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  • 'Fique amigo dos pais': polícia revela mensagens trocadas por abusadores de crianças

Segundo o delegado Valdemar Latance Neto, a divulgação não atrapalha futuras investigações, pois os adeptos à pornografia infantil deixaram de fazer compartilhamentos via email - as técnicas agora são outras. Sergio Rodrigues comenta.

  • Data :27/09/2018
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Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

“Fique amigo dos pais.” A dica foi transmitida por alguém experiente, via email, a um homem que planejava abusar de crianças. As oportunidades surgiriam ao “interessado” quando ganhasse a simpatia e a confiança dos adultos. Era assim que ele cometia abusos, oferecendo em troca presentes, sorvetes e passeios no shopping para as vítimas, que ficavam sob seus cuidados com o consentimento dos pais. Culpados por aceitarem os agrados e por conhecerem o agressor, os menores dificilmente o denunciariam - estas vítimas, posteriormente identificadas, eram cinco garotos com idades entre sete e 13 anos.

A conversa está entre as inúmeras mensagens de email investigadas durante a operação Moikano, deflagrada em meados de 2015. Foram 13 prisões em flagrante. Entre elas, a do homem responsável por fornecer a dica acima e a de outro que abusava dos próprios filhos. Depois, como resultado da mesma investigação, foi detido um palhaço animador de festas infantis. Não dá para chamá-los de pedófilos, pois este é um termo médico que exige avaliação de especialistas. Porém é possível dizer que são todos criminosos, porque as ações sexuais cometidas contra crianças estão previstas em lei.

“O perfil de alguns detidos desconstrói dois mitos equivocados sobre o compartilhamento desse conteúdo. Primeiro de que os autores desse tipo de crime não representam qualquer risco à sociedade, por serem meros coitados, desajustados, que passam a vida em frente ao computador. O segundo diz respeito à falsa ideia de que se trata apenas de ‘arquivos digitais’, numa visão desfocada do que eles realmente retratam: estupros de crianças”, diz o delegado Valdemar Latance Neto, que coordenou a operação Moikano quando respondia pela unidade de inteligência da delegacia da Polícia Federal em Sorocaba (SP).

Concluído o caso, foi Latance quem forneceu as informações à reportagem via entrevista e acesso a um estudo de caso. Segundo o delegado, a divulgação não atrapalha futuras investigações, pois os adeptos à pornografia infantil deixaram de fazer compartilhamentos via email - as técnicas agora são outras.

Caixas de email sem sigilo

A investigação aqui tratada teve origem em outra operação, chamada Glasnost, com o objetivo de identificar os suspeitos de compartilhar pornografia infantil via um site russo. Um dos envolvidos morava em Itu (SP) e, por isso, a busca domiciliar e sua prisão em flagrante, em 2013, ficaram sob responsabilidade da polícia de Sorocaba. O nome operação Moikano, iniciada em abril de 2014, surgiu porque o homem em questão usava o email ‘‘moikano’’ (os endereços serão divulgados incompletos) nas conversas com outros interessados nesse tipo de arquivo.

Para aprofundar a investigação, pediu-se à 1ª Vara Federal de Sorocaba o afastamento do sigilo de dados dessa conta: o conteúdo das mensagens, além dos endereços eletrônicos com os quais “moikano” se comunicava. Fez-se em seguida outro pedido semelhante a mais empresas de tecnologia, dessa vez referente a 176 emails que se correspondiam com ele. Na época das prisões, em comunicado à imprensa, o juiz Luís Antônio Zanluca classificou essa etapa da investigação como um efeito cascata.

“Loirinha, linda, de nove anos”

Durante a análise dos muitos gigabytes coletados, os investigadores se depararam com uma mensagem que exigia ação urgente. Nela, um homem contava que havia conseguido “passar a mão” no corpo de uma menina “loirinha, linda, de nove anos”, que morava perto dele. Ele se queixava por não ter conseguido levá-la para casa, onde poderia estuprá-la, e pedia dicas ao interlocutor. Em troca, prometia enviar fotos das cenas de sexo com a criança, caso conseguisse colocar seu plano em prática.

Os policiais de Sorocaba requisitaram com urgência, junto à operadora de acesso à internet, os dados daquele usuário, assim como data e horário da mensagem. Descobriram que era recente e que a conexão havia sido feita em Joinville (SC). Pediram então que a delegacia da Polícia Federal da cidade identificasse o suspeito e a vítima em potencial. O caso foi desmembrado da operação Moikano e deu origem a um novo inquérito policial.

A garota realmente existia, não se tratava de fruto da imaginação do suspeito: suas características correspondiam às descritas e ela passava a tarde aos cuidados do seu irmão adolescente enquanto a mãe trabalhava fora. “Era uma criança em situação muito vulnerável”, afirma Latance. Já o suspeito foi identificado no Facebook: ao fazer uma busca com “maneca”, endereço usado por ele para compartilhar cenas de estupro infantil, chegou-se a esse perfil na rede social.

Ainda havia dúvidas, no entanto, pois as conexões não eram na casa do suspeito, mas sim na vizinha, onde um policial morava com as duas filhas. Por isso foi feito um pedido de busca domiciliar nas duas residências. Na do suspeito, encontraram o conteúdo de pornografia infantil que levou à sua detenção. Na do policial, descobriram que ele havia apenas permitido a instalação de um cabo de internet a pedido do vizinho - que disse estar recém-separado e sem conexão disponível em casa. O UOL não conseguiu acesso ao processo, para saber qual a condenação e o tempo da pena do homem detido.

“Em 99% dos casos a família não sabe de nada”

Latance chama atenção para os cuidados necessários durante a busca e apreensão, considerando o peso dessa acusação. “Um inocente pode ter a honra manchada, em seu círculo social, com uma injusta e permanente atribuição do rótulo de pedófilo.” Mesmo quando a suspeita se confirma, há outras preocupações: “Estamos revelando o maior segredo da vida dele. Sua reação representa um risco, inclusive de suicídio. Em 99% dos casos a família não sabe de nada, até porque não há um perfil específico. Pode ser qualquer tipo de pessoa”, continua. Via de regra, os envolvidos nesses crimes são homens.

Entre outros desafios estão as informações “velhas” - mensagens trocadas anos antes -, que impossibilitam a identificação dos usuários. E, mesmo se houver alguma direção nos casos antigos, são grandes as chances de chegar até uma casa e o suspeito ter mudado.

Isso tudo faz com que os números se afunilem: as 176 contas usadas por suspeitos culminaram em 50 mandados de busca domiciliar e 31 de prisão preventiva, que acabaram levando a 13 prisões em flagrante pelo país quando a operação Moikano foi deflagrada.

Palhaço que animava festas infantis abusava de crianças

A leitura de cada mensagem, mesmo que de forma rápida, mostrava-se extremamente trabalhosa, mas era necessária. Isso permitiu, segundo Latance, “a identificação segura de boa parte dos suspeitos, a produção da prova antes mesmo da realização de busca domiciliar e, por consequência, a diminuição do risco de equívocos no momento mais invasivo das buscas nas residências suspeitas”.

Foi assim que se chegou ao palhaço Ricocó, que trabalhava em Salvador como animador de festas infantis. Com o email “Show Ricocó”, utilizado para se comunicar com “moikano” e outros interessados em pornografia infantil, ele também divulgava seu trabalho de palhaço e enviava fotos pessoais a amigos e familiares. Em uma conversa com outro suspeito, escreveu informações que levaram os investigadores até sua página no Facebook, cheia de fotos pessoais, nome completo, número de telefone para contratação de shows e diversas imagens dele rodeado por crianças.

A polícia solicitou os dados cadastrais do titular do telefone de contato e obteve os mesmos dados do suspeito. Ele não foi detido na operação Moikano, pois havia acabado de mudar de casa. Ficou foragido, mas acabou sendo preso. Em julho de 2016, foi condenado a nove anos e dez meses de prisão pelo armazenamento e compartilhamento desses arquivos.

Pais se disseram surpresos: era amigo das famílias

Entre as mensagens recebidas pelo palhaço Ricocó estava uma de “Léo Santo André”, com imagens de um garoto de aparentemente oito anos sendo abusado –foi deste mesmo email que partiu a dica relatada no início deste texto.

“As fotos chamaram atenção porque parecia conteúdo novo”, afirmou Latance. Além de ver sempre esse tipo de material, sabendo quando algo já circula pela rede, os investigadores trabalham com softwares de análise (alguns fazem varreduras em um universo enorme de arquivos, para alertar quais podem conter abuso sexual infantil). “Ao avaliar os metadados das fotos, descobrimos que haviam sido feitas em 10 de janeiro de 2015, uma semana antes do envio, com um telefone da marca Samsung”, continua.

Os arquivos, no entanto, não identificavam nenhuma coordenada geográfica. Ao solicitar informações de conexão relacionadas à conta de email, os investigadores chegaram a um suspeito que reunia todas as características expostas no seu endereço de email. Durante a busca em sua casa, ele foi preso em flagrante por posse de arquivos de abuso sexual infantil. Seu celular Samsung foi apreendido e, nele, encontrados mais arquivos em que as vítimas eram garotos com idades entre sete e 13 anos.

Os jovens foram identificados, ouvidos na Superintendência da Polícia Federal de São Paulo com o auxílio de uma psicóloga, e os pais se disseram surpresos. Isso porque o suspeito morava no mesmo bairro das vítimas e era considerado um amigo das famílias.

Ele foi condenado em dezembro de 2015, mas o caso corre em segredo de Justiça e o UOL não teve acesso à pena, cumprida em um presídio de Guarulhos (SP). Segundo Latance, a condenação soma 74 anos, seis meses e cinco dias de reclusão.

Notícia publicada no BOL Notícias , em 27 de julho de 2018.

Sergio Rodrigues* comenta

Esta é uma situação recorrente, que vem sendo noticiada com frequência. A Internet é um instrumento colocado à disposição da humanidade, certamente com bons propósitos. No entanto, é um instrumento neutro, nem bom nem mau por si mesmo. O que o qualifica é o seu uso, ou seja, a intenção e os objetivos dos que dele se servem.

O assédio e o abuso de crianças que acontecem se utilizando desse meio como intermediário, como dissemos, vem acontecendo de modo recorrente. Crianças, ainda sem maturidade para perceber as reais intenções de muitas mensagens que recebem, ficam à mercê de pessoas sem escrúpulo, verdadeiros psicopatas que adotam essas práticas para satisfazerem seus apetites selvagens.

É comum vermos famílias em que as crianças permanecem diante de um computador ou outro aparelho similar durante horas seguidas. As causas de assim acontecer são variáveis, desde a proibição dos pais de que ganhem a rua para alguma outra atividade, motivados pela violência generalizada que atinge o País, até o simples desejo de satisfazerem a curiosidade, tão comum nesta fase da vida. Sendo difícil evitar que aconteça, cabe aos pais o exercício de uma maior vigilância e controle quanto ao uso da Internet que está sendo feito por seus filhos.

Entretanto, a matéria em questão noticia que em 99% dos casos a família nada percebeu. É claro que não se pode atribuir aos pais a principal parcela de culpa, quando ocorre a criminosa ação por parte dessas pessoas. Mas não há como negar que aos pais cabe a educação moral e intelectual dos filhos, o que envolve a orientação sobre o que devem ou não buscar na Internet. A vida moderna, com tantas dificuldades que obrigam a atribuições diversas e nem sempre fáceis, por vezes, não deixa aos pais um tempo necessário para essa necessária vigilância sobre a ação dos filhos. A vigilância se torna ainda mais imprescindível quando se constata que a investigação apurou casos em que o praticante do ato delituoso era amigo da família.

É fundamental que os pais conversem muito com os filhos sobre assuntos dessa natureza. Infelizmente, contudo, há ainda uma onda conservadora na sociedade que atua para impedir que determinados costumes sejam objeto de educação infantil, principalmente nas escolas. O desconhecimento dessas questões é um poderoso aliado dos que têm tendência a essas práticas.

  • Sergio Rodrigues é espírita e colaborador do Espiritismo.Net.