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Quanto mais coisas se tem, mais tempo e esforço se gasta para administrá-las. Transformar objetos reais em arquivos digitais, reduzir os pertences ao mínimo e se manter superconectado são os princípios de um movimento que permite viver mais leve e trabalhar de qualquer lugar. Claudia Cardamone comenta.

  • Data :24/04/2011
  • Categoria :

Viver com menos

Transformar objetos reais em arquivos digitais, reduzir os pertences ao mínimo e se manter superconectado são os princípios de um movimento que permite viver mais leve e trabalhar de qualquer lugar do mundo

por Daniela Arrais

O engenheiro de software americano Kelly Sutton, 23 anos, viajava pela Europa quando percebeu que carregava em sua mochila tudo o que precisava para viver. Na volta para casa — um apartamento no Brooklyn, em Nova York — lançou-se um desafio: reduzir seus pertences a ponto de que eles coubessem em duas malas e duas caixas de 50 centímetros cúbicos cada. Como bom engenheiro de software, para se desfazer dos seus pertences Sutton não usou sites de venda e troca como o Craigslist, o famoso endereço onde se pode negociar de tudo, mas criou sua própria plataforma online.

Para começar, Sutton listou tudo o que tinha. Eram cerca de 230 itens, entre cuecas e meias, um iPad, um relógio Burberry, um short para corrida e um exemplar do livro Boas Notícias sobre Casamento e Sexo. Classificou os objetos em três categorias: manter, vender e doar, e colocou as ofertas no site CultofLess.com (culto ao menos, em português), que criou especialmente para isso. Quatro meses depois, seu apartamento estava quase vazio. O que restou não foi além do essencial: a cama, o guarda-roupa, algumas peças de roupa, uma mesa e uma bicicleta. Além, é claro, de seu arsenal tecnológico. Sutton não se desapegou dos gadgets, a começar pelo laptop. “Não abro mão do meu computador. É minha fonte de renda, planejamento e diversão”, diz. Ele manteve ainda o iPad e o Kindle, onde lê livros e notícias e, quando não consegue baixar um programa ou seriado que está a fim de assistir, vai ver televisão nos bares da redondeza. “Descobri que ter mais coisas leva a mais estresse.”

O estilo de vida que Sutton e cada vez mais pessoas de sua geração vêm escolhendo, desapegado de pertences físicos, mas ultraconectado, se tornou possível a partir do momento em que pudemos digitalizar a maior parte do acervo que guardamos em casa para nos divertir ou trabalhar. Fotos, livros, revistas, papéis, DVDs e documentos que costumam encher armários e gavetas, estão agora armazenados em perfis no Facebook, contas no Flickr e no iTunes ou em tablets que carregam centenas de eBooks, seriados e revistas baixados da rede.

Nos Estados Unidos, a venda de livros tradicionais caiu 2%, enquanto a de eBooks cresceu 176% em 2009. “Cada vez mais gente vai cortar o excesso e editar suas vidas”, diz o americano Graham Hill, fundador do portal de sustentabilidade Treehugger.com, que lançou o concurso Life Edited (vida editada, em português, com inscrições até 10 de janeiro em lifeedited.treehugger.com). Ele premiará propostas para o redesenho de um apartamento de 39 metros quadrados em Nova York em que deve ser possível morar, trabalhar e ainda receber os amigos — fazer caber uma mesa de jantar para 12 pessoas e um sofá de oito lugares estão entre as regras.

SÓ O ESSENCIAL

Editar a vida foi o primeiro passo para que o casal Bruno Algarve, 30 anos, ilustrador, e Daisy Biagini, 29 anos, designer, começasse a viver com menos objetos e mais mobilidade — uma das principais vantagens desse estilo de vida — e partisse para uma mudança mais radical logo em seguida. Há cinco anos, Bruno se deu conta de que não conhecia nem mesmo a voz dos seus clientes: todo o trabalho era resolvido por e-mails. Não havia motivo para se prenderem a São Paulo, pois não dependiam do local em que estavam para trabalhar. “Vendemos ou doamos tudo o que tínhamos. Trocamos computadores de mesa por laptops, entregamos o apartamento que alugávamos e saímos para viajar”, diz Bruno.

O que sobrou foi colocado em dez caixas de papelão e armazenado em um quartinho na casa dos pais de Daisy. Agora, cada um tem duas mochilas. “Uma para roupas, outra para o ‘escritório’”, diz Bruno. Nessa segunda estão seu laptop surrado, uma câmera fotográfica e um pen tablet, espécie de bloco de desenho eletrônico que usa para ilustrações digitais. O valor dos três itens não ultrapassa os R$ 3 mil. “Se o computador fosse novo, seria bem mais caro, mas faz parte do meu desapego usar tudo até o fim”, diz Bruno. De 2005 para cá, ele e a mulher passaram temporadas no Uruguai, Chile, Peru e Bolívia.

Em cada lugar, tiveram uma vida mais ou menos normal: alugavam apartamentos ou ficavam em pousadas. E sempre trabalharam de onde quer que fosse. “Para longos períodos se consegue um bom desconto em hospedagem”, diz Bruno. Volta e meia, o casal passa um tempo em São Paulo, e fica em apartamentos de amigos ou da família. É quando Bruno aproveita para alugar filmes em locadoras e copiar o conteúdo dos DVDs para o computador — cuja tela faz as vezes de TV. Ao terminar de ler um livro, Bruno doa para a primeira pessoa que aparecer em sua frente. “Chega a ser um alívio dizer que não vou comprar alguma coisa porque simplesmente não tenho onde colocar”, afirma o designer que, só para variar, acaba de adquirir um carro. “Percebi que me traria mais mobilidade”, afirma. Porém, carrega no porta-malas apenas as mesmas quatro velhas mochilas.

Foi também nas idas e vindas que o pesquisador de tendências Michell Zappa, 28 anos, deixou muita coisa para trás. Desde os 15 anos, quando saiu de São Paulo para morar em Estocolmo, na Suécia, com a família, troca de endereço periodicamente. Nos últimos sete anos, viveu períodos alternados entre Amsterdã, Nova York e São Paulo. Naturalmente, em cada uma de suas mudanças, se desfazia de alguns pertences. Hoje, guarda alguns móveis e objetos de arte em casas espalhadas em São Paulo, da família ou de amigos. “De resto, é tudo descartável: geladeira, estante e TV são coisas que você pode comprar de novo sem perder muito dinheiro”, diz. Ao deixar para trás pequenos acervos, Michell se livrou de muita coisa física, mas também de algo abstrato. “Vi que não tenho medo de mudar em todos os sentidos. Fico mais perto do chão. A queda é sempre menor.”

POSSES DIGITAIS

A sensação de liberdade que gente como Michell e Bruno experimentam vem também do fato de que, quanto mais coisas se tem, mais tempo e esforço se gasta para administrá-las. “O que significa ter um carro? Lembrar de pagar o IPVA, fazer a vistoria, levar para revisão, lavar. Adquirir algo novo implica em cuidado, dedicação e mais preocupações”, diz a psicanalista do Grupo de Pesquisas em Hipermídia e Games da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Arlete Petry. Tarefas como essas, burocráticas, acabam ficando de lado nesse novo estilo de vida editado.

Computadores e eletrônicos pequenos, mas muito potentes, continuam objetos essenciais para quem adota esse caminho. “Talvez seja o computador o objeto mais fundamental da vida contemporânea, assim como o celular que nos mantém conectados. Desapegamos do resto porque já temos acesso a quase tudo e todos com esses dois aparelhos”, diz Arlete Petry. O analista de mídias sociais Ian Black, 32 anos, de São Paulo, não tem DVD player e não frequenta locadoras de vídeo há quatro anos, mas passou os últimos dez acumulando seu acervo considerável de música e entretenimento digital. Ian tem 20 mil faixas armazenadas e mais de um TB (terabyte ou 1.024 gigabytes) em filmes e séries, ou cerca de 400 filmes baixados que ainda não assistiu. “Faço isso principalmente para não ter problema de espaço, mas é um jeito torto de ser ecologicamente correto”, diz, já que consumir menos significa também gastar menos recursos naturais.

MENOS É MAIS?

O paradoxo dos eletrônicos é que, se por um lado nos ajudam a desapegar de acervos materiais, por outro estimulam o consumismo virtual. “Compramos HDs externos, iPods, tablets e pendrives achando que funcionam como um meio para possuir menos coisas. No entanto, continuamos a ter as mesmas coisas, só muda o formato”, diz Dalton Martins, do projeto Meta Reciclagem, de São Paulo, rede para reaproveitamento de computadores, uso de software livre e de licenças abertas com fins sociais.

A migração da ideia de propriedade, aliás, é outra mudança significativa no movimento de culto ao mínimo. “Até pouco tempo, considerávamos apenas coisas físicas como propriedade privada. Hoje, uma mercadoria pode ter várias formas”, diz Eduardo Fernandes, designer de interatividade e mestre em ciências políticas. A facilidade de transformar conteúdos físicos em digitais pode até surtir um efeito contrário ao desprendimento: o de acumular cada vez mais informação, já que o espaço é ilimitado. “Acredito mais num processo de desapego mental e que, pode sim, reverter em desapego de matéria”, diz Felipe Fonseca, do Meta Reciclagem.

O administrador de redes de informática Matheus Lamberti de Abreu, 28 anos, de Maringá (PR), procurava na internet formas de organizar sua vida digital. Topou com o conceito de culto ao menos e o aplicou de imediato. Primeiro, concentrou seus e-mails em uma só conta, encerrou alguns perfis em programas de trocas de mensagens eletrônicas e organizou fotos e músicas no computador. Quando se deu por satisfeito, fez o mesmo na vida real. Vendeu e doou livros, roupas e objetos. Embora ainda precise se desfazer de muita tralha, já liberou bastante espaço em casa. “Viver assim me deixa mais leve”, diz. Vale o mesmo para a bagagem de Bruno Algarve, mas esse não foi o maior ganho com a mudança de vida. “Hoje podemos olhar o mundo como um leque de possibilidades. Se quiser criar minhas raízes agora, posso escolher praia, cidade ou outro país”, diz Bruno, que logo se dá conta. “Pensando bem, acho que nos apegamos à nossa liberdade.”

Matéria publicada na Revista Galileu , em janeiro de 2011.

Claudia Cardamone comenta*

São Francisco, em sua ordem religiosa, pregava a possibilidade e missão de viver com menos. Disse ele a Frei Ricério da Marca: “Irmão, digo-te que esta foi e é minha primeira e última intenção e vontade, se os frades tivessem acreditado em mim, que nenhum dos frades deveria ter senão o hábito, com o cíngulo e os calções, conforme nos concede a nossa Regra”.

“Eu entendo que os frades nada devem possuir a não ser o hábito com a corda e os calções, conforme diz a Regra. E os que forem obrigados pela necessidade, podem usar calçados”.

Este estilo de vida só é possível àqueles que trabalham via internet, seja conectado ou através de email, mas para isto é preciso que existam fábricas e funcionários que fabriquem os equipamentos necessários à conexão deles, é preciso que pessoas trabalhem em transporte público, hospedagem e alimentação para que estes sintam-se leves e livres, viajando pelo mundo sempre conectados.

Não! Não é uma crítica, apenas uma reflexão. Mas há uma verdade que incomoda neste texto. Olhe ao seu redor! Você realmente precisa de tudo isto para viver? É errado ter tudo isto?

Kardec comenta, em O Livro dos Espíritos , sobre as questões 715 a 717: O limite entre o necessário e o supérfluo nada tem de absoluto. A civilização criou necessidades que não existem no estado de selvageria, e os Espíritos que ditaram esse preceitos não querem que o homem civilizado viva como selvagem. Tudo é relativo e cabe à razão colocar cada coisa em seu lugar.

É possível viver com apenas algumas peças de roupa, com a tecnologia suficiente, mas é preciso domar nossa vaidade e orgulho. É preciso fazer como diz Francisco e se despir de tudo que é matéria para poder usá-la de forma racional, comandando-a para que ela não nos comande.

Um exemplo é a música. É possível viver ouvindo as rádios, numerosas e diversificadas, ao invés de comprar centenas de Cds ou mesmo acumular incalculáveis bytes de músicas baixadas e arquivadas. A matéria tem muitas formas, mas o desapego é sempre o mesmo.

É possível viver sem computador? Sem ipod? Sem e-book? É possível viver sem acumular coisas, sejam de que forma forem?

Viver com menos é aprender a reconhecer o que é verdadeiramente necessário em nossas vidas.

  • Claudia Cardamone nasceu em 31 de outubro de 1969, na cidade de São Paulo/SP. Formada em Psicologia, no ano de 1996, pelas FMU em São Paulo. Reside atualmente em Santa Catarina, onde trabalha como artesã. É espírita e trabalhadora da Associação Espírita Seareiros do Bem, em Palhoça/SC.