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O campo político - como espaço de opinião em busca das melhores formas de administrar o coletivo, de sustentar a justiça e de desenvolver possibilidades, estabelece-se no diálogo de argumentos, de valores, de perspectivas e de acordos. Quando se transforma em espaço de duelo, cuja finalidade é a morte do outro ou de suas liberdades constitucionais, a política se transforma em guerra, em instrumento de submissão e enamora-se de um discurso totalitário do qual se ausentam a razão e o bom senso.

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** O que houve com a política?

Reflexões sobre o duelo.

O que é a justiça? é a pergunta que direciona a discussão que fará Platão desenvolver as ideias de A República, uma utopia de sociedade justa baseada no conhecimento da verdade e prática da sabedoria.

A justiça é ser honesto e restituir as coisas tomadas de alguém - é a resposta de Céfalos, um general ateniense. Mas insatisfeito com a resposta, Sócrates interroga Polemarco, filho de Céfalos e dono da casa onde estão. A resposta é incisiva: “fazer todo o bem àqueles que amamos e todo o mal àqueles a quem odiamos”. Sócrates levará Polemarco a uma conclusão distinta.

Enredado na conversa, Trasímaco entendia a Justiça como a conveniência do mais forte e defendeu o Estado - no conceito ateniense que excluía não-cidadãos, e que deve ser exercida pelo emprego necessário da força. Por fim, Sócrates leva Trasímaco a concluir que a justiça é verdade e sabedoria enquanto a injustiça é maldade e ignorância.

Em sua obra mais famosa, John Rawls discute o problema da justiça para propor um sentido de igualdade e imparcialidade dentro de princípios de liberdade democrática e destaca a cooperação social sobre fundamentos de um consenso sobre o espaço democrático como forma de discutir e operar a justiça: uma sociedade não é justa quando impõe um modo de ser e de agir, mas quando permite a autorrealização e a autodeterminação de seus membros sob certos parâmetros acordados em um contrato social - a constituição de um estado, por exemplo.

Animal político, conforme definido por Aristóteles, o ser humano é instado à convivência por sua natureza e necessidades: por sua natureza pelos requisitos de aquisição de conhecimento e carência de proteção desde sua origem, e por suas necessidades considerando-se a contínua demanda por realização, desenvolvimento e sustentação.

A política é a arte de encontrar consensos - ou era.

O campo político - como espaço de opinião em busca das melhores formas de administrar o coletivo, de sustentar a justiça e de desenvolver possibilidades, estabelece-se no diálogo de argumentos, de valores, de perspectivas e de acordos. Quando se transforma em espaço de duelo, cuja finalidade é a morte do outro ou de suas liberdades constitucionais, a política se transforma em guerra, em instrumento de submissão e enamora-se de um discurso totalitário do qual se ausentam a razão e o bom senso.

O totalitarismo é a busca da autoridade suprema, uma forma de governo que proíbe a alteridade e condena a diversidade de pensamento. Existem totalitarismo de direita, de esquerda e de centro, desde que as opiniões alheias são proibidas, ignoradas ou perseguidas.

Num estado democrático, no qual a justiça é estabelecida por acordos políticos entre opiniões diferentes, mas amparadas em princípios de justiça, os governos são eleitos por suas opiniões, mas a instituição do Estado é o conceito que busca - em instituições plurais, a manutenção da justiça e da ordem para o bem-estar de todos. Daí a possiblidade de governos de esquerda, de direita e de centro. Daí o papel dos partidos políticos, como legítimos representantes de opiniões.

Desde que a verdade foi sacrificada, no afã de superação do positivismo natural da ciência, e a liberdade entronizada como deusa da era contemporânea, temos tido dificuldades em atender aos convites de Têmis e de Libera (ou Libertas), as deusas da justiça e da liberdade na mitologia grega. De Têmis, esquecemos a igualdade com que considera opiniões antes de julgá-las. De Libera, ignoramos o chamado de reconhecer a autonomia dos outros e o seus respectivos direitos à própria opinião e ao direito de pensar e de opinar.

Se devemos reconhecer no campo das ideias os espaços adequados para os combates opinativos - nos quais o argumento e a retórica se sucedem para intentar o convencimento, não devemos ceder à tentação do duelo, com o qual pretendemos exterminar o direito do outro à sua forma de ser e de pensar, no respeito à liberdade e diversidade como direitos inalienáveis dos indivíduos.

A polêmica, instituição privilegiada no estado democrático, permite uma linguagem dura com a qual se pretende demostrar erros, equívocos ou diferenças de princípios. Nela comparecem a lógica e a retórica vestidas de ironias, de metonímias e silogismos, para entronizar o diálogo como instrumento de convencimento, como arsenal da cultura para a criação de acordos - dificilmente de unidades.

Frederick Hegel, filósofo alemão, em seu famoso Fenomenologia do Espírito , propõe a dialética, ou caminho das ideias, uma forma de diálogo por meio do conflito de opostos na altercação de movimento, processo e progresso: tese, antítese e síntese. O interesse é promover a evolução de conceitos, a amplitude de perspectivas e o engrandecimento do entendimento - instrumentos vitais para o exercício pleno da liberdade, da igualdade, da fraternidade.

Mas em que se tornou a política contemporânea no início do século XXI? Um esforço de duelo.

Pretendendo exterminar a opinião alheia, transforma-se o egoísmo ideológico em arma de extermínio do respeito e converte-se o outro, suas opiniões e modos, em inimigo a ser eliminado, em obstáculo a ser removido a bem do ideal contemporâneo de totalidade: a “lacração”.

Em 1864, combatendo os resíduos de barbárie dos séculos anteriores, Allan Kardec dedicou o capítulo XII de O Evangelho Segundo o Espiritismo a uma análise do conceito de “Amai os vossos inimigos “, explorando aspectos morais da famosa passagem evangélica consignada em Mateus 5:43-47:

Aprendestes que foi dito: “Amareis o vosso próximo e odiareis os vossos inimigos.” Eu, porém, vos digo: “Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam, a fim de serdes filhos do vosso Pai que está nos céus e que faz se levante o Sol para os bons e para os maus e que chova sobre os justos e os injustos. Porque, se só amardes os que vos amam, qual será a vossa recompensa? Não procedem assim também os publicanos? Se apenas os vossos irmãos saudardes, que é o que com isso fazeis mais do que os outros? Não fazem outro tanto os pagãos?”

E na seção de Instruções dos Espíritos, Kardec apontaria uma série de mensagens psicografadas para provocar reflexões em torno do duelo. Destas destacamos, no item 14, uma reflexão oportuna:

[…]. Que juízo farão de mim, costumais dizer, se eu recusar a reparação que se me exige, ou se não a reclamar de quem me ofendeu? Os loucos, como vós, os homens atrasados vos censurarão; mas os que se acham esclarecidos pelo facho do progresso intelectual e moral dirão que procedeis de acordo com a verdadeira sabedoria. Refleti um pouco. Por motivo de uma palavra dita às vezes impensadamente, ou inofensiva, vinda de um dos vossos irmãos, o vosso orgulho se sente ferido, respondeis de modo acre e daí uma provocação. Antes que chegue o momento decisivo, inquiris de vós mesmos se procedeis como cristãos?

O duelo já foi modo de disputa da honra. Pretendeu ser, outrora, forma de juízo divino ou submissão à força e destreza dos oponentes. Hoje o duelo é forma de discurso, fantasiado de polêmica agressiva - com a qual se pretende matar o direito de liberdade, o inviolável direito do livre pensamento ou da possibilidade de expressão.

O campo da disputa não pode ser a mídia negociada, vetusta adoradora da gestão de opiniões com vistas aos interesses da popularidade. O espaço de debate é a informação, com a qual se deve honrar os argumentos e da qual se faz efetivo o instrumento do jornalismo, da televisão, do rádio e outros instrumentos da vera comunicação.

Urge transformar o desejo do duelo em debate democrático, iluminado pelo respeito, repleto de juízos, prenhe de argumentações e disposições de acordos. Sem isso não teremos outro futuro senão o da ignorância, e com ela o declínio da justiça e da liberdade.

Que possamos refletir na proposta de Kardec, especialmente os espíritas brasileiros, para que nosso esforço de progresso esteja unido na promessa do Codificador, referindo-se ao duelo:

O Espiritismo apagará esses últimos vestígios de barbárie, incutindo nos homens o espírito de caridade e de fraternidade.

Concebendo a arte de construir consenso, perguntemo-nos com espírito de sinceridade e desejo de progredir: o que houve com a política?

andrehsiqueira@espiritismo.net

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Artur Fernando Sampaio. As definições de justiça em A Repúlica. On Line: 2019. Disponível em https://jus.com.br/artigos/76289/as-definicoes-de-justica-em-a-republica . Acessado em: 09/09/2020.

BUENO, Alexei; ERMAKOFF, George. Duelos no serpentário: uma antologia da polêmica intelectual no Brasil 1850-1950. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2005.

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Tradução de Guillon Ribeiro. Edição Kindle, 131ª ed. - Edição Histórica. Brasília: FEB. 2013.

PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação: a nova retórica. 2ª ed.. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

PLATÃO. A república. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira. 14. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2014.

RAWS, John. Teoría de La Justicia (Spanish Edition). Tradução por María DOlores González. Cidade do México:Fondo de Cultura Económica. 1979.

SILVA, Nívia Maria Santos. Bruno Tolentino: Campos da Polêmica. Revista Inventário, n. 16, p. 1-17, 2015