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O criador do presépio, que buscava relembrar às pessoas o ambiente humilde que nos aproxima de Jesus, enxerga outros presépios, construídos por Deus no templo escondido do nosso coração.

  • Data :23/12/2007
  • Categoria :

Um presépio no coração

  • Sônia Zaghetto *

Para Alê, no Natal de 2007

Há quase 800 anos, o pobrezinho Francesco caminhava pela neve. A pele do rosto se retesava frente ao vento gelado, o frio atravessava a sandália fina e entrava pelos pés como lâmina gelada. Caminhava rapidamente, com as mãos cheias de esmolas coletadas durante a manhã. Ao seu lado, frei Leone e frei Masseo cantarolavam uma canção nova, que enchia a tarde de alegria: “per la sorella povertà, Ti ringrazziamo”…

O rigor do inverno havia matado muitos em Assis. O cólera, a fome e o frio castigavam os casebres dos filhinhos de Francesco. De repente, luz!

  • “Masseo, Leone, tenho aqui uma idéia!”.

Os dois nem ousaram parar de caminhar, mas voltaram para Francesco olhos curiosos:

  • “Conte-nos”.

  • “Quando Nosso Senhor nasceu, a cena foi impressionante. A pequena manjedoura, animais ao lado, panos grosseiros para aquecer a criança, a gente pobre da vizinhança oferecendo leite e pão para os pais famintos. Tudo humilde. Hoje vamos relembrar este instante à nossa gente, que aprendeu a conhecer Jesus vestido com brocados e ouro nos altares. Vamos aproximá-los de Jesus”.

Os dois sorriram. Em um segundo, corriam pela neve de dezembro, as esmolas escorregando, o vento insistindo em atravessar as vestes rotas. Crianças de Deus.

O presépio de Francesco tinha manjedoura e bichos de verdade. Irmã Clara costurou algumas roupas e o menino Jesus era o filho recém-nascido de um agricultor. Na noite do dia 24, todos estavam reunidos em torno da cena que relembrava o nascimento de Jesus. Ovelhas se encolhiam na palha, piscando olhos sonolentos, enquanto os pedaços de pão eram divididos. Inspirado, Francesco havia falado sobre Jesus. Repetira seus ensinamentos mais comoventes, falara de seu amor à Humanidade, contara de sua sabedoria e de seu desprendimento. Rostos sujos acompanhavam cada palavra com reverência. Nas telas da imaginação reviam o menininho de Belém.

Agora, uma canção compartilhada falava de amor. De um amor tão profundo e belo que havia deixado a perfeita felicidade para descer à Terra e cultivar no coração humano a flor da esperança.

A felicidade de Francesco desconhecia limites. Cantava com voz forte, embalado por sorrisos, quando Frei Leone se aproximou:

  • Francesco, esta reunião custou-nos muito. Todas as esmolas foram consumidas aqui e preocupo-me: amanhã tudo indica tempestade, mais frio. Não poderemos sair. Se não sairmos, não teremos esmolas, nem trabalho, nem comida…

Calou-se Leone. Francesco sorria docemente. Estendeu as mãos e tocou o rosto de Leone com as pontas dos dedos.

  • Sossegue o coração, Fratello. Para beber temos só água, mas ela nos foi dada por Deus e há não vinho humano que a supere. Leone, rende graças porque nada temos de material. O que temos, irmão, são duas riquezas raras: amor e liberdade.

  • Entendo apenas a parte do amor, Francesco… Fala-me que liberdade é essa, pois não somos livres sequer para comprar um pedaço de pão.

  • Lembra que hoje de manhã cantávamos em meio ao frio. Não temos medo de nada. O que nos podem tirar? As vestes pobres? As sandálias rotas? Nada temos, Leone. Somos livres. Como pássaros, como borboletas. Nosso Senhor ensinou a não acumular tesouros na Terra porque eles são como o visgo que aprisiona o inseto descuidado. Quem tem coisas, a elas se escraviza: tem medo do ladrão, do falso amigo, dos parentes interesseiros. Nós nada temos de material. Nossa riqueza é outra: são os tesouros divinos que multiplicamos no coração. O sol que nasce, Leone, é mais dourado que todo o ouro da Terra. Temos estrelas e lírios, alfazema e girassóis. Amanhã é outro dia e, assim como as aves do céu e as flores do campo, estaremos sob os cuidados de um Pai que é todo amor.

Leone curvou a cabeça e beijou as mãos de Francesco. Ao lado deles, Frei Masseo apreciava a cantoria animada. As tochas douravam os rostos. Pura alegria do povo que via de novo a cena em que Jesus nascia, pobrezinho, em meio à palha. Após um longo tempo em silêncio, dirigiu-se a Francesco:

  • Fratello, esta cena viva me alegra muito. Faz com que eu recorde Nosso Mestre, seu abandono e desapego. Mas tu, Francesco, pareces ver além. O que vês, paizinho?

  • Vejo o nosso presépio vivo, Masseo. Enxergo as roupas remendadas, o pão de má qualidade, a magreza dos nossos amigos. Mas também vejo a alegria que pulsa nesses corações e que escapa pelos lábios e pelos olhos. Nota, fratello, como brilham estes olhos. Dentro deles existem estrelas. Sabes como elas nascem? Vêm da alma asserenada, da consciência pacificada e do amor divino.

Ah Masseo, eu vejo outros presépios. Estão invisíveis à maioria dos olhos humanos. Foram construídos pela mão divina em um templo escondido, numa igreja antiga e desconhecida.

  • Pai Francesco, mostra-me a essa igreja. Quero ver também.

  • Já a conheces, Masseo. Esse templo é teu coração. As pedras sólidas de tua fé são as paredes, a rica decoração são teus gestos de amor a Deus e às suas criaturas. Ergueste em ti este templo inigualável. É a casa de nosso Pai celeste. E nela constróis um presépio vivo diariamente. Aí, dentro do teu peito, Jesus nasce todos os dias. Teu amor o envolve em sedas de caridade. Enfeitas-lhe o berço com jóias de sorrisos. As rendas delicadas são tecidas de tua compaixão, de teu perdão. Tuas boas palavras são a música divina que o faz adormecer. As mãos que estendes à miséria e à orfandade são perfumes nesse berço adorável. Tu, Masseo, és sal da terra e luz do mundo quando amas.

Masseo sorriu, os cílios ainda estavam úmidos muitas horas depois.

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O tempo avançou. Muitos anos depois daquela noite, a cidade estava em silêncio. Os freis oravam e o santinho respirava, leve. Seu peito magro subia e descia em movimentos quase imperceptíveis. Pai Francesco morria. Pensava nos pobrezinhos que ficavam, nos irmãos que choravam. Recordava a vida sofrida, os sacrifícios, as pedras, o serviço sem fim. Lembrou-se de Jesus, que morrera sozinho. E seus olhos cegos se tomaram de lágrimas de compaixão. Puro amor.

Aos poucos, observou que a dor se fora. Suave claridade tomava conta de tudo. Desapareceram os soluços dos fratellos, os cochichos abafados e até as orações. Um pipilar de passarinhos chegou aos seus ouvidos. A luz voltou a seus olhos e ele viu uma cotovia molhada de chuva, as asinhas encharcadas. Estendeu as mãos e – que surpresa! – já não havia cansaço. Levantou-se algo admirado e foi socorrer a avezinha que tremia de frio. Amava as cotovias cor da terra. O passarinho saiu pela porta e Francesco foi atrás.

  • Vem, irmãzinha. Deixa-me secar tuas asas que são da cor de minhas roupas. Deixa que eu te aqueça um pouquinho junto ao meu coração.

O passarinho voou ligeiro e pousou adiante. Francisco o seguiu, agachou-se para pegá-lo com aquelas mãos que sabiam tratar de avezinhas mansas e rebeldes. Mas ao aproximar-se, notou que outras mãos acariciavam a pequena cotovia.

Um sorriso e um olhar inesquecíveis, braços abertos.

  • Meu Senhor! Finalmente…

O pobrezinho sorriu, os passarinhos todos cantaram e os braços de Jesus recolheram Francesco.

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A equipe do portal Espiritismo.net deseja a todos um Natal recheado de gestos de amor, antecipando um 2008 onde continuaremos a trabalhar, nos mais singelos detalhes, pela construção de um mundo melhor, para nós e para toda a Humanidade.