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Não há árvore genealógica que explique famílias com vários divórcios, novos casamentos, meio-irmãos e agregados. Essas famílias, cada vez mais comuns nas estatísticas, não são nada parecidas com aquelas tradicionais. Jorge Hessen comenta.

  • Data :08/04/2011
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Superação da família nuclear cria novos modelos de relacionamento

JULIANA VINES DE SÃO PAULO

Não há árvore genealógica que dê conta de explicar famílias com vários divórcios, novos casamentos, meio-irmãos e agregados.

Essas famílias, cada vez mais comuns nas estatísticas, não são nada parecidas com aquelas do comercial de margarina.

“O conceito de família nuclear (com pais e filhos na mesma casa) não é mais suficiente. Há arranjos domésticos sem nenhum padrão”, diz a socióloga Elisabete Bilac, do Núcleo de Estudos Populacionais da Unicamp.

As mudanças aconteceram nas últimas três décadas. Nos anos 1980, 70% das famílias eram nucleares. Hoje, menos da metade é assim.

Se a “família margarina” está cada vez mais rara, as monoparentais (com apenas pai ou mãe) são as que mais crescem. Efeito prolongado da popularização do divórcio, dizem especialistas.

Também são mais comuns os casais que decidem não ter filhos. Em inglês, são chamados de casal Dink, sigla para dupla renda sem filhos (“double income no kids”). No Brasil, já são 17% do total, segundo o IBGE.

“É uma grande mudança em pouco tempo”, diz José Eustáquio Alves, demógrafo da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE. “Houve uma inversão demográfica. Temos menos filhos, demoramos mais para tê-los e vivemos mais.”

Isso somado às novas formas de relacionamentos deu origem a famílias diferentes do padrão tradicional.

Mônica Fontes, professora, 33, e Thiago Fernandes, publicitário, 34, são um casal LAT (“living apart together”, ou vivendo juntos separados). São casados, não no papel, têm um filho de 5 anos e vivem em casas separadas.

“Meu filho pergunta por que estamos separados e nos beijamos, e os pais dos amigos dele estão separados e não se beijam”, conta a mãe.

Não é uma escolha do casal. Com tantas mudanças de emprego e de cidade, nunca conseguiram morar juntos. Neste ano, enfim, pretendem dividir a mesma casa.

“Vai ser uma mudança radical”, diz o pai.

NÃO IDENTIFICADO

De acordo com a terapeuta Cristiana Gonçalves Pereira, do Instituto de Terapia Familiar de SP, não existe uma definição para o termo família.

“Cada um diz quem é a sua família. A definição está no discurso. É isso que vale.”

O problema da indefinição está também nas novas formas de relacionamentos afetivos. Isso porque entre o namoro, o noivado e o casamento, há inúmeras possibilidades de relacionamento que não estão no dicionário.

O Facebook já tem nove opções de estado civil, entre elas, amizade-colorida e relacionamento enrolado.

Segundo a antropóloga e colunista da Folha Mirian Goldenberg, a sociedade não consegue acompanhar o ritmo dos relacionamentos.

“Essas relações não são consideradas legítimas. Isso gera um incômodo.”

O problema continua em famílias com vários divórcios e “meio-parentes”, como ex-tios ou novas avós.

A filósofa Fernanda Carlos Borges, autora de “A Mulher do Pai” (Summus Editorial, 136 págs., R$ 31) está no segundo casamento.

“Sou a mulher do pai. A mãe dos filhos do meu marido é viva e mora com eles. Não sou madrasta e não sou parente das crianças, que direitos e deveres eu tenho?”

Para ela, a falta de nome para esse papel é um sinal de que a relação é mal resolvida.

“Assumimos responsabilidades sem muitas garantias. É fácil surgirem conflitos.”

Famílias como a de Fernanda Borges são chamadas de mosaico - quando pais separados se casam novamente e seus filhos convivem mesmo sem ser parentes.

O menino Daniel Mantelatto Gallo, 10, é um dos vértices de um mosaico que, para entender, só desenhando.

Ele é filho único e tem cinco meio-irmãos. Sua mãe, a escritora Fernanda do Valle, 32, é casada há três anos. Seu marido já tinha duas filhas de outro casamento.

O pai de Daniel também já tinha um filho quando ele nasceu e acabou de ter outro. O avô dele se casou de novo, e sua mulher está grávida.

Quando questionado sobre como ele chama as ex-mulheres do seu pai ou então sua nova avó, ele diz: “Pelo nome, ué”.

Há quem fale no declínio da instituição familiar. Para a antropóloga Lia Zanotta Machado, da Universidade de Brasília, acontece justamente o contrário.

“Fala-se em declínio porque o principal modelo de vida não é mais o único. Mas a família está mais forte com os diferentes arranjos.”

Mesmo comuns, esses novos arranjos ainda causam estranhamento.

“Há um preconceito e um moralismo. A família nuclear ainda é considerada a ideal”, afirma Maria Coleta de Oliveira, socióloga da Unicamp.

Quando a locutora Joana Ceccato, 40, solteira, conta que está grávida de gêmeas graças a uma fertilização in vitro, sempre escuta: “Como assim?”

“Todo mundo já ouviu falar, mas nunca viu de perto.”

O pai das gêmeas é um ex-namorado de dez anos atrás, que hoje é apenas amigo.

“Ele é meu vizinho e nos damos bem”, afirma.

Segundo a terapeuta familiar Flávia Stockler, não importa como os filhos são gerados nem qual o grau de parentesco entre eles, mas como a família lida com isso.

“Qualquer opção pode funcionar ou não. Uma família tradicional pode criar monstrinhos e um casal no segundo casamento pode se sair muito bem”, afirma.

Para ela, o que importa é a qualidade do vínculo. “É preciso manter as relações de respeito e o diálogo. Mesmo com brigas ou separações.”

DEPOIMENTOS

“Sempre quis ser mãe, mas acabei tendo vários casamentos, todos duraram mais ou menos um ano.

Tenho endometriose, é mais difícil engravidar. Acabou nunca dando certo. Então, resolvi convidar um ex-namorado para fazer fertilização in vitro comigo.

Sempre me dei bem com meus ex-namorados.

O pai das gêmeas “é assim que eu digo, ou então chamo pelo apelido mesmo, ‘Fralda’” está solteiro. Eu também. Não fomos casados, moramos juntos há mais de dez anos.

Continuamos amigos. É um relacionamento que já tem respeito e carinho, é uma pessoa em quem eu confio.

Quando minhas amigas souberam que eu estava grávida, ficaram emocionadas. Todos sabiam que eu queria muito.

Quem não me conhece, quando sabe, acha estranho.

Já acertamos como vai ser depois que as gêmeas nascerem. Deixamos claro que cada um pode se relacionar com quem quiser.

Moro com um amigo. Não quero criar minhas filhas sozinha. Sei que elas precisam conviver com outras pessoas. Tenho vários amigos e o ‘Fralda’ quer ser um pai presente.”

Joana Ceccato, 40, locutora, grávida de cinco meses

“A única que não foi por esse caminho [de ter vários casamentos] fui eu. Me casei uma vez e me separei, mas minhas filhas se separaram e casaram de novo.

Acabo criando um vínculo com os novos maridos e com os filhos deles.

Não os considero como netos, considero como se fossem sobrinhos.

Mas são pessoas da família. Os ex-genros também são da família, apesar de não termos muito contato.

Hoje, não adianta a gente achar que tem que casar e ficar junto para sempre. Não é mais assim. O mundo está diferente.

Todo mundo tem que ter uma segunda chance. Mas não é para casar e descasar várias vezes também.

Acho que o Daniel [o neto] entende isso tudo. Na época em que as mudanças aconteceram, ele sempre perguntava sobre os novos vínculos.

Ele é curioso e tem uma cabeça boa. Gosta de ter família grande. Só acho que, às vezes, fica confuso. Outro dia, teve que fazer uma árvore genealógica na escola e pediu ajuda da mãe. Não sabia se colocava os tios antigos ou os atuais.”

Cristina Vasconcellos, 58, professora de dança, avó de Daniel

“Faz seis anos que estou com o Thiago. Engravidei com três meses de namoro.

Na época, pensei: ‘Não quero morar junto com uma pessoa que não conheço’. Continuamos juntos, mas em casas separadas. Depois que o Guilherme nasceu, toda vez que pensamos em morar juntos, não deu certo. Primeiro, ele foi trabalhar no interior e eu fiquei em São Paulo. Depois, ele voltou, mas acabou sendo demitido.

Ele ficou na casa da mãe dele e eu na casa da minha. Moramos eu, Guilherme, minha mãe, minha avó e minha irmã. Meu filho diz que a família dele é papai, mamãe, vovó, tia e bisavó.

Meus pais são separados e a mãe do meu marido é viúva. Meu filho nunca viu pais morando com filhos na mesma casa. Ele pergunta: ‘A vó foi casada com o vô? Não acredito!’.

Pergunta também se eu e o Thiago somos namorados. Ele é meu marido. Acho que passou a ser marido de três anos para cá. Antes era namorado. Mas não somos casados. Neste ano nosso apartamento vai ficar pronto.

Meu filho vai achar esquisito morar só nós três.”

Mônica Fontes, 33, professora

Matéria publicada na Folha.com , em 26 de janeiro de 2011.

Jorge Hessen comenta*

As relações familiais deveriam ser, acima de tudo, de ordem ética. Mas observa-se nelas uma deterioração emocional profunda e uma complexa malha de desestabilidades morais, que nos importa examinar sob a lupa doutrinária. Os novos modelos de relacionamentos deram origem a famílias diferentes do padrão tradicional. Nos idos dos anos 80, mais de 70% das famílias eram nucleares. Hoje, menos da metade é assim.

Há uma deteriorização da instituição familiar. Destarte, é quase impossível atualmente a formatação de uma árvore genealógica da família moderna, posto que ela está sob os guantes dos desarranjos domésticos, reflexos das separações, divórcios, novos casamentos, meio-irmãos, agregados, etc. Está muito difícil a definição para o termo família, considerando as novas formas de relacionamentos afetivos. Isso porque entre o namoro, o noivado e o casamento há inúmeras possibilidades de relacionamento que nem sequer constam no dicionário.

A estrutura familiar tem suas matrizes na esfera espiritual. Em seus vínculos, juntam-se todos aqueles que se comprometeram, no Além, a desenvolver na Terra uma tarefa construtiva de fraternidade real e definitiva. Precisamos “melhorar, sem desânimo, os contatos diretos e indiretos com os pais, irmãos, tios, primos e demais parentes nas lides do mundo para que a vida não venha nos cobrar novas e mais enérgicas experiências em encarnações próximas. O cumprimento do dever, criado por nós mesmos, é lei do mundo interior a que não poderemos fugir."(1)

A velocidade dessas mudanças comportamentais tem estremecido as estruturas fundamentais da família tradicional. Todavia, a família nuclear ainda é considerada por muitos como a ideal. Inobstante sabermos que a família clássica pode criar malfeitores, e um casal no segundo casamento pode se sair muito bem na educação dos filhos.

O casamento (união permanente de dois seres), não é contrário à Lei da Natureza, muito pelo contrário. Na Codificação, os Benfeitores espirituais foram cotegóricos ao afirmar que “é progresso na marcha da Humanidade.”(2) Ora, o casamento implica em um regime de vivência pelo qual duas criaturas se confiam uma à outra, no campo da assistência mútua.

Por essa razão, o Espírito Emmanuel explica: “essa união reflete as Leis Divinas que permitem seja dado um esposo para uma esposa, um companheiro para uma companheira, um coração para outro coração e vice-versa, na criação e desenvolvimento de valores para a vida”.(3) A família é a célula-máter do organismo social. Qual seria, para a sociedade, “o resultado do relaxamento dos laços familiares, senão o agravamento do egoísmo?”(4)

A família, para determinadas religiões e sociedades, é algo indissolúvel. Tempos atrás, a manutenção dessas famílias era somente para manter aparências de respeito e felicidade. Hoje, observam-se famílias se desfazendo por trivialidades. O que é o ideal? A família de “porta-retratos” ou a família que se dissolve na primeira “tempestade moral”?

Cremos que o Centro Espírita pode dimensionar os serviços de suporte à família atual, mas não de forma isolada. Deve integrar suas ações com outras instituições, tanto de caráter religioso como social, na busca da melhor qualidade do atendimento individual e coletivo, naturalmente, sem perder sua identidade doutrinária, mas, objetivando o resgate da ordem moral, que deve alicerçar a família como espaço de convivência. No clã familiar de tempos mais antigos, sem dúvida, encontrava-se um espaço de convivência maior entre seus membros, embora não se esteja discutindo sua “qualidade”. Na atual arrumação familiar, pelo contrário, e apesar das menores dificuldades materiais, encontra-se um espaço menor de convivência.

Ante a luta doméstica, “devemos revestir-nos de paciência, amor, compreensão, devotamento, bom ânimo e humildade, a fim de aprender a vencer, na luta doméstica.”(5)

Bibliografia:

(1) Vieira, Waldo. Conduta Espírita. Ditado pelo Espírito André Luiz. 21ª edição. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 1998;

(2) Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1999, item nº 695;

(3) Xavier, Francisco Cândido. Vida e Sexo, ditado pelo Espírito Emmanuel, Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1972;

(4) Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1999, item nº 775;

(5) Xavier, Francisco Cândido e Vieira, Waldo. Leis de Amor, São Paulo: FEESP, 1981.

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal lotado no INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (dois livros publicados), Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.