro fumê à minha frente não é necessariamente um inimigo cruel – talvez seja só uma pessoa legal, com medo do trânsito, tentando se proteger da violência das ruas.

Todos nós – ciclistas, pedestres, motoqueiros, motoristas, usuários de transporte público – somos Homo sapiens , uma espécie social, dotada de uma imensa capacidade de comunicação. Milênios e milênios de evolução deram a nós todos um poder fantástico de se fazer entender, de criar empatia, de se colocar no lugar do outro. Nas nossas vidas, a maioria de nós, na maior parte do tempo, é gentil, tranquila – falamos baixo uns com os outros, olhamos nos olhos e conversamos.

Mas, no trânsito (assim como na internet), a comunicação se dá aos berros raivosos. Ignoramos os outros, xingamos, erguemos o dedo do meio. Se andamos de carro, nos achamos no direito de acusar todos os ciclistas de serem folgados sem respeito pelo trânsito. Se estamos sobre a bicicleta, ignoramos os pedestres e desafiamos os carros. Se andamos a pé, gritamos com o motorista que passa, como se eles fossem todos assassinos cruéis.

Em parte, é um problema de escala. Os carros de hoje são grandes demais, rápidos demais, seus vidros são escuros demais. Tudo isso evita o contato visual. Evita que possamos olhar nos olhos uns dos outros e reconhecer no outro a nossa própria humanidade. Sem isso, nosso sofisticadíssimo sistema de comunicação simplesmente não funciona – e aí só quem grita é ouvido.

Algumas cidades da Alemanha e da Holanda estão acabando com toda e qualquer sinalização de trânsito – não há mais semáforos, nem placas, nem mesmo aquele degrau que separa a calçada da rua. Tudo é de todos. Quem está de carro tem que seguir devagar, olhando nos olhos dos outros, para negociar a passagem. Seria bom se as ruas da minha cidade fossem assim – um espaço de encontro entre seres humanos, em vez de um campo de batalha.

Falta muito para isso, mas me prometi que, a partir de agora, vou andar pela rua atento. Quando estiver a pé, procurarei o olhar dos motoristas e conversarei com eles, sem gritar. Quando estiver de bicicleta, prestarei atenção em quem estiver à minha volta, pronto para conversar. Quando estiver de carro, procurarei deixar a janela aberta – e os ouvidos também. Não somos inimigos uns dos outros. E não seremos uma sociedade civilizada enquanto não formos capazes nem sequer de reconhecer a humanidade de quem escolhe um meio de transporte diferente do nosso.

Matéria publicada na Revista Superinteressante , em 8 de abril de 2013.

Jailton Pinheiro comenta*

A leitura da matéria nos sugere uma reflexão. Será que estamos prestando atenção em nossas próprias atitudes no trato com os outros, conosco mesmos e com a sociedade? Quais são os momentos em que nos vemos sendo respeitosos, gentis e fazendo o bem, verdadeiramente, algo que já entendemos ser o comportamento do verdadeiro cristão, que almejamos ser? E quando nos surpreendemos com reações que ainda nos posicionam bem longe disso?

A Doutrina Espírita nos ensina que somos espíritos imortais, criados simples e ignorantes, mas que passamos por diversas existências, em desenvolvimento contínuo de nossas potencialidades, até atingirmos um determinado grau de perfeição. Neste processo, aprendemos com nossos erros e acertos, adquirimos experiência e ajustamos a nossa rota, que é a de retorno ao caminho que conduz a Deus.

Mas não fazemos isso sozinhos. Sabemos que “a convivência é o fator que nos ensina a compreensão e a solidariedade de uns para com os outros”, segundo Emmanuel. Portanto, a nossa jornada se dá no contato com outras pessoas, na vida social, onde podemos efetivamente colocar em prática todos os ensinamentos que recebemos de Jesus, nosso guia e modelo.

Sendo assim, é mais do que comum que identifiquemos situações do nosso dia-a-dia, envolvendo as relações sociais, em que atritos aconteçam. Por mais que estejamos desenvolvidos intelectualmente, uma das facetas de nossa evolução, precisamos equilibrar este desenvolvimento com a parte moral.

Vejamos o que responderam os Espíritos a Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos , na pergunta 793:

“Através de que sinais pode-se reconhecer uma civilização completa?

Resposta: Vós a reconhecereis pelo desenvolvimento moral. Credes que estais muito adiantados, porque fizestes grandes descobertas e invenções maravilhosas; porque vos alojais e vos vestis melhor do que os selvagens; mas só tereis verdadeiramente o direito de vos considerar civilizados, quando tiverdes banido de vossa sociedade os vícios que a desonram e quando viverdes, entre vós, como irmãos, praticando a caridade cristã; até lá, sereis apenas povos instruídos, tendo percorrido somente a primeira fase da civilização.”

Conseguimos, então, compreender que para nos considerarmos civilizados completamente precisamos combater nossos vícios morais, dentre eles, um dos mais enraízados, é o egoísmo. Mas, por onde começar? Mais uma vez, O Livro dos Espíritos nos dá a resposta, na pergunta 917, respondida a Kardec por Fénelon:

“Qual o meio de destruir o egoísmo?

Resposta: De todas as imperfeições humanas, a mais difícil de desenraizar-se é o egoísmo, porque se origina da influência da matéria de que o homem, ainda muito próximo de sua origem, não pode libertar-se e para cuja manutenção, tudo concorre: suas leis, sua organização social, sua educação. O egoísmo se enfraquecerá com o predomínio da vida moral sobre a vida material e, principalmente, com a compreensão que o Espiritismo vos dá sobre vosso estado futuro real e, não, desfigurado pelas ficções alegóricas; o Espiritismo, bem compreendido, quando estiver identificado com os costumes e as crenças, transformará os hábitos, os usos, as relações sociais. O egoísmo baseia-se na importância da personalidade; ora, o Espiritismo, bem compreendido, repito, faz com que as coisas sejam vistas de tão alto, que o sentimento da personalidade desaparece, de alguma forma, diante da imensidão. Destruindo essa importância, ou, pelo menos, mostrando o que realmente ela é, ele necessariamente combate o egoísmo.

É o atrito do egoísmo dos outros que o homem experimenta que o torna, frequentemente, egoísta ele próprio, porque sente a necessidade de manter-se na defensiva. Vendo que os outros pensam em si próprios e, não, nele, é levado a ocupar-se mais consigo, do que com os outros. Que o princípio da caridade e da fraternidade seja a base das instituições sociais, das relações legais de povo para povo e de homem para homem e ele pensará menos na sua pessoa, quando vir que outros nele pensaram; sofrerá a influência moralizadora do exemplo e do contato. Em presença desse transbordamento de egoísmo, é necessária uma virtude verdadeira, para renunciar-se à sua personalidade em proveito dos outros que, muitas vezes, não lhe agradecem por isso; é principalmente para os que possuem essa virtude que o reino dos céus se encontra aberto; para esses, sobretudo, é que está reservada a felicidade dos eleitos, pois em verdade vos digo que, no dia da justiça, quem quer que só em si tenha pensado, será posto de lado e sofrerá seu abandono.”

Iniciemos por aí a nossa jornada de aperfeiçoamento moral e, em breve, assim, construiremos um mundo muito melhor para todos.

  • Jailton Pinheiro é espírita e colaborador do Espiritismo.net.