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Eles são a síntese do conflito religioso que divide o país. Hoje, o imã muçulmano Muhammad Ashafa e o pastor cristão James Wuye lutam juntos pela consolidação da paz. Sonia Maria Ferreira da Rocha comenta.

  • Data :27/11/2009
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Inimigos no passado, líderes muçulmano e cristão na Nigéria agora se abraçam

Eles pegaram em armas para matar um ao outro. Hoje, o imã muçulmano Muhammad Ashafa e o pastor cristão James Wuye lutam juntos pela paz

Eliane Brum

Quando entrou na sala, o imã Muhammad Ashafa deparou com seu maior inimigo, o pastor pentecostal James Wuye. Sentiu seu sangue borbulhar. Ali estava o homem que havia liderado a milícia cristã que matara seu mentor espiritual, dois primos e vários amigos. Muhammad virou o rosto. Ao ver o imã, um arrepio de ódio trespassou o corpo do pastor. Sua mão esquerda apertou a direita. Ele sentiu a textura fria da prótese. O muçulmano que respirava o mesmo ar que ele na sala repentinamente abafada comandara a milícia islâmica que decepara seu braço com um golpe de machete. Líderes religiosos, eles haviam sido chamados à casa de governo de Kaduna, no centro da Nigéria, para discutir uma campanha de vacinação contra a poliomielite. Entre os dois, pairava o fantasma de milhares de cadáveres. Seu único desejo era matar. Um ao outro.

O que aconteceu nos minutos seguintes vem mudando o mundo – deles e de todos nós. Um jornalista que os conhecia puxou o pastor e tocou o ombro do imã. Apresentou-os. Juntou suas mãos e disse: “O futuro deste país está em suas mãos. Vocês podem construir ou destruir a Nigéria”. Os dois se encararam, sem armas pela primeira vez. “Até então, eu vinha rezando com fervor por uma oportunidade de vingar minha mão”, diz James. “Quando ele pôs a mão sobre a minha, meu coração estava disparado”, afirma Muhammad. “Como vou me relacionar com esse cara? E as minhas feridas? E a minha vingança? Quando o vi, senti todas as feridas que cicatrizavam dentro de mim abrindo novamente. Eu suava. Meu rosto sorria para ele, mas, por dentro, eu fervia.”

O pastor James Wuye e o imã Muhammad Ashafa contaram sua história com exclusividade a ÉPOCA durante sua primeira visita ao Brasil, no final de junho, para trazer sua experiência ao Antídoto – Seminário internacional de ações culturais em zonas de conflito , a convite do Itaú Cultural. Ao ouvi-los, a pergunta que ecoa sem parar é: como foi possível para aqueles dois homens superar tanto ódio, tanta dor, tanto sangue derramado?

James e Muhammad são a síntese do conflito religioso que divide a Nigéria, ocupada ao norte por muçulmanos, ao sul por cristãos. No centro do país, Kaduna, onde ambos vivem, é espremida por forças opostas. As disputas religiosas são a porção mais visível das diferenças acirradas pela colonização britânica. Em 1914, os ingleses juntaram sul e norte, num país inventado em gabinete. No lado de dentro das fronteiras riscadas no papel, uma população dividida em 250 etnias, com costumes e culturas diferentes, fervilhava em ódios mútuos. Com 150 milhões de habitantes separados em trincheiras de rancor, a Nigéria está sempre a um segundo de explodir.

Para o pastor e o imã, o ponto de virada começou em maio de 1995, naquele aperto de mãos na sede da administração de Kaduna. Mas somente um ano depois voltaram a se encontrar em público para o primeiro de muitos diálogos inter-religiosos. Durante o ano que passou, Muhammad deu o primeiro passo, ao procurar James na igreja. Ao vê-lo em território inimigo, o cristão concluiu que o muçulmano pretendia obter informações estratégicas para usar no próximo conflito. Vinha não para se aproximar, mas para espionar. Estava certo, como confessou Muhammad depois. Mas, aos poucos, algo começou a acontecer com eles. Dentro deles. Descobriram-se mais semelhantes que diferentes.

O muçulmano e o cristão perceberam que sua infância fora parecida, que vinham do mesmo gueto, tinham os mesmos medos e as mesmas aspirações, ambos olhavam para mulheres bonitas e gostavam de futebol. “Quando conversamos, descobrimos que ambos tivemos uma juventude bastante aventureira. Eu perguntava: ‘Você também fez isso? Oh, boy!’”, diz o pastor James. Trocam olhares cúmplices. Mas nenhum dos dois conta o que ambos tinham feito na tal “juventude aventureira”.

Entre o pastor e o imã, porém, havia muito a superar. Não era uma mera desavença escolar. Eles encarnavam gerações de um ódio tão antigo que quase se inscrevia no DNA de cada um. Pegaram em armas em nome dele. James perdera a mão. Muhammad, seu mentor, um sábio da vertente islâmica conhecida como sufismo. Com mais de 70 anos, ele foi atirado num poço. Depois, coberto de pedras.

Parecia impossível esquecer. Ajoelhado na primeira fileira da mesquita, o imã Muhammad perguntava a seu líder espiritual: “Como vou perdoar meu inimigo? Como isso seria possível?”. De repente, começou a chorar. “Despertei ali”, diz. Quando se encontraram para o primeiro diálogo público, seus seguidores carregavam adagas nos bolsos, prontos para lutar até a morte se fosse preciso.

Não foi. Deram ali um passo largo para uma das mais extraordinárias experiências de paz do mundo contemporâneo. Criaram o Interfaith Mediation Centre, um centro de mediação inter-religiosa que atua na solução de conflitos, especialmente na África. Ainda hoje, são ameaçados de morte por membros de suas respectivas religiões, que os consideram traidores. “Cristãos furiosos entram em meu escritório, batem na mesa, alguns precisam ser arrancados de lá. Recebo ameaças pelo telefone, intimidam minha mulher quando não estou em casa, minha situação é frágil”, diz o pastor James. “Treinei muitos jovens para matar muçulmanos. Muitos morreram, suas viúvas não olham a minha cara. Quando me aproximei do imã, começaram a dizer que estava perdendo a minha fé.”

Um líder muçulmano ameaçou emitir uma fatwa – espécie de sentença de condenação – contra Muhammad. Ele se defendeu dizendo que o profeta Maomé afirma no Alcorão que a melhor maneira de demonstrar a fé é promover a conciliação entre as pessoas. “Entre as pessoas, não apenas entre os muçulmanos”, diz o imã Muhammad. “Me deixaram seguir, mas minha vida está ameaçada. Já tive de mudar de casa, às vezes me sinto solitário. Mesmo aqueles que me apoiam, na hora de bancar publicamente, se retraem. Mas estou disposto a dar todos os segundos da minha vida por essa luta. E, mesmo que alguém resolva me assassinar, a minha não seria a primeira mente calada dessa forma.”

O imã e o pastor pleiteiam diante da Organização das Nações Unidas (ONU) a criação de um Dia do Perdão. “Temos defendido essa mensagem universal por todos os países por onde andamos. Queremos plantar essa semente dentro das Nações Unidas”, diz Muhammad. “Nesse dia, um vizinho olhará para seu vizinho, um país para outro país. Todos poderão olhar uns nos olhos dos outros e dizer: ‘Pedimos perdão, estamos buscando o perdão’. Essa seria a maior conquista que poderíamos atingir numa vida. Espero que consigamos.”

Pode soar como utopia, quase uma ingenuidade, num mundo em que milhares de pessoas massacram umas às outras a cada dia em nome de religiões, ideologias, recursos naturais, territórios, etnias. Mas como dizer isso a dois homens que, até anos atrás, pegavam em armas um contra o outro e agora se abraçam? Esse é o trunfo de Muhammad e James. Ao caminhar lado a lado, eles são a prova de que a paz é possível. “Não perdoar é o mesmo que tomar veneno e esperar que o inimigo morra”, diz Muhammad.

O imã Muhammad, de 49 anos, descende de dez gerações de líderes espirituais islâmicos. Pertence à etnia haussá, conhecida no Brasil por ter liderado a maioria das rebeliões de negros no período escravagista. Seu discurso, muito claro, é uma tessitura de imagens, que ele encadeia numa voz profunda e firme. O imã é um grande orador. “Gosto da metáfora do sangue. Se as pessoas de uma mesma família podem ter tipos sanguíneos diferentes – um A negativo, outro AB, um terceiro O positivo –, será que isso não é uma mensagem da essência da diversidade? Todos nós compreendemos facilmente que existem tipos diferentes de sangue, mas que todos são sangue humano. Por que, então, não podemos aceitar as pessoas dentro das diferenças de cor, endereço, cultura, religião? Por que as pessoas insistem em impor sua visão sobre as coisas? Por que sempre nós, nós, nós?”, diz ele. “Sonho que os governos, sejam laicos ou religiosos, enxerguem a diversidade como força, não como ameaça. Você tem de saber que é diferente, mas ser capaz de perceber sua interdependência com o todo. Quando você aceita que é parte do outro, que existe uma ponte, e não um muro entre você e o outro, então estamos construindo um mundo mais seguro para todos.”

O pastor James, de 49 anos, é filho de militar. Costumava ir à igreja para ver as moças bonitas, mas um dia sentiu o pastor olhando para ele. “Era como se Deus estivesse falando diretamente comigo”, diz. “Recebi o chamado.” Imagens de James pregando no púlpito de sua igreja mostram um pastor apaixonado, capaz de inflamar sua comunidade numa performance ruidosa. “Todos nós fomos programados para odiar. O que tentamos fazer hoje é reprogramar para a paz”, diz James. “Se você demoniza o outro, arranca a humanidade dele”, afirma Muhammad. “Fica impossível, então, olhar pelos olhos dele, perceber que ele tem as mesmas questões que você. É importante que as pessoas possam se colocar no lugar do outro. Nossa única saída é redescobrir a nós mesmos, redescobrir nossa humanidade.”

Basta estar na mesma sala que esses dois homens para perceber que eles experimentaram uma transcendência profunda. Mas seguem feitos da mesma matéria frágil que todos nós. Ao ver uma mulher bonita passar na sua frente, os quase santos pastor James Wuye e imã Muhammad Ashafa trocam olhares e esboçam um sorriso cúmplice em seus pacíficos semblantes. Em seguida, declaram com olhos de menino que estão muito felizes por conhecer o país de Pelé.

Matéria publicada na Revista Época , em 9 de julho de 2009.

Sonia Maria Ferreira da Rocha comenta*

Como nos surpreende ler uma notícia como essa! Já nos acostumamos à violência no nosso cotidiano, e saber que aqueles que foram envolvidos em tantas lutas em busca do poder trazem a esperança no nosso coração num futuro de PAZ e HARMONIA!

Esse exemplo deve ser seguido por cada um de nós, no nosso dia-a-dia. Devemos começar dentro da nossa família para que possamos colaborar, mesmo em pequena proporção, num mundo melhor. De grão em grão, vamos nos modificando e estendendo a todos que nos cercam.

Emmanuel, na revista Reformador , nos disse: “Não acreditemos em paz ambiental sem paz dentro de nós mesmos.”

E é assim, cada um fazendo a sua parte, que teremos um planeta tranquilo, voltado para as necessidades da humanidade. Com dificuldades, mas, acima de tudo, com o amor que Jesus veio implantar em cada um de nós.

Não condenar nossos semelhantes, e sim, suas ações. Perdoar e acolher os arrependidos, exercitar o perdão, respeitar as nossas dificuldades e as dos nossos irmãos é sempre uma demonstração de evolução espiritual.

Ainda ressaltando as mensagens de Emmanuel, no livro Ave Cristo , temos:

“Não atingiremos a paz sem desculparmos os erros alheios que, em outras circunstâncias, poderiam ser nossos…”

E assim, cultivando, primeiramente, dentro de nós, o amor, o perdão, o  respeito, teremos mais notícias como essa que servirão de exemplo a muitos povos que vivem, desrespeitosamente, lutando pelo poder a custas de sangue, de mutilações e ceifando vidas.

Na esperança de que essas atitudes sejam cada vez mais frequentes no nosso presente, transformando o passado em alegrias no futuro!

  • Sonia Maria Ferreira da Rocha reside em Angra dos Reis, RJ, estuda o Espiritismo há mais de 30 anos e é colaboradora regular do Espiritismo.net.