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Flávio Gikovate, 65, prevê o fim da noção atual do amor, que considera uma ‘imaturidade não resolvida nos seres humanos’, e a vitória da individualidade. José Antonio M. Pereira comenta.

  • Data :22/09/2008
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Psiquiatra defende triunfo do individualismo nas relações afetivas

AMARÍLIS LAGE da Folha de S.Paulo

Atenção: a entrevista a seguir pode conter cenas fortes para românticos inveterados. Nela, o psiquiatra Flávio Gikovate, 65, prevê o fim da noção atual do amor, que considera uma “imaturidade não resolvida nos seres humanos”, e a vitória da individualidade.

Esse é o tema de seu novo livro, “Uma História de Amor… com Final Feliz”. Trata-se, na verdade, de dois finais. Um deles aponta para um novo molde das relações afetivas: “O romantismo do século 21 não será mais essa idéia de fusão de duas metades, e sim a aproximação de dois inteiros. Uma coisa mais parecida com a amizade, com mais afinidade intelectual do que física”. A outra opção de final feliz, diz, é a solidão - tão temida. Leia trechos da entrevista concedida por Gikovate à Folha.


Folha - A busca por uma fusão com o ser amado é constante em todos os períodos ou nossa idéia atual de amor decorre do movimento romântico dos séculos 18 e 19?

FLÁVIO GIKOVATE - A expressão do amor romântico é ruim, melhor definir amor de forma mais ampla. Desde que nascemos, temos a sensação de ser uma “metade”, talvez porque tenha sido assim na origem: passamos a existir fundidos a outro ser - a mãe. O nascer é uma ruptura que gera desamparo. Isso só se atenua com a reaproximação física da mãe.

Amor é o que sentimos por quem atenua nossa sensação de desamparo, e esse remédio varia conforme a época. No clã familiar, o aconchego vinha de muitas fontes. Quando os jovens saíram da área rural, foram afastados do clã. Então, homem e mulher criaram uma aliança intensa só entre eles. Esse amor romântico, que é possessivo, exigente, ciumento e complexo, andava mais ou menos bem até a 2ª Guerra Mundial. Aí se agravou um conflito que, para mim, sempre existiu: aos dois anos, a criança sai do colo da mãe para apreender o mundo. A partir daí, ela se divide entre o amor e seus interesses pessoais. Essa divisão não se resolve nunca.

Folha - Como o movimento romântico nos influencia atualmente?

GIKOVATE - Esse sonho de fusão continua presente. Mas duas coisas modificaram esse ideal: a independência da mulher, desequilibrando a idéia de fusão com uma liderança masculina, e o avanço tecnológico, que criou condições extraordinárias para o entretenimento individual. Hoje, há uma briga muito mais ostensiva entre amor e individualidade.

Folha - Apesar dessa independência, as mulheres ainda são mais associadas ao amor. Por quê?

GIKOVATE - Isso é uma lenda. Talvez elas tenham mais interesse em estabelecer relações estáveis por razões sexuais (não se divertem muito com o sexo sem compromisso) e pela idéia antiquada de que casar pode ser um bom negócio. No dia em que elas fizerem as contas e perceberem que 60% das vagas nas universidades são ocupadas por mulheres, vão repensar isso. Elas sonham com protetor e provedor e com independência. Nesse sentido, muitas são contraditórias.

Folha - Por que, na maioria dos divórcios, a iniciativa é feminina?

GIKOVATE - Porque os casamentos de má qualidade são mais desgastantes para a mulher. Em geral, esse casamento é entre opostos: um egoísta e outro generoso - e há tanto homens como mulheres dos dois tipos. Nas separações por iniciativa feminina, geralmente a mulher generosa ficou de saco cheio do marido folgado. A egoísta não se separa, pois se beneficia da situação. E os maridos generosos não se separam porque não são bons em ficar sozinhos e perdem mais com a separação, como os filhos e a casa.

Folha - O individualismo tem uma conotação pejorativa. Por que valorizá-lo?

GIKOVATE - Individualismo não é egoísmo. O egoísta gosta de turma, porque é aí que encontra um generoso para “mamar na teta”. O generoso também não é individualista porque tem a necessidade de dar. O individualismo resolve o dilema entre o egoísmo e a generosidade: é eu me entender como uma unidade e, se eu me sentir desamparado, resolver isso por mim mesmo, e não por meio do outro. Isso não significa não me relacionar, mas o outro deve ser escolhido por afinidade intelectual, como os amigos.

Folha - Se esse encontro não ocorre, é possível ser feliz sozinho?

GIKOVATE - Meu livro tem dois finais: um é ficar sozinho; outro, bem-acompanhado. Ambos representam a vitória da individualidade. Posso jogar tênis sozinho ou em dupla. O que não posso é jogar com um parceiro desleal, ciumento e que queira mandar em mim. Ninguém aceitará gente querendo mandar. Isso não é ser egoísta. O egoísmo se caracteriza pela intolerância à frustração. O independente resolve agüentar suas dores. Além disso, hoje, o mundo é mais favorável a pessoas sozinhas.

Folha - Como o sexo ocorre nesse amor que parece amizade?

GIKOVATE - Isso é um problema porque, em nossa cultura, o sexo vai melhor quando há briga. As pessoas gostam mais de transar com inimigos do que com amigos. Isso mostra como precisamos avançar no entendimento da questão sexual. Ainda é preciso inventar um erotismo que não seja comprometido com vulgaridade e violência. Para superar isso, é preciso ser criativo e entender que as leis da atração sexual não são as mesmas das relações afetivas de boa qualidade. Na hora do sexo, talvez seja necessário mudar o canal, no qual o outro tem de deixar de ser o parceiro sentimental para ser um outro. É assim que os casais que se amam de verdade descobrem estratégias para que o sexo flua.

Notícia publicada na Folha Online , em 10 de abril de 2008.

José Antonio M. Pereira comenta*

O título da matéria pode assustar num primeiro momento. Mas refletindo sobre os pontos de vista do entrevistado, vemos como é aderente ao princípio mais importante do Cristianismo: “Amarás o teu próximo, como a ti mesmo”.(1) Princípio talvez pouco refletido pelos que se dizem cristãos. Ora, se devemos amar ao outro como a nós mesmos, então precisamos nos amar em primeiro lugar. Seria isso egoísmo? Podemos deduzir que para o entrevistado isso seria individualismo, e não egoísmo. É simples e lógico: para saber o que é melhor para o outro, precisamos nos colocar no lugar dele. Não há como sermos fraternos sem exercer a própria individualidade.

A idéia possivelmente mal interpretada de alma-gêmea, de origem grega(2), trouxe graves conseqüências para a sociedade atual. Acreditamos desde cedo que para sermos felizes é preciso encontrar a alma que nos completa. Para isso, essa alma tem que se encaixar perfeitamente conosco. Surgem daí uma série de exigências e expectativas difíceis de se realizar. Assim, o amor-romântico é na prática o amor-egoístico, que destrói as relações em vez de aprofundá-las.

O amor proposto e praticado por Jesus é mais amplo. Não se aplica somente no trato com qualquer pessoa no nosso dia-a-dia, mas também nos relacionamentos entre casais. Amar ao outro como a si mesmo pressupõe aceitação das necessidades do outro, a não anulação de si mesmo e espírito de serviço: o contrário da dominação que costumamos querer exercer ao ser amado.

Referências:

  1. O Evangelho Segundo O Espiritismo, Cap XI, de Allan Kardec;

  2. Artigo “Como surgiu a idéia de Almas-Gêmeas?”, por José Carlos Leal - Correio Espírita: http://www.correioespirita.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=370&Itemid=47 .

  • José Antonio M. Pereira trabalhou principalmente na área de evangelização espírita juvenil e atualmente é médium da Casa de Emmanuel e integrante da Caravana Fraterna Irmã Scheilla, no Rio de Janeiro. Também é colaborador da equipe do Serviço de Perguntas e Respostas do Espiritismo.net.