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Naquele sábado, o sol brilhava sobre as cores e perfumes da primavera francesa. Um homem caminhava pelas ruas do centro da cidade. O professor Rivail preparava-se para receber os primeiros exemplares de O Livro dos Espíritos.

  • Data :10 Apr, 2007
  • Categoria :

Há 150 anos: o Espiritismo

Paris, 18 de abril de 1857

Sônia Zaghetto

Naquele sábado, o sol brilhava sobre as cores e perfumes da primavera francesa. Um homem caminhava pelas ruas do centro da cidade. Seu caráter sereno não lhe permitia expansões de euforia, mas quem o conhecesse bem notaria uma certa ansiedade no caminhar mais rápido e no olhar translúcido que mal notava a brisa suave que agitava as flores rosadas e vermelhas das janelas.

À tarde, o professor Hippolyte Leon Denizart Rivail havia deixado sua casa, na rue des Martyrs, e chegara, afinal, ao Palais Royal. Nos jardins, casais passeavam e crianças corriam, entre brincadeiras. Passou rapidamente pelas colunas do antigo palácio e entrou na Galerie D´Orleans. À porta, o funcionário abriu um largo sorriso: “Professor Rivail, seu livro chegou hoje pela manhã. Madame o aguarda”.

Mal pôde dominar a emoção quando Madame Dentu, Mélanie, estendeu-lhe o exemplar de “O Livro dos Espíritos”. Não era uma edição de luxo. Tinha 180 páginas e impressão de qualidade razoável. Cada livro da tiragem de 1.200 exemplares custaria 3 francos. Passou os dedos levemente sobre a obra e pensou que aquelas 500 perguntas iniciais eram o ponto de partida de algo profundamente novo. Na capa cor de cinza, o título que estava destinado a seduzir milhões de almas: “O Livro dos Espíritos”. Conversou um pouco com a dona da editora e partiu, levando nas mãos os primeiros exemplares do livro pelo qual sua alma aguardara num misto de ansiedade e alegria.

À saída, contemplou os parisienses nos cafés, tagarelando como sempre, e sorriu de leve. Aquela multidão de seres ainda não sabia, mas materializara-se há pouco, ali mesmo, no Palais Royal que abrigara a realeza de França, o início de uma época de regeneração moral que encheria com um novo ar os pulmões intoxicados da humanidade. Ao cruzar os pórticos do antigo palácio, já não era mais Rivail. Tornara-se Allan Kardec. Aquele pseudônimo grafado no livro representava também o início de sua nova vida.

Caminhou devagar relembrando como tudo começara. Naqueles idos de 1854, um novo horizonte se apresentara para ele, professor respeitado e autor pedagógico de renome. Havia se visto diante de um fenômeno que considerava contrário, na aparência, às leis da Natureza: as mesas girantes. “Nada tinha ainda visto nem observado; as experiências feitas em presença de pessoas honradas e dignas de fé me firmavam na possibilidade do efeito puramente material; mas a idéia, de uma mesa falante, não me entrava ainda no cérebro”, rememorou.

No começo de 1855 encontrou o Sr. Carlotti. Conheciam-se há 25 anos e Carlotti falou com entusiasmo sobre as mesas durante mais de uma hora. Rivail desconfiava da exaltação desse amigo que nascera na Córsega, tinha nobres sentimentos e uma natureza ardente. Sua fala sobre a intervenção dos Espíritos tinha tantos detalhes surpreendentes que, em vez de convencerem o professor, aumentaram-lhe as dúvidas. Rivail sorriu ao lembrar a frase profética do amigo (“Você um dia será dos nossos”) e o ceticismo ponderado de sua resposta: “Não digo que não; veremos isso mais tarde”.

Menos de cinco meses depois, em maio, esteve na casa da sonâmbula Sra. Roger, com o Sr. Fortier, que a magnetizava. Lá encontrou o Sr. Pâtier e a Sra. Plainemaison, que lhe falaram dos fenômenos no mesmo sentido que o Sr. Carlotti. Mas o tom era diferente: o Sr. Pâtier era funcionário público, de certa idade, homem muito instruído, de caráter grave, frio e calmo; sua linguagem pausada, isenta de todo entusiasmo, produziram viva impressão no professor Rivail. Quando Pâtier o convidou para assistir às experiências que se realizavam em casa da Sra. Plainemaison, na rua Grange-Batelière n° 18, aceitou. Foi aí, pela primeira vez, que testemunhou o fenômeno das mesas girantes, que saltavam e corriam, e em condições tais que a dúvida não era possível. Viu também alguns ensaios imperfeitos de escrita mediúnica em uma ardósia, com o auxílio de uma cesta.

Rivail entreviu que havia algo sério naqueles fenômenos, tratados até então com uma certa futilidade e muitas vezes para divertimento. Intuiu ali como que a revelação de uma nova lei. E prometeu a si mesmo aprofundar o estudo sobre aqueles fatos. A ocasião surgiu e ele pôde observar mais atentamente os fenômenos nas sessões que ocorriam na casa da família Baudin, na rua Rochechouart. Os médiuns eram as duas senhoritas Baudin, Caroline e Julie, que escreviam numa ardósia com o auxílio de uma cesta. Esse processo, que exige a participação de duas pessoas, exclui toda possibilidade de intromissão das idéias do médium. Eram geralmente frívolos os assuntos tratados. Os assistentes se ocupavam, principalmente, de coisas relativas à vida material, ao futuro. A curiosidade e o divertimento eram a motivação. Mas a presença do Professor Rivail começou a imprimir seriedade às reuniões e foi nelas que ele fez os seus primeiros estudos sérios em Espiritismo.

Caminhando pela ponte Saint-Michel, o professor rememorou os cuidados que teve ao elaborar a obra. “Apliquei a essa nova ciência o método da experimentação; nunca formulei teorias preconcebidas; observava atentamente, comparava, deduzia as conseqüências; dos efeitos procurava remontar às causas pela dedução, pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo como válida uma explicação, senão quando ela podia resolver todas as dificuldades da questão”.

Rivail compreendeu, desde o princípio, a gravidade da exploração que ia começar. Entreviu naqueles fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro, a solução que ele havia procurado toda a sua vida: “Era uma completa revolução nas idéias e nas crenças. Era preciso, portanto, agir com circunspeção e não levianamente, ser positivista e não idealista, para me não deixar arrastar pelas ilusões”.

Um dos primeiros resultados das suas observações foi que os Espíritos eram as almas dos homens e, por isso, não tinham nem a integral sabedoria, nem a soberana ciência. Deduziu que o saber dos desencarnados era limitado ao grau do seu adiantamento, e que a sua opinião somente tinha o valor de uma opinião pessoal. “Esta verdade, reconhecida desde o começo, evitou-me o grave problema de crer na infalibilidade dos Espíritos e preservou-me de formular teorias prematuras sobre a opinião de um só ou de alguns Espíritos”, rememorou.

A comunicação com os Espíritos, dissessem eles o que dissessem, provava a existência do mundo invisível. Isso era um ponto essencial para Rivail e um imenso campo aberto às explorações do professor. Ali ele via a chave de inúmeros fenômenos até então inexplicados. Por outro lado, aquelas comunicações permitiam que se conhecesse melhor o mundo espiritual. “Vi logo que cada Espírito, em virtude da sua posição pessoal e de seus conhecimentos, me desvendava um aspecto daquele mundo, do mesmo modo que se chega a conhecer o estado de um país, interrogando seus habitantes de todas as classes, não podendo um só, individualmente, informar-nos de tudo. Compete ao observador formar o conjunto, por meio dos documentos colhidos de diferentes lados, colecionados, coordenados e comparados uns com outros. Conduzi-me, pois, com os Espíritos, como fizera com homens. Para mim, eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados”, relembrou.

As sessões em casa do Sr. Baudin não tinham um objetivo determinado. Rivail tentou lá obter a resolução dos problemas que lhe interessavam, do ponto de vista da Filosofia, da Psicologia e da natureza do mundo invisível. Levava para cada sessão uma série de questões preparadas e metodicamente dispostas. Eram sempre respondidas com precisão, profundeza e lógica. A partir de então, as sessões assumiram caráter muito diverso. Entre os assistentes contavam-se pessoas sérias, que tomaram por elas vivo interesse. As perguntas fúteis haviam perdido, para a maioria, todo atrativo. A princípio, Rivail queria apenas se instruir. Mais tarde, quando viu que aquilo constituía um todo e ganhava as proporções de uma doutrina, teve a idéia de publicar os ensinos recebidos, para instrução geral.

Foram aquelas mesmas questões que, desenvolvidas e completadas, constituíram a base de O Livro dos Espíritos. Ele, porém, fez questão de submetê-lo ao exame de outros Espíritos, com o auxílio de diferentes médiuns. Fez do livro objeto de estudo nas reuniões do Sr. Roustan, em 1856, na rua Tiquetone. Eram reuniões sérias e que se realizavam com ordem. As comunicações eram transmitidas por intermédio da Srta. Ruth Japhet, com auxílio de uma cesta de bico. Depois de algumas sessões, os Espíritos disseram que preferiam revisar o livro em particular e com calma, evitando, ainda, as indiscrições e comentários prematuros do público. Marcaram certos dias nos quais Rivail trabalhou com a Srta. Japhet. Rivail não se contentou, entretanto, com essa verificação. Tendo conhecido outros médiuns, sempre que se apresentava ocasião ele aproveitava para propor algumas das questões que lhe pareciam mais espinhosas. Foi assim que mais de dez médiuns colaboraram nesse trabalho. Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que ele elaborou a primeira edição de O Livro dos Espíritos.

O Sena corria, calmo, em seu leito. O professor olhou para as águas e, depois, para as margens emolduradas por árvores carregadas de folhas verdes. Ergueu os olhos para o céu que se tingia de laranja e cor-de-rosa. A natureza sempre o deixava reverente e emocionado. Naquele entardecer, pensou nas 1.200 sementes luminosas que começavam a encher as livrarias de Paris, endereçou a Deus um pensamento de gratidão e formulou mentalmente uma frase que traduzia à perfeição a Doutrina que nascia: “O Espiritismo anda no ar; difunde-se pela força mesma das coisas, porque torna felizes os que o professam”.