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Ameneh Bahrami, 34, ficou desfigurada depois que um colega de faculdade com quem ela não queria se casar atirou ácido em seu rosto. Em 2011, ela obteve o direito de aplicar a Lei de Talião, mas, na última hora, perdoou o agressor. Sergio Rodrigues comenta.

  • Data :07/03/2013
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7 de março de 2013

Iraniana deformada ganha na Justiça direito de cegar agressor

SAMY ADGHIRNI DE TEERÃ

A iraniana Ameneh Bahrami, 34, ficou desfigurada depois que um colega de faculdade com quem ela não queria se casar atirou ácido em seu rosto. Em 2011, ela obteve o direito de aplicar a Lei de Talião, mas, na última hora, perdoou o agressor. Residente na Espanha, Ameneh voltou ao Irã para lançar sua biografia “Auge um Auge” (“olho por olho”, em alemão), sem previsão de lançamento no Brasil.

Leia o depoimento de Bahrami à Folha :

“Nasci de um pai militar e de uma mãe professora de escola primária e tive uma infância feliz crescendo ao lado de minhas duas irmãs e dois irmãos em Teerã.

Terminado o segundo grau, me inscrevi na faculdade de Engenharia Eletrônica na Universidade Eslamshahr.

Em 2003, uma senhora me telefonou dizendo que tinha um filho que estudava comigo e queria me pedir em casamento. Ela me disse seu nome, Majid Movahedi, e então fui conferir quem era.

Eu o conhecia de rosto, mas não sabia seu nome. Quando a mãe me ligou de novo, contei que não estava interessada. Não ia com a cara dele e, além disso, ele um dia havia mexido comigo durante uma oficina de laboratório, tocando minhas coxas.

Mas ela continuou ligando, dizendo que seu filho era homem e, por isso, tinha direito de escolher quem bem entendesse para ser sua mulher. Após meses recebendo ligações, exigi que ela parasse de telefonar. Ela respondeu que seu filho iria se matar se não se casasse comigo.

Meses depois, me formei e consegui um emprego numa empresa de equipamentos médicos.

Eu só soube muito tempo depois que Majid naquela época vivia me seguindo e levantando todo tipo de informação a meu respeito, desde horários até nomes de colegas.

Certa vez ele me ligou dizendo que estava disposto a me matar se eu não me casasse com ele. Não levei a sério e continuei vivendo normalmente, até que um dia, em outubro de 2004, eu o vi me esperando na frente da empresa.

Repeti que não o queria e contei que tinha um marido. Majid respondeu: É mentira, pois sei tudo a seu respeito. Case comigo ou vou arruinar sua vida.

Dois dias depois, saí do trabalho por volta das 16h30 e caminhava pela rua quando senti alguém apressado atrás de mim. Deixei a pessoa me ultrapassar e vi que era Majid, com um frasco na mão.

Ele atirou um líquido no meu rosto, pensei que fosse água quente. Ele riu e saiu correndo, e minha vista escureceu.

A última coisa que meus olhos enxergaram foi o tênis de Majid. Logo senti uma queimação atroz e entendi que o líquido que escorria pelo meu rosto não era água quente, mas ácido sulfúrico.

Comecei a gritar no meio da rua e arranquei desesperadamente minha roupa e até meus calçados, que não paravam de queimar.

Doía muito e eu não enxergava nada. Trouxeram água e eu molhei minhas mãos e braços, mas o efeito foi pior, pois minha pele começou a ferver. Um homem me disse: Não leve a água à cabeça, senão seu rosto vai se desmanchar.

Fui levada de hospital em hospital até ser atendida.

Nem na clínica de queimados sabiam o que fazer comigo. Diziam nunca ter visto um caso assim. Cinco horas depois, um médico anunciou que meu olho esquerdo estava perdido e que meu olho direito tinha chance de ser salvo.

Com ajuda financeira do então presidente Mohammad Khatami, fui fazer tratamento em Barcelona, onde uma operação bem-sucedida me permitiu recuperar 40% da visão do olho direito.

SEM DINHEIRO NEM TETO

Mas Mahmoud Ahmadinejad, eleito em 2005, cortou a ajuda, e mergulhei numa situação muito difícil na Espanha, sem dinheiro nem teto.

Em 2007, peguei uma infecção num abrigo social e perdi de vez o olho direito. Foi aí que decidi voltar ao Irã para pedir a Lei de Talião [olho por olho, dente por dente, criada na Babilônia antiga].

A Justiça argumentou que a lei nunca era aplicada, mas, no ano passado, ganhei a causa. Majid já estava no hospital judiciário para ser cegado quando anunciei que o perdoava. Ele se jogou no chão e beijou meus pés.

No fundo eu nunca quis aplicar a Lei de Talião. Jamais poderia fazer isso, não sou selvagem. Eu queria mesmo chamar a atenção para o caso e evitar que outras pessoas passem pelo que sofri.

Hoje o que importa é o dinheiro. Quero que ele me pague 150 mil. Mas ele foi solto pela Justiça, que não gostou de eu ter recuado da lei.

Há muita complicação, mas continuo atrás do dinheiro. Volto dentro de alguns dias para Barcelona, onde sigo tratamento e vivo com a ajuda que Ahmadinejad retomou depois que eu perdoei Majid.

Um médico na Espanha acha que pode recuperar meu olho esquerdo. Enquanto isso, quero que meu livro saia no mundo todo.”

Notícia publicada no Jornal Folha de São Paulo , em 21 de novembro de 2012.

Sergio Rodrigues comenta*

A chamada “pena de talião” é uma das mais antigas leis existentes, desde a Babilônia. Consiste na reciprocidade entre o crime e a pena, convertendo-se, em última análise, numa retaliação do ofendido em relação ao ofensor. Foi instituída com o objetivo de evitar que as pessoas fizesse justiça elas mesmas, de modo excessivo, ultrapassando o limite da razoabilidade. Sua instituição, assim, foi um início de ordem numa sociedade indisciplinada e com conceitos morais ainda pouco compreendidos. Mais tarde, a Lei de Moisés, destinada a espíritos também ainda atrasados e endurecidos, manteve este preceito, estimulando a vingança, como forma de impor algum respeito àqueles homens. Moisés dava ao ofendido o direito de tirar desforra, pessoalmente e na proporção da ofensa recebida. O “olho por olho, dente por dente” veio impor algum limite a um povo violento e difícil de ser contido dentro dos limites civilizatórios.

Com Jesus, porém, a ideia de vingança começou a ser combatida, ensinando o Mestre: “Aprendestes que foi dito: olho por olho e dente por dente. - Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal que vos queiram fazer; que se alguém vos bater na face direita, lhe apresenteis também a outra; - e que se alguém quiser pleitear contra vós, para vos tomar a túnica, também lhes entregueis o manto; - e que se alguém vos obrigar a caminhar mil passos com ele, caminheis mais dois mil. - Dai àquele que vos pedir e não repilais aquele que vos queira tomar emprestado” (MATEUS, cap. V, vv. 38 a 42). E a estes ensinamentos seguiram-se exemplos de mansidão, generosidade, tolerância, paciência e perdão. Ao ensinar que devemos apresentar a outra face àquele que nos haja batido numa, Jesus deixa claro que não se deve pagar o mal sofrido com a prática do mal e que é melhor suportar com paciência e resignação um ofensa do que ser o ofensor. Quis, portanto, com estas palavras, condenar a vingança, qualquer que seja a maneira como ela se manifeste.

Mas para transformar este ensinamento em atitude é indispensável a fé na vida futura e na justiça de Deus. É preciso estar consciente de que o Criador jamais deixa que o mal fique impune, prescindindo que nos tornemos julgadores e executores da condenação. A iraniana em questão, embora muito provavelmente não seja seguidora do Cristianismo, segmento minoritário naquela região, demonstrou que traz vivo em seu coração os ensinamentos de Jesus. E os pratica. Perdoou aquele que tornou sua atual existência penosa e repleta de limitações, quando tinha tudo para dele desforrar-se, inclusive o amparo dos poderes representativos da sociedade. Que o seu exemplo possa ser seguido por todos nós, que, muitas das vezes, por muito menos, temos impulsos vingativos ainda mais violentos.

  • Sergio Rodrigues é espírita e colaborador do Espiritismo.Net.