Carregando...

Vítima de um câncer no pâncreas, o professor Randy Pausch preferiu ensinar seus alunos e filhos a perseguirem seus sonhos de infância. Saiba como a medicina e a filosofia começam a trabalhar juntas para nos ajudar a lidar melhor com nosso destino inevitável. Pedro Vieira comenta.

  • Data :20/01/2009
  • Categoria :

Antes do adeus

O que você faria se tivesse seis meses de vida pela frente? Vítima de um câncer no pâncreas, o professor Randy Pausch preferiu ensinar seus alunos e filhos a perseguirem seus sonhos de infância. Conheça os segredos por trás de sua mensagem, vista por milhões de pessoas na internet e transformada no best seller “A Lição Final”, e saiba como a medicina e a filosofia começam a trabalhar juntas para nos ajudar a lidar melhor com nosso destino inevitável

Claudio Julio Tognolli

Em meados de 2006 ele sentiu uma dor corriqueira no alto do abdome. Semanas à frente, brota-lhe uma icterícia. Os médicos suspeitam de hepatite. Mas as vozes incontestáveis da tomografia computadorizada moem, em uníssono, aquele coro desagradável da verdade sob números: o professor Randy Pausch é portador de câncer pancreático - aquele que registra a maior taxa de mortalidade dentre todas as modalidades da doença, com metade das vítimas mortas em seis meses e 96% em cinco anos.

A detonação surda dessas verdades, antes de gerar aquela gelada sensação de vazio no fígado, fomentou-lhe um dissuasivo criativo: Randy Pausch virou um militante da vida, numa cálida aula de reiteração do ofício de viver.

Tudo isso virou um best seller de apenas 250 páginas, “A Lição Final”, lançado no Brasil pela Editora Agir. Num estilo confessionalmente cristalino, a obra coloca em perspectiva uma novíssima tendência da medicina mundial: dotar de discussões sumamente espirituais os pacientes em estado terminal. “Embora em geral eu esteja em excelente forma física, tenho dez tumores no fígado e me restam apenas alguns meses de vida. Sou pai de três crianças e sou casado com a mulher dos meus sonhos. Seria cômodo ficar me lamentando, mas isso não faria bem a eles nem a mim”, escreve o professor de ciência da computação, nerd ao osso e um dos maiores especialistas em realidade virtual do mundo.

A trajetória de Pausch, titular da universidade Carnegie Mellon (EUA), tornou-se notória quando subiu ao palco diante de um público de 400 pessoas para apresentar sua palestra de despedida. Cinqüenta dias depois, o registro em vídeo já havia gerado milhões de visitas no YouTube. “Uma coisa é certa: eu não queria que a última aula se concentrasse em meu câncer. Já remoera o suficiente sobre a saga de minha doença. Não me interessava discursar, por exemplo, sobre minhas percepções da doença, como eu a enfrentara ou quanto ela me abrira novas perspectivas. Talvez muitos esperassem uma palestra sobre a morte, mas eu trataria da vida”, escreve Pausch em “A Lição Final”.

O professor, na tentativa de se pôr a salvo do câncer, tentou de tudo. Submeteu-se à chamada “Operação Whipple”, procedimento batizado em homenagem ao médico que o inventou, na década de 1930. Esse tipo de cirurgia, até 1970, matava até 25% dos pacientes a ela submetidos. Por volta do ano 2000, esse risco caiu para 5%. Foi assim que Pausch teve removidos não apenas seus tumores, mas a vesícula, um terço do pâncreas, um terço do estômago e parte do intestino delgado. Depois, passou dois meses no Centro de Oncologia Dr. Anderson, em Houston, submetendo-se à quimioterapia e a doses cavalares diárias de radiação no abdome. Seu peso caiu de 83 para 62 quilos, e ele mal conseguia andar. As urgências pânicas geraram resultados maciços: ele passou a recuperar as forças e as tomografias não mais registravam sinais de câncer.

Mas coube a um oncologista, Carter Wolf, dirigir-se à mulher de Pausch, Jai, e decretar o idôneo testemunho do que estava por vir. “O que estamos tentando fazer é prorrogar o tempo restante de Randy para que ele possa ter a melhor qualidade de vida possível. Porque, na situação atual, a medicina não dispõe de recursos que possam mantê-lo vivo por um período de vida normal.” Em seguida, embora repelindo eventualidades improváveis, Dr. Wolf relatou a Jai o pedido de Pausch. “Ele falou em aplicar a quimioterapia paliativa [tratamento que não visa à cura, mas diminui os sintomas e possivelmente prorroga a vida por alguns meses] e buscar meios para mantê-lo bem enquanto o fim se aproxima.” E isso vem sendo feito desde então.

Numa imorredoura atmosfera de esperança, o livro de Pausch é, sem dúvida, um astrolábio poderoso para tratativas da morte. Ele simplesmente apaga esse vocábulo do dicionário e o troca pelo apego à vida. E, como bom cientista que é, o professor sistematizou alguns conselhos: o tempo deve ser administrado com precisão, assim como o dinheiro; é sempre possível mudar de plano, desde que se tenha outro; pergunte a si mesmo: está gastando tempo com as coisas erradas?; desenvolva um bom sistema de arquivos; repense o telefone; aprenda a delegar tarefas; tire férias, que “não serão reais se você ficar lendo e-mails ou procurando mensagens”.

E, não sem uma dose de ironia e conservadorismo, Pausch decreta: “Prefiro sempre as pessoas sóbrias às modernosas, porque o modernoso tem vida curta, e o sóbrio é duradouro. A sobriedade tem sido altamente subestimada. Ela vem da essência, ao passo que o modernoso tenta impressionar com base na superfície. Gente modernosa adora a paródia. Mas não existem paródias eternas, não é mesmo? Respeito mais as pessoas sóbrias, que realizam algo capaz de durar gerações e que os outros sentem necessidade de parodiar”.

A saga de Pausch é emblemática de toda uma tendência, digamos, espiritualizante, na qual muitos médicos e terapeutas têm tentado aninhar-se em nome do bem-estar do paciente. Esses cuidados têm ganhado a definição genérica de “paliativos”. O termo deriva do vocábulo latino pallium, que significa manto ou coberta. “Quando a causa não pode ser curada, os sintomas são ‘tapados’ ou ‘cobertos’ com tratamentos específicos, como analgésicos. Em inglês, o termo pode ser traduzido como aliviar, mitigar, suavizar. Refere-se ao care (cuidar) em vez de cure (curar), segundo os pioneiros ingleses”, diz Léo Pessini, professor no mestrado de bioética do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo. Ele é autor do texto “Vida e Morte, uma Questão de Dignidade”, parte do livro “A Arte de Morrer: Visões Plurais” (Editora Comenius), organizado por aquele que é tido como o maior representante, no Brasil, dos médicos que ajudam pacientes em seu caminho final: Franklin Santos, geriatra que comanda a cadeira de pós-graduação em emergências clínicas, na Faculdade de Medicina da USP.

Coordenador do programa Tanatologia, Curso de Educação para a Morte: uma Abordagem Plural e Interdisciplinar, Santos é categórico: “Até meados do século 20, o assunto ainda era um tabu no mundo acadêmico. Para a medicina e a filosofia ocidentais, a morte torna-se, muitas vezes, um ato solitário, mecânico e desumano. Como conseqüência, ela passa a ser não só temida como negada”, diz o especialista em tanatologia (do grego tanathos=morte e logos=estudo).

Despreparo existencial

Santos constata a realidade viva e constante da morte nos corredores dos hospitais, sobretudo para aqueles que trabalham na área da saúde - médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais -, notadamente nas salas de emergência e UTIs. “Observa-se aí um despreparo filosófico, psicológico, técnico e até mesmo existencial dos profissionais para lidar com a morte iminente, para falar sobre ela com os familiares dos assistidos e como discuti-la de maneira interdisciplinar”, afirma o médico.

A morte é uma experiência humana universal. Questões sobre o seu significado e o que acontece quando morremos são preocupações centrais em todas as culturas desde tempos imemoriais. Diante dela, o ser humano coloca-se frente a questões essenciais. Morrer bem, ter uma morte tranqüila, bem assistida, com amparo médico, social, familiar - tudo isso faz parte do processo educativo para a morte. Trata-se de educar a sociedade para cercar o ato de morrer dos melhores cuidados possíveis. Mas a educação para a morte vai além, porque toca em todos os aspectos interdisciplinares antes mencionados e deveria começar desde as primeiras fases da infância, constituindo um elemento da educação das novas gerações. Eis as bases do curso de tanatologia desenvolvido por Santos na USP.

Discípulo da norte-americana Elisabeth Kubler Ross, papisa da tanatologia médica, o geriatra divide as fases de gente que enfrenta o mesmo problema que Randy Pausch da seguinte forma: “Primeiro há a negação. Depois vem a raiva. Em seguida, aquilo que Ross chama de ‘barganha’ - como as promessas a Deus, digamos. E aí vem a depressão, que precisa ser vivenciada para que a pessoa interiorize seu problema. Por fim, alcança-se a aceitação”. Mas Santos identificou um sexto comportamento. “A esperança está sempre presente, em todas essas fases. Sabe por quê? Simplesmente porque ela é a última que morre”, diz.

O médico informa que, na Europa, a tendência é “que até médicos discutam coisas como pós-morte”. E relata casos de cegos que, após paradas cardíacas, puderam relatar com detalhes “como eram as roupas, as expressões e os rostos dos médicos que estavam tentando salvá-los”. Tudo isso, refere Santos, tem levado a medicina a ser multidisciplinar na tentativa de quebrar seus próprios tabus. “O paciente terminal deve ressignificar seus valores, estabelecer prioridades e equacionar as pendências afetivas”, diz. Aparentemente, Pausch tem alcançado esse rumo nos instantes derradeiros de seu vôo.

A tendência de humanizar a morte e dar ao paciente capacidades plurais de rever sua situação tem outros pontos de excelência no Brasil em iniciativas ligadas ao budismo, em especial no Centro de Dharma da Paz, em São Paulo, criado pela terapeuta Bel César. Formada em psicologia clínica e em musicoterapia no Instituto Orff, em Salzburgo, na Áustria, ela escreveu cinco livros sobre filosofia budista tibetana e é conhecida internacionalmente pelo trato de pacientes terminais. “Ninguém muda, jamais, porque está diante da morte. O que muda é o desejo de mudar, a pessoa amadurece no confronto com desafios. A chave está no desejo de mudar”, diz Bel.

De fato, o poder da terapia é tsunâmico quando aplicado com eficácia em pacientes terminais. Até mesmo um cientista lógico como Sr. Spock tem seu lado Capitão Kirk aflorado por ela. Analise as palavras de Randy Pausch: “A terapeuta que eu e Jai freqüentamos tem me ajudado bastante a descobrir estratégias para evitar meu descontrole durante os estressantes exames periódicos da doença. Passei boa parte da vida duvidando da terapia. Hoje, contra a parede, vejo que pode ser extremamente útil. Gostaria de visitar departamentos de oncologia explicando isso para pacientes que tentam resistir sozinhos.”

Entre a terapia e a espiritualidade

O engenheiro Claudio Pineda é o coordenador da equipe de voluntários que atuam no Centro de Dharma da Paz. “Prestamos serviços aos necessitados independentemente de sua classe social, credo, raça e religião. Nosso atendimento é complementar à medicina ocidental e está pautado na energia de amor e compaixão”, diz. Quanto aos outros credos, muitos têm posições firmes quanto à morte assistida.

Já a jornada do presbiteriano Randy Pausch tingiu-se de poucas matizes religiosas. “Fui criado por pais que acreditavam que a fé era algo muito pessoal. Não discuti religião em minha palestra de despedida, porque queria falar sobre princípios universais que se aplicam a todas as crenças”, escreve em “A Lição Final”. Mas a fé exerce seu papel: “Desde que recebi o diagnóstico, o pastor tem sido prestativo”.

Noves fora, Pausch tornou-se uma celebridade instantânea. Seu ídolo William Shatner (sim, o Capitão Kirk de “Jornada nas Estrelas”) enviou-lhe uma foto autografada com uma mensagem positiva. Al Gore discursou ao seu lado na Carnegie Mellon. E George W. Bush mandou-lhe uma carta com o selo presidencial. Isso sem falar nas milhares de mensagens que chegam até ele. Agora o mundo quer saber de sua morte.

Há quem chame de curiosidade mórbida. Outros preferem celebrar seu exemplo. Em entrevista publicada na revista “Time” em abril, respondendo às questões enviadas pelos leitores, Pausch não escondeu que os afagos midiáticos e de anônimos lhe fazem bem: “Tanta gente preocupada comigo protege meu espírito”.

Até o fechamento desta edição, em 18 de junho, o site no qual o professor atualiza as informações a seu respeito segue mesclando esperança e más notícias. “Tive um ótimo Dia dos Pais [nos EUA, comemorado em 15 de junho]. Quanto à minha saúde, estou me recuperando da última sessão de quimioterapia. Minha tomografia mais recente mostrou que o câncer segue se espalhando, mas a taxa de crescimento é mais lenta do que deveria ser, o que é bom.” A aula de Randy ainda não acabou.**

Matéria publicada na Revista Galileu , em julho de 2008.

Pedro Vieira comenta*

O ser humano é o único animal que tem consciência de sua própria morte. Essa consciência pode ser exógena, quando diz respeito à morte dos outros (e com ela lida-se mais facilmente, às vezes com um certo desconforto) ou endógena, quando trata da própria morte (e aí vemos busca da fuga em massa da idéia no Ocidente).

Muitas religiões tratam da morte muito mais de forma exógena, estudando a morte como se fosse uma entidade externa, controlada por outra igualmente exterior - Deus - que neutraliza a primeira. Dessa forma, buscam situar o ser humano fora do próprio problema do fim físico, dando-lhe aparente tranqüilidade. De uma forma ou de outra, está o homem sempre buscando fugir de seu destino.

Embora o Espiritismo busque mostrar - e provar - que a morte física é apenas parte de um processo contínuo de progresso, ainda há os espiritistas que a temem. Assim falou o Prof. Allan Kardec em O Céu e o Inferno: “Já não é somente a esperança que os sustenta, mas a certeza que os conforta”, referindo-se aos espíritas - donde podemos concluir que se algum espírita tem medo de morrer não é espírita no sentido completo conforme entendido pelo Codificador.

Vamos entendendo que encarar a morte com serenidade (de forma real, não apenas aparente) é uma atitude de Espíritos mais esclarecidos muito mais do que espíritas ou não-espíritas. O caso da reportagem mostra claramente isso: um ode à vida e não à morte. Embora haja uma certa confusão entre a busca da qualidade de vida feita pelo Prof. Randy Pausch e a eutanásia, são assuntos completamente distintos e um deles (o primeiro) o Espiritismo apóia e incentiva e o outro (o segundo) não recomenda, como uma forma de suicídio.

Na realidade, a Doutrina Espírita é, com o Prof. Pausch, um convite à vida. Ao contrário do que se diz, o Espiritismo não é para os mortos, mas para os vivos, para que, sabendo da morte física (e da vida espiritual), vivamos melhor, aproveitemos melhor a oportunidade de estarmos aqui, saibamos regular a importância do que nos cerca, com confiança e paz.

Agradeçamos ao Prof. Randy por transformar sua morte numa lição de vida.

  • Pedro Vieira é expositor e médium espírita. Colabora com o centenário Centro Espírita Cristófilos e com o Centro Espírita Léon Denis, no Rio de Janeiro, além de algumas outras casas.

** Randy Pausch morreu no dia 25 de julho de 2008 em sua casa em Chesapeake, Virginia.