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  • A mulher que fugiu da Coreia do Norte para 'morrer de fome' na rica Coreia do Sul

As mortes horríveis de Han e seu filho provocaram indignação, raiva e muitos questionamentos, não só na vendedora, mas em muitas pessoas com quem falamos, que também estão se fazendo reflexões que começam com ‘se ao menos’. Se ao menos as autoridades tivessem notado sua situação. Se ao menos o governo tivesse feito mais para ajudar os desertores. Jorge Hessen comenta.

  • Data :27/04/2020
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Laura Bicker

Da BBC News em Seoul

Han Sung-ok, de 42 anos, parecia determinada a escolher entre quase todas as alfaces disponíveis na barraca de legumes e verduras no subúrbio de Seul, capital da Coreia do Sul. Ela examinou cada uma enquanto seu filho de 6 anos subia em uma cerca próxima.

A vendedora parecia aborrecida. Han era muito exigente e não havia comprado mais de um ou dois itens ali, sempre pelo menor preço possível. Naquela ocasião, foi um pé de alface por 500 wons (cerca de R$ 1,70).

Pronunciando apenas algumas palavras, Han entregou o dinheiro e saiu com o filho. Algumas semanas depois, ambos estavam mortos.

Tendo fugido da escassez de alimentos em sua terra natal, a Coreia do Norte, e sonhando com uma nova vida, acredita-se que Han e seu filho morreram de fome em uma das cidades mais ricas da Ásia.

Seus corpos só foram descobertos após dois meses, quando uma pessoa chegou para fazer a leitura do hidrômetro de onde ela morava e notou um mau cheiro.

Mãe e filho foram encontrados caídos no chão. A única comida em seu pequeno apartamento alugado era um saco de pimenta vermelha em flocos.

‘Se ela tivesse pedido…’

Uma das últimas pessoas a vê-la viva foi a vendedora da barraca de rua perto de seu apartamento. Ela viu Han mais ou menos na mesma época em que a polícia diz que ela sacou os últimos 3.858 wons (R$ 13) de sua conta bancária.

“Pensando bem, isso me dá calafrios. No começo, eu a odiei por ser exigente, mas agora penso sobre isso e sinto muito por ela. Se ao menos ela tivesse pedido, teria dado um pouco de alface”, diz a vendedora.

As mortes horríveis de Han e seu filho provocaram indignação, raiva e muitos questionamentos, não só na vendedora, mas em muitas pessoas com quem falamos, que também estão se fazendo reflexões que começam com “se ao menos”. Se ao menos as autoridades tivessem notado sua situação. Se ao menos o governo tivesse feito mais para ajudar os desertores. Se ao menos ela tivesse pedido ajuda.

A jornada de Han para a liberdade como uma desertora norte-coreana deveria tê-la tornado notável, mas, em uma cidade de 10 milhões de habitantes, ela parece ter sido invisível.

Muito poucas pessoas a conheciam. Aqueles que a conheciam dizem que ela falava muito pouco e andava por aí quase se disfarçando com um chapéu e evitando qualquer contato visual.

Mas Seul a conhece agora. Sua fotografia foi colocada entre flores e presentes em um santuário improvisado no centro da cidade.

“Quando soube da notícia, achei absurdo demais para acreditar. Simplesmente não faz sentido que, depois de passar por todas as dificuldades e desafios para vir para o sul, ela tenha morrido de fome. Isso parte meu coração. Isso não pode acontecer na Coreia do Sul. Por que ninguém soube sobre sua situação até que morressem?”, diz um desertor, de luto, diante do santuário.

Um começo promissor

Escapar da Coreia do Norte parece ser quase impossível. Mais pessoas tentaram escalar o Monte Everest neste ano do que deixar o país empobrecido.

Mesmo se ultrapassarem os soldados que vigiam a fronteira, os desertores enfrentam uma jornada de milhares de quilômetros pela China. Seu objetivo é chegar a uma embaixada sul-coreana em um terceiro país, geralmente Tailândia, Camboja ou Vietnã.

Mas atravessar a China é um risco. Se forem pegos, são enviados de volta para a Coreia do Norte e podem enfrentar uma vida inteira de trabalhos forçados em um de seus notórios campos de prisioneiros.

Desertoras que entregam dinheiro a atravessadores à espera de ajuda muitas vezes se vêem aprisionadas e vendidas como noivas ou escravas sexuais.

No caso de Han, é difícil verificar como e quando ela saiu da Coreia do Norte. Dois desertores afirmam ter falado com ela e acreditam que ela foi vendida a um chinês como noiva e teve um filho com ele. Não conseguimos confirmar essa versão.

Mas ela chegou a Seul sozinha, dez anos atrás, e certamente não se abriu para muitos de seus colegas em Hanawon, um centro administrado pelo Ministério da Unificação de Seul onde desertores passam por processo de educação obrigatório de 12 semanas para se ajustar à vida no sul.

A turma de Han foi uma das maiores desde que o centro foi criado. Eram mais de 300 pessoas. Todos sabiam o quão difícil havia sido passar pela China.

“Sei que ela foi para a China primeiro. Mesmo quando ria, havia algo sombrio. Perguntei o que estava errado, mas ela me ignorou”, disse um de seus colegas.

“Então, disse a ela: ‘Não sei o que é, mas se você sair, contanto que trabalhe duro, você pode ter uma boa vida. A Coreia do Sul é um lugar onde você é recompensado por trabalhar. Você é jovem e bonita, não terá uma vida difícil. Faça o que fizer, não se envergonhe e ande de cabeça erguida’.”

Han parecia estar se dando bem a princípio. As autoridades ajudam desertores a encontrar apartamentos subsidiados, e ela, juntamente com seis de seus colegas de classe, foi instalada no bairro de Gwanak-gu.

“Acredito que ela foi a segunda pessoa depois de mim em nossa turma a conseguir emprego”, diz sua colega de classe.

“No começo, trabalhou brevemente em um café na Universidade de Seul. Ouvi dizer que causou uma boa impressão. O que nós lembramos é que era inteligente e bonita, e pensamos que era capaz de cuidar de si mesma. Não esperávamos que isso acontecesse.”

É difícil descobrir como, a partir desse começo promissor, Han acabou em dificuldades. Dois desertores em seu condomínio de apartamentos nos disseram acreditar que ela havia persuadido seu marido chinês a se mudar para a Coreia do Sul.

Eles se mudaram para Tongyeong, onde ele trabalhava em um estaleiro. Han teve um segundo filho, que nasceu com dificuldades de aprendizagem.

Acredita-se que o marido tenha voltado para a China sem ela, com o filho mais velho. Ela ficou sozinha, sem trabalho e responsável por uma criança com necessidades especiais.

Seus vizinhos dizem que ela sentia muita falta do outro filho.

Ela voltou para onde sua vida na Coreia do Sul havia começado - os apartamentos subsidiados em Gwanak-gu - e pediu ajuda no centro comunitário em outubro do ano passado, quando passou a receber 100 mil wons (R$ 338) por mês como auxílio para criar o filho.

Ela poderia ter reivindicado muito mais do que aquele benefício. Uma mãe ou pai solteiro tem direito a seis a sete vezes esse valor. Mas isso exigiria um certificado de divórcio, e aparentemente ela não tinha um.

Também não podia mais receber ajuda como desertora, porque o período de proteção de cinco anos havia expirado.

A equipe do centro comunitário disse que eles visitaram seu apartamento para uma checagem anual de bem-estar em abril, mas Han não estava em casa. Eles não sabiam da condição do seu filho.

Ela não pagou o aluguel de seu apartamento subsidiado ou suas contas por algum tempo. Em alguns outros países, isso teria servido de alerta para os serviços sociais. Mas isso parece não ter acontecido na Coreia do Sul.

‘Uma morte por indiferença’

Reunidos no santuário em Gwanghwamun, em frente ao retrato de Han, os desertores continuam a debater o caso. “Isso é absurdo, como um norte-coreano foge da fome para morrer de fome no sul?!”, diz um deles.

“O que o governo sul-coreano fez? Isso é morte por abandono”, fala outro.

“Isso é uma morte por indiferença”, rebate um deles.

“Onde estava o Estado? Onde estava a polícia?”, questiona mais um.

No entanto, seu ex-colega de classe disse que não é assim que Han gostaria de ser lembrada. “Não quero apontar dedos para os culpados. Devemos nos unir e prometer nunca deixar isso acontecer de novo. Realmente parte meu coração como as pessoas estão tirando vantagem disso para proveito próprio.”

Então, quais lições podem ser tiradas de tudo que aconteceu? Em nenhum momento Han pediu ajuda. Mas a ajuda deveria ter ido até ela?

Falta de apoio psiquiátrico

O cuidado com a saúde mental dos refugiados norte-coreanos é uma área que poderia ser melhorada, de acordo com desertores e psiquiatras.

Os últimos relatos sobre Han, de um vizinho, apontam que ela andava distraída e ansiosa. Muito diferente da mulher que chegou ao centro de Hanawon há 10 anos.

A maioria dos que deixam a Coreia do Norte já foi vítima de violações de direitos humanos e traumas que vão da fome extrema a agressão sexual, sendo forçados a testemunhar execuções públicas e a viver com o medo de serem alvo de traficantes de pessoas na China.

A taxa de trauma psicológico é maior entre aqueles que viajaram pela China, de acordo com um estudo da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Coreia do Sul.

Jin-yong, do Centro Nacional de Saúde Mental, diz ser comum que desertores sofram de ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático. Mas, como existem muitos estigmas associados à saúde mental no norte, muitos não sabem que estão sofrendo ou que há ajuda disponível.

Qualquer pessoa que sofra de doença mental na Coreia do Norte é enviada para um hospital nas montanhas chamado Número 49. A maioria nunca retorna. Talvez seja compreensível que nortes-coreanos não saibam que é possível receber apoio psiquiátrico. “Precisamos de serviços mais amigáveis ​​aos desertores, orientar desertores a encontrar esses serviços”, diz Jun.

“Os desertores acessam menos os serviços de saúde mental do que os sul-coreanos, porque eles têm preconceito contra saúde mental. Por isso, devemos continuar a promover o apoio neste sentido para os desertores para que possam receber ajuda.”

De acordo com uma pesquisa de assentamentos de refugiados norte-coreanos na Coréia do Sul, cerca de 15% admitem ter pensamentos suicidas. Isso é cerca de 10% acima da média sul-coreana. A maioria diz que as dificuldades econômicas são a principal razão.

Joseph Park, que também fugiu da Coreia do Norte há 15 anos, acredita que as mortes chocantes de Han e seu filho não foram causadas por falta de políticas governamentais, mas podem ser parcialmente atribuídas a certos aspectos da cultura sul-coreana.

“A Coreia do Sul é uma sociedade onde você pode viver sem se relacionar com os outros. Acho que essa é a grande diferença. Mas na Coreia do Norte, você precisa de relações com seu vizinho, e o sistema obriga a ter estas relações também”, diz ele.

“Por exemplo, nas escolas norte-coreanas, se alguém não vem para a aula, o professor envia todos os colegas para a casa do aluno. Então, naturalmente, ninguém consegue se isolar.”

Milhares de norte-coreanos são muito bem-sucedidos em suas vidas no sul. Mas isso exige que eles mudem e se adaptem. Desertores disseram a numerosos estudiosos que eles se sentem diferentes e enfrentam discriminação.

Os resultados de uma autópsia de Han e seu filho são esperados para breve, mas o Ministério da Unificação da Coreia do Sul já está examinando o caso na esperança de que lições possam ser tiradas disso.

O que está claro é que as pessoas do norte e do sul ainda se sentem separadas - mesmo quando moram na mesma cidade. Talvez a história de Han seja um motivo para fazer Seul parar para pensar, na esperança de que nunca mais se tenha que dizer “se ao menos…”.

Notícia publicada na BBC Brasil , em 23 de agosto de 2019.

Jorge Hessen* comenta

Para o refugiado norte coreano Joseph Park as mortes de Han e seu filho podem ser atribuídas a certos aspectos culturais sul-coreano, como uma sociedade distante do altruísmo, portanto bastante egoísta. Entendemos que há um sistema de altruísmo recíproco com um meio de troca – o dinheiro – que uniu quase o mundo inteiro em uma economia interligada, mas com muito mais conflito interno e muito menos altruísmo.

Afirma-se por aí que quem é altruísta aos seus não é generoso – é nepotista. Será que podemos qualificar como altruísmo aquilo que fazemos com vistas a uma retribuição futura? Fica a sensação de que, sob a pele de cordeiro do altruísmo, vamos sempre encontrar um lobo egoísta.

A palavra altruísmo foi cunhada em 1831, por Augusto Comte, para caracterizar o conjunto das disposições humanas (individuais e coletivas) que inclinam os homens a dedicarem-se aos outros. Esse conceito opõe-se, portanto, ao egoísmo, que são as inclinações específicas e exclusivamente individuais (pessoais ou coletivas).

Como Terceira Revelação, o Espiritismo tem a tarefa de colaborar para o desenvolvimento moral da humanidade, o que elevará a Terra na hierarquia dos mundos; o egoísmo é o alvo para o qual os espíritas, principalmente, devem dirigir suas armas, suas forças e sua coragem, transmutando-o em si próprio.

Muitos Benfeitores do além atestam que o egoísmo é o filho do orgulho e o monstro devorador de todas as inteligências, porque as domina, direcionando-as para o mal, para a dor e para o sofrimento, é a fonte de todas as misérias terrenas, porque leva o homem a pensar somente em si, impedindo-o de fazer crescer o amor, inerente em si, no ser espiritual, em potencialidade a ser desenvolvida por sua vontade.

A Terra é um planeta magnífico, uma magna escola, contudo o exclusivo componente que aí desafina da Natureza é precisamente o ser humano, subjugado pelo egoísmo. O atual estado de espírito do homem moderno, que tanto se preocupa com o estar bem na vida, ganhar bem e trabalhar para enriquecer constitui forte expressão de ignorância dos valores espirituais na Terra, onde se verifica a inversão de quase todas as conquistas morais. Esse excesso de inquietação, no mais desenfreado egoísmo, tem provocado a crise moral do mundo. Em face disso, os maiores obstáculos que Deus encontra em nós, para que recebamos o seu socorro indireto, afetuoso e eficiente, são oriundos da ausência de humildade sincera nos corações; para o exame da própria situação de egoísmo.

As aberrações morais nas expressões de conflito e de crueldade são indícios de atraso moral ou de estacionamento no exclusivismo. As criaturas, de um modo geral, ainda têm muito da tribo, encontrando-se encarceradas nos instintos propriamente humanos, na luta das posições e das aquisições, dentro de um egoísmo quase feroz, como se guardassem consigo, indefinidamente, as heranças da vida animal.

A Doutrina Espírita expõe que na eclosão dos manifestos egoísticos, inatos nos seres humanos, há sempre o sabor amargo da inutilidade no coração dos seres desenganados pela hegemonia do individualismo. Nesse sentimento de frustração, pode degustar a expansão de suas buscas irresistíveis e profundas para o mais alto. Nesse ensejo, o altruísmo, a fraternidade e o amor conquistam uma nova expressão no íntimo da criatura, a fim de que o homem possa alçar o grande voo para os mais excelsos destinos.

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal aposentado do INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (vinte e seis livros “eletrônicos” publicados). Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.