Carregando...

Com medo da liberdade e dos riscos inerentes a ela, muitos de nós aderem à manada, colam no grupo: religioso, corporativo, profissional, cultural, intelectual, político, de orientação sexual ou até esportivo. Mas o que pode ser mais extraordinário do que inventar uma vida? Carlos Miguel Pereira comenta.

  • Data :28/09/2011
  • Categoria :

A doença de ser normal

Com medo da liberdade, preferimos aderir à manada

Eliane Brum

Na semana passada, li uma entrevista do professor José Hermógenes de Andrade Filho, uma lenda no mundo da ioga no Brasil. No texto, ele conta ter criado uma palavra – “normose” – para dar conta daquele que talvez seja o grande mal do homem contemporâneo. “Normose” seria a “doença de ser normal”. O professor explica: “Como diz o título de um documentário que fizeram sobre mim: ‘Deus me livre de ser normal!’. Pois, na dita normalidade em que vivemos, somos constantemente alimentados pelo que nos aliena de nós. Com isso, perdemos a noção das coisas, do sentido de nossa vida, deixando que o mundo interfira muito mais do que deveria. (…) Essa normalidade nunca esteve tão distante da verdade”.

A entrevista faz parte de uma coletânea de boas conversas com pessoas ligadas ao universo da espiritualidade – não necessariamente religiosa – no Brasil e no mundo, escrito em dois volumes pelo jornalista mineiro Lauro Henriques Jr., com o título “Palavras de poder” (LeYa, 2011). Ganhei os dois livros de uma pessoa especial na minha vida e por isso comecei a ler com curiosidade. Me deparei com a “normose” do professor Hermógenes. E fiquei instigada a pensar sobre ela.

No mesmo período, o psicanalista e romancista Contardo Calligaris fez na Flip, em Paraty, um comentário bem provocador: “Quando desistimos da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo, aí está a origem do mal. O grupo, para mim, é o mal.”

Acredito que, por caminhos diferentes, Hermógenes e Calligaris nos estimulam a pensar em algo que vale a pena, que um chamou de “normose” e o outro de “comportamento de grupo”. Daqui em diante, enveredo pelas minhas reflexões a partir das provocações de ambos – que possivelmente sejam diversas do que eles pensaram ao propô-las. A responsabilidade, portanto, é minha.

No passado, a vida no Ocidente era determinada pela tradição. O destino de cada um era imutável, definido pela sua origem, pela categoria social a qual pertencia, e não havia dilemas sobre o que seria a sua passagem pelo mundo: se você fosse homem, seguiria os passos do pai; se fosse mulher, os da mãe. De todos era esperado o cumprimento de um roteiro previsível, que, se você nascesse homem, consistia em dar sequência aos negócios ou ao ócio da família, ou trabalhar para o mesmo patrão ou senhor do pai; e, se nascesse mulher, casar-se com alguém do mesmo nível social, em contratos arranjados previamente, reproduzir-se e cuidar da sua própria casa ou servir na casa em que a mãe serviu. Além disso, esperava-se que cada novo núcleo familiar seguisse a religião dos pais e participasse da comunidade do jeito de sempre, cada um no seu lugar determinado pelo estrato social.

A modernidade embaralhou tudo isso. E fomos, como disse Sartre, “condenados a ser livres”. É o preço que o indivíduo paga para ser indivíduo. Ainda que, em países desiguais como o Brasil, a classe social na qual se nasce influencie as chances que cada um vai ter, mesmo aqui estamos muito longe de ter o lugar cimentado da tradição do mundo de ontem. E cada governo democrático, se quiser garantir a continuidade de seu projeto no poder, precisa agora prometer trabalhar para igualar as bases de onde cada cidadão partirá para construir sua história. No mundo contemporâneo, cada um é o principal responsável pelas suas escolhas, pelos seus desejos e pelas suas desistências.

Embora existam muitos órfãos da tradição, suspirosos de nostalgia, penso que a prisão daquela vida determinada desde antes do nascimento era mais assustadora do que a liberdade de se estrepar que a modernidade nos deu. É verdade, porém, que para viver hoje é necessário um outro tipo de coragem, já que cada homem ou mulher virou em si um projeto em constante construção e desconstrução. Não é que não exista mais chão, mas ele é pantanoso, e cada um precisa escolher diante de um emaranhado de trilhas. E, se cada uma delas leva a lugares diferentes, é fato que nenhuma é segura.

É aí que a “normose” ou o “comportamento de grupo” se encaixa. Qual é o desafio de cada um de nós hoje? Desde que você não esteja na faixa da população em que toda energia e talentos são gastos na luta pela sobrevivência mais básica, o desafio que se impõe diante de cada um é a busca da sua singularidade. E esta é a busca de uma vida inteira. Não como se você tivesse uma essência que precisasse encontrar e, tão logo encontrada, estivesse tudo resolvido. Pelo contrário, esta procura leva à invenção de nós mesmos – e nunca está nada resolvido, já que sempre podemos nos reinventar. Não sem limites, mas às voltas com eles.

A proposta da modernidade e da ideia de indivíduo, muito mais libertária do que nossos antepassados amarrados pela tradição jamais sonharam, parece ótima. O problema é que dá uma angústia danada, já que, a rigor, não haveria ninguém para culpar por uma escolha equivocada ou porque o enredo que inventamos para a nossa vida saiu diferente do nosso desejo. Então, com medo de nos “enforcarmos nas cordas da liberdade”, como diz o ator Antônio Abujamra no programa “Provocações” (TV Cultura), em vez de nos arriscarmos a criar uma vida, nos responsabilizando por ela, aderimos à manada. E aqui, é importante deixar bem claro, não estou me referindo a lutas coletivas movidas por indivíduos unidos por suas singularidades, mas à adesão que implica se deixar possuir pelo grupo para não se arriscar a ser possuído por si mesmo.

Nesta adesão à manada, a “normose” ou o “comportamento de grupo” substituiria ilusoriamente o vazio deixado pela tradição. Com medo da liberdade e dos riscos inerentes a ela, muitos de nós colam no grupo. Seja ele do tipo que for: religioso, corporativo, profissional, cultural, intelectual, político, de orientação sexual ou até esportivo. Cada um deles garante, ainda que de forma muito mais frágil do que a tradição, um certo jeito de se comportar e de se vestir, um tipo de ambiente a frequentar, temas que merecem ser debatidos, gêneros de lazer e de viagens para as férias e para os fins de semana, crenças para compartilhar e até bens para adquirir. Um tipo de “normose” – que, paradoxalmente, mas com muita lógica, dentro do grupo é tratada como “diferentose”, já que, como coletivo, contrapõe as suas verdades a dos outros grupos, em geral vistos como inferiores ou limitados.

E como estas são as pessoas com quem se convive, torna-se meio inevitável namorar e ter filhos com gente da mesma turma. Assim como a tendência é reproduzir mais e mais os mesmos padrões e visão de mundo. Sem questionar, porque questionar possivelmente levaria a uma ação. E todos nós conhecemos gente, quando não nós mesmos, que prefere deixar tudo como está, ainda que doa, para não se arriscar ao desconhecido. É assim que muitos de nós abrem mão da época histórica mais rica de possibilidades de ser em troca de uma mercadoria bem ordinária: a ilusão de segurança. Mas, como sabemos, lá no fundo sentimos que algo está bem errado. Especialmente quando fica difícil levantar da cama pela manhã para seguir o roteiro programado.

Suspeito que o mal-estar contemporâneo tem muito a ver com não estarmos à altura do nosso tempo. No passado, havia “outsiders”, gente que desafiava a tradição para inventar uma outra história para si. Hoje, com a (bendita) falência da tradição, talvez o que se exija de nós seja que todos sejamos “outsiders” à nossa própria maneira – não no sentido de contrariar o mundo inteiro, mas de encontrar o que faz sentido para cada um, arriscando-se ao percurso tortuoso do desejo. Ciente de que, logo adiante, vamos perder o sentido mais uma vez e teremos de nos reinventar de novo e de novo, num processo contínuo de construção e desconstrução movido pela dúvida – e não pelas certezas.

Vivemos numa época de intenso movimento interno, em que se perder seja talvez o melhor caminho para se achar, mas nos agarramos à primeira falsa promessa como desculpa para permanecermos imóveis. Voltados sempre para fora e cada vez com mais pressa, porque olhar para dentro com a calma e a honestidade necessárias seria perigoso. Queremos garantia onde não há nenhuma, sem perceber que o imprevisível pode nos levar a um lugar mais interessante. Podemos finalmente andar por aí desencaixotados, mas na primeira oportunidade nos jogamos de cabeça numa gaveta com rótulo. Ainda que disfarçada de vanguarda.

Mas o que pode ser mais extraordinário do que inventar uma vida, ainda que com todas as limitações do existir? E que utopia pode ser maior do que nos igualarmos pela singularidade do que cada um é?

Acho que vivemos um momento histórico muito rico. Só precisamos de mais coragem. Como diz o professor Hermógenes, do alto dos seus 90 anos, “Deus (seja ele o que for – ou não – para cada um) me livre de ser normal!”.

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

Coluna publicada na Revista Época , em 18 de julho de 2011.

Carlos Miguel Pereira comenta*

Na sociedade contemporânea, existe um chavão muito utilizado que consiste em afirmar: “É preciso respeitar o direito à diferença”. É uma afirmação tão óbvia que nem deveria ser preciso repeti-la tantas vezes, mas uma coisa são as palavras que dizemos e outra bem diferente é o que fazemos com elas. Na realidade, vivemos ainda numa sociedade profundamente preconceituosa em relação ao que é diferente. A jornalista Eliane Brum, sempre tão lúcida nas suas crônicas, propõe-nos uma saudável reflexão sobre o conceito de normalidade e algumas das suas perversidades.

Para respeitar o direito à diferença a que fiz referência, é necessário, em primeiro lugar, não ter pudores em exercer a própria singularidade. Anular aquilo que possuímos de mais genuíno através da homogeneização e da globalização, tão em voga nos nossos dias, é algo perturbador e, por mais paradoxal que possa parecer, este é um ponto crucial para a construção de uma sociedade justa, regida pela Lei Divina da Igualdade.

O homem é um animal gregário, gosta de viver em rebanho, ou seja, entre os que são mais parecidos com ele. Ao longo da sua evolução, a atração pelo grupo proporcionou-lhe proteção, sobrevivência e progresso. Os grupos não são o mal, aliás eles são agentes de desenvolvimento, de união de vontades, ideias e esforços na construção de objetivos comuns. Ainda hoje, o grupo exerce uma influência cativante, mas, em algumas situações, devido ao enorme temor que o Homem revela pela solidão e diferença, pertencer a um grupo pode tornar-se um refúgio para as suas ansiedades, é um conforto emocional. Se eu sou como todos os que me rodeiam, se não possuo sentimentos, ideias ou pensamentos que me diferenciem, se ajo de acordo com os costumes, tradições, normas e padrões do meu grupo, eu me confirmo no caminho certo, porque sou “normal”. Quando aderimos a um grupo com este tipo de motivação, e às vezes fazemos isso de forma inconsciente, não estamos a ser normais, mas sim normalizados. Ou seja, acabamos nos moldando segundo uma determinada norma que é a norma do grupo, limitando o exercício da nossa singularidade. Habituados ao exercício de uma normalização, quando nos deparamos com alguém que não pertence ao nosso clã, que tem um comportamento diferenciado ou se parece de uma outra maneira, o animal gregário que há em nós, embora diga bem alto que é preciso respeitar as diferenças, fica assustado e sente-se ameaçado.

A agressividade, o fanatismo e a xenofobia começam no seio de grupos onde a normalização é promovida. Quando desistimos de nos conhecer intimamente e abdicamos da nossa singularidade - aquilo que nos faz únicos e especiais – e da nossa capacidade de reflexão para descansarmos no comportamento do grupo, cometemos um equívoco tremendo. Levado ao extremo, pode ter consequências terríveis. Ainda hoje, ninguém consegue esconder a perturbação ao procurar entender como pessoas “normais” foram capazes de comportamentos tão perversos e insensíveis quando inseridas no contexto de um grupo, ao ponto de praticarem atos bárbaros. Um oficial nazi, de nome Eichmann - que assinou sentenças de morte de milhares de seres humanos em campos de concentração -, julgado em Jerusalém, revelou que nunca colocou a hipótese de questionar as ordens recebidas porque tinha o objetivo de ser bem sucedido e subir de posto. O que movia Eichmann na condenação de milhares de inocentes é o mesmo objetivo que faz mover milhões de pessoas em todo o mundo: ser bem sucedido e subir de posto. Eis uma reflexão que é urgente ser feita para percebermos aquilo que a incapacidade para questionar e refletir são capazes de produzir.

Dentro de uma homogeneização de comportamentos e ideias, onde o exercício da singularidade e da auto-reflexão não seja estimulado, escasseia o estímulo e a aceitação para a diversidade. Quando a aceitação para a diversidade diminui, aumenta o preconceito e a intolerância pela diferença, diminui a capacidade de ver o outro como um ser humano e tratá-lo como tal.

O poeta Fernando Pessoa escreveu: “Para ser grande, sê inteiro”. O desafio mais precioso da vida espiritual não é o da excelência, mas o da felicidade. E só poderemos ter ambições reais à felicidade se formos inteiros. Ou seja, se embarcarmos em pleno nessa viagem de descoberta sobre quem somos, conhecendo aquilo que nos torna Espíritos únicos e especiais e agindo em coerência com essa singularidade. Se formos nós próprios em todos os lugares onde estivermos.

  • Carlos Miguel Pereira trabalha na área de informática e é morador da cidade do Porto, em Portugal. Na área espírita, é trabalhador do Centro Espírita Caridade por Amor (CECA), na cidade do Porto, e colaborador regular do Espiritismo.net.