Carregando...

O que fazer quando você é a que resta? Se você é uma escritora, escreve. Agarra-se às palavras na tentativa de compreender o impossível, para não afundar, porque é preciso enfrentar as lembranças, e com elas construir uma memória que faça sentido na paisagem devastada que agora é você. André Henrique de Siqueira comenta.

  • Data :11 Jun, 2013
  • Categoria :

11 de junho de 2013

A mulher que restou

Como viver depois de perder o marido e a filha única em 20 meses? Joan Didion responde à tragédia num texto delicado e brutal

ELIANE BRUM

Quando Quintana se casou, ela usava flores de jasmim entrelaçadas na grossa trança que lhe pendia nas costas. Seus pais, os escritores Joan Didion e John Gregory Dunne, brindaram a ela, sua única filha, e a Gerry, agora seu genro. Duas vezes. Uma na catedral, a outra mais tarde, num restaurante chinês de Nova York. Desejaram a eles felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos. Naquele dia, 26 de julho de 2003, eles ainda chamavam a isso de “bênçãos triviais”, aquilo que se deseja com sinceridade para quem amamos, mas quase sem pensar. Cinco meses depois, John estava morto. Um ano e oito meses depois dele, Quintana estava morta. Restou Joan, perplexa, pensando que houve um dia, houve uma vida, houve alguém com seu nome que acreditara que felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos pudessem ser bênçãos triviais.

Noites azuis (Nova Fronteira, 144 páginas, R$ 29,90, tradução de Celina Portocarrero), o último livro da jornalista, roteirista e escritora americana Joan Didion, é a narrativa de uma mulher que se descobre sozinha para testemunhar o próprio fim. Antes dele, Joan escrevera O ano do pensamento mágico , sobre o período que se seguiu à morte do homem com quem vivera por quase 40 anos, com quem escrevera roteiros para Hollywood, com quem sonhara com uma filha que se chamaria Quintana Roo. Um homem que caiu de repente sobre a mesa do jantar porque o coração parou, deixando-a só e perplexa.

Ao escrever sobre a vida sem John, ela alcançou uma síntese perfeita da catástrofe humana: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Era essa a tragédia inescapável, a emergência para a qual não há equipes de salvamento. O ano do pensamento mágico tornou-se um best-seller nos Estados Unidos e vendeu 100 mil exemplares no Brasil. Quintana morreria pouco antes do lançamento, depois de meses com complicações de saúde cujos detalhes Joan escolhe não explicar. Tinha 39 anos.

Noites azuis é a continuação que Joan jamais esperaria escrever. É a história de uma mulher que restou. E talvez se possa dividir a condição humana em três destinos: ou morremos jovens, de doença, tiro, terremoto, acidente de trânsito, como aconteceu com Quintana; ou vivemos até uma idade madura, mas um câncer, um infarto ou um derrame nos leva um pouco antes de todos os outros, como John; ou restamos. No território de seus afetos, Joan foi a que restou. Tinha 70 anos quando se descobriu só.

O que fazer quando você é a que resta? Se você é uma escritora, escreve. Agarra-se às palavras na tentativa de compreender o impossível, agarra-se para não afundar. Agarra-se porque é preciso enfrentar as lembranças, sempre fragmentadas, e com elas construir uma memória que faça algum sentido na paisagem devastada que agora é você. Com 1 metro e 56 centímetros e meio de altura e a silhueta de quem poderá ser levada embora na primeira brisa, Joan Didion é uma escritora feroz. Examina a si mesma sem autopiedade ou pieguice e entrega-se ao leitor com todas as suas marcas. A grandeza de seu texto está na capacidade de entrelaçar a tragédia às pequenas delicadezas do cotidiano. Como ao perceber que, por muito tempo, escrevera vendo as roupas de Quintana secar ao sol.

As lembranças espreitam Joan atrás de cada porta, dentro de cada gaveta. Ela levanta a tampa da caixa de joias forrada de cetim e encontra lá dentes de leite. Abre a porta do guarda-roupa e vê três velhas capas de chuva de John, uma jaqueta de camurça dada a Quintana pela mãe de seu primeiro namorado e um bolero de angorá, há muito comido pelas traças, que sua mãe ganhara de seu pai depois da Segunda Guerra Mundial. Ela abre caixas e acha convites para casamentos de gente que há muito se separou, cartões de agradecimento de funerais de pessoas cujo rosto esqueceu. “Em teoria, essas lembranças servem para trazer de volta o momento”, escreve. “Na prática, servem apenas para demonstrar quão inadequadamente apreciei o momento quando ele aconteceu.”

Em que momento surgiu Quintana Roo? Antes de se tornar criança, ela havia sido uma paisagem. Um nome visto por Joan e John num mapa do México, um nome que falava de uma geografia que ainda era terra de ninguém – ainda era, como Joan definiria, “terra incógnita”. Como todos os filhos, seus contornos foram se desenhando primeiro no território do desejo. Até que o telefone tocou.

“Tenho uma linda menina no St. John”, disse o médico aos pais que esperavam uma chance de adoção. E lá estava não um bebê entre tantos, mas o seu bebê, a sua Quintana Roo, com uma fita rosa no cabelo preto e uma pulseira no braço com as iniciais “N.I.” – nenhuma informação. Quintana sempre pediria para repetirem a história não de seu nascimento concreto, mas de seu nascimento para aqueles pais. “E se vocês não estivessem em casa para atender o telefone? E se tivessem sofrido um acidente na estrada, o que teria acontecido comigo?”, perguntava.

Joan nunca teve respostas para as perguntas da filha. Como a maioria dos pais, ela se iludira que seu bebê era uma página vazia, à espera de uma história. Mas todo recém-nascido é uma página que já começou a ser preenchida pelo desejo, ou pela neurose, ou pelo desespero, ou pelos genes, ou por tudo isso junto. No caso de Quintana Roo, também pelo abandono que assombra os filhos que um dia restaram, antes de ser escolhidos por um triz. Durante a maior parte da vida, Joan não conseguia compreender: “Como ela pôde pensar que eu não cuidaria dela?”.

Mas isso foi antes, quando Joan ainda não tinha ouvido do médico da UTI: “Ela não consegue obter oxigênio do ventilador há pelo menos uma hora”. O que aconteceu? “Se ontem mesmo eu a segurei em meus braços. Ontem mesmo eu prometi a ela que estaria segura conosco.” Enquanto escreve, Joan sabe que homens e mulheres só descobrem a mortalidade quando têm um filho. Quando você jura proteger sua criança para sempre, mas acorda sem ar no meio da noite porque sabe que está mentindo. Você mente porque algumas mentiras são necessárias para seguir vivendo, mas você sabe – e seu filho também sabe. Com a terrível lucidez de ser aquela que restou, Joan agora é capaz de inverter a pergunta, perigosamente perto da verdade que sempre esteve lá: “Como ela poderia sequer imaginar que eu tomaria conta dela?”.

Joan descobre, enquanto amarra lembranças, que um filho será sempre, em alguma medida, uma terra incógnita. O nome, afinal, não estava deslocado. Possivelmente ela nunca precisaria pensar nisso se a ordem da vida – e da morte – não tivesse sido rompida. Agora, aqui está ela, perplexa, apavorada. É a esta altura que Joan acorda um dia e percebe que se tornou uma velha. Ela sabe o momento exato.

Era manhã de quinta-feira, 2 de agosto de 2007. Joan acordou com manchas avermelhadas no rosto e algo parecido com dor de ouvido. Desde então, seu corpo tem falhado de várias maneiras. A ponto de uma noite ela ter se surpreendido com medo de não conseguir se levantar de uma cadeira dobrável num evento público. Como foi ela que restou, agora gasta horas a fio na sala de espera de hospitais, às voltas com o preenchimento de formulários nos quais lhe pedem algo nebuloso: indicar quem chamaria em caso de emergência.

Joan descobre que não tem mais medo de morrer. Tem agora medo de não morrer – de restar sem consciência ou movimento. Restar sem poder contar nem consigo mesma. Percebe então que as noites azuis não voltarão. Aquelas noites assim chamadas porque anunciam o verão e só vão embora depois que ele acaba, nas quais podemos nadar em azul no crepúsculo antes de a escuridão nos alcançar. “Será que eu pensava que as noites azuis durariam para sempre?”, indaga-se, para sempre perplexa.

Ela escreve, porém. As palavras também começam a lhe escapar, ela sente que seus verbos e substantivos “não dizem o que deviam dizer ou não querem”. Mas Joan vive enquanto escreve – e escreve para saber que ainda vive. Enquanto escreve, mantém todos vivos. Um truque desesperado do ilusionista que é todo escritor, mas também um milagre humano. No livro, Quintana, John e tantos outros que povoaram o mundo de Joan Didion ainda vivem. E as noites azuis continuam lá.

Matéria publicada na Revista Época , em 26 de agosto de 2012.

André Henrique de Siqueira comenta*

A mulher que restou…

“Vulnerant Omnes, ultima necat” (todas ferem, a última mata) é uma expressão latina atribuída a Sêneca, o retórico. Durante muito tempo foi uma inscrição comum nos relógios do sol (um exemplo em http://www.panoramio.com/photo/55925126 ), como uma lembrança da impermanência da vida. Inspirado pela frase de Sêneca, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, poeta carioca e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, escreveu um poema com o mesmo título:

Vulnerant Omnes, ultima necat Olavo Bilac (1946)

Rio perpétuo e surdo, as serras esboroas, Serras e almas, ó Tempo! e, em mudas cataratas, As tuas horas vão mordendo, aluindo, à toa… Todas ferem, passando: e a derradeira mata.

Mas a vida é um favor! De crepe, ou de ouro e prata, Da injúria ou do perdão, do opróbrio ou da coroa, Todas as horas, para o martírio, são gratas! Todas, para a esperança e para a fé, são boas!

Primeira, que, em meu ninho, os primeiros arrulhos Me deste, e a minha Mãe deste um grito e um orgulho, Bendita! E todas vós, benditas, na ânsia triste

Ou no clamor triunfal, que todas me feristes! E bendita, que sobre a minha cova aberta Pairas, última, ó tu que matas e libertas!

A morte não é novidade na vida. Morrer é completar o ciclo da vida. Ariano Suassuna escreve no seu famoso auto da compadecida:

“… o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo que é vivo morre!” (SUASSUNA, 2008, p. 39)

É esta sensação de estranhamento que identificamos no texto Noites Frias da americana Joan Didion, um estranhamento com a dureza da morte, este mal irremediável. Em 2007, Joan se descobriu velha, e socialmente sozinha, após a morte de seu marido e de sua filha. Ela foi a mulher que restou, e restou sem o medo de morrer, mas como o medo de não morrer.

O sentimento de solidão que afaga aqueles que perderam entes queridos para a morte é uma dor incomensurável. Para a morte, ninguém é substituível. A crença na finitude da vida aumenta a angústia e depois… depois resta esperar pelo próprio fim: Vulnerant Omnes, ultima necat - cada hora que passa fere, a derradeira mata.

Mas será que existe mesmo a última hora?

Em um famoso estudo sobre o Homem e a morte, Phillipe Aries (2000) analisa as diferentes atitudes do homem diante da morte. No trabalho, Aries destaca como a relação com a morte era tida como um elemeneto natural na sociedade e o homem tratava a morte como um elemento comum da vida. A evolução das ideias tornou o homem preocupado com a própria morte e a necessidade de uma reflexão sobre os aspectos centrais da sobrevivência à morte como possibilidade de perpetuação do eu. Surgem as noções de um futuro post-mortem. Na obra, o prof. Aries aprofunda a preocupação com o tema sobre uma história da morte no ocidente, tema de seu livro anterior, em que o historiador analisa a morte do eu, a morte do outro e a busca por uma interdição da morte - a preocupação em superar a morte e o morrer. É notável na atualidade os esforços de alguns pesquisadores - como é o caso do Raymond Kurzweil (2007) - para uma superação da morte pela sua interdição. Esta preocupação por impedir a morte, quem tem uma caracterização no imaginário humano, encontra uma contraposição nas reflexões de Didion (2012):

“A medicina, conforme pude perceber em mais de uma ocasião desde então, continua a ser uma arte imperfeita. Ainda assim, tudo parecia bem enquanto sacudíamos a água dos colares havaianos na grama do jardim da catedral de são João, o Divino, em 26 de julho de 2003. Será que você notaria, se passasse aquele dia pela Avenida Amsterdam e visse de relance a festa de casamento, o quão despreparada estava a mãe da noiva para aceitar o que aconteceria antes mesmo de 2003 chegar ao fim? O pai da noiva morto em sua própria mesa de jantar? A própria noiva num coma induzido, respirando por aparelhos, os médicos da unidade de terapia intensiva receando que ela não passasse daquela noite? O primeiro de uma enxurrada de problemas de saúde que culminariam, vinte meses depois, na morte da noiva?” p. 16

Para culminar muito dolorosamente:

“O tempo passa. Será que eu nunca acreditei nisso? Terei acreditado que as noites azuis durariam para sempre?” (DIDION, 2012, p. 18)

Não é fácil analisar a dor de quem perdeu, ou acha que perdeu, um ente querido. A ordem natural da vida é que os mais velhos sucumbam antes dos mais novos e é sempre uma aflição quando o contrário de dá. Mas perder alguém para a morte é uma dor muito grande. Por isto a possibilidade da existência de uma alma e a questão de sua imortalidade interessam o ser humano desde suas primitivas manifestações religiosas.

Ao nos depararmos com a abordagem espírita - iniciada com o professor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, temos uma caracterização nova para o problema:

  1. Uma abordagem experimental para o problema da sobrevivência da alma;

  2. Uma investigação filosófica sobre as consequências da existência e imortalidade do espírito;

  3. Uma análise das consequências éticas e religiosas que decorrem das abordagens anteriores.

Os chamados fenômenos da mediunidade são intrumentos de investigação sobre a realidade da imortalidade da alma. Têm interessado a humanidade desde tempos imemoriais nas práticas de intercâmbio entre os vivos e os mortos e, mais recentemente, desde o século XIX, têm interessado à Ciência como prática de investigação da Natureza.

Um dos expoentes da fenomenologia mediúnica do século XX foi, indubitavelmente, Francisco Cândido Xavier, mais conhecido como Chico Xavier. E foi através de sua mediunidade que encontramos uma resposta muito clara para a Mulher que restou, um poema de Edmundo Xavier de Barros, chamado Vida:

Vida Edmundo Xavier de Barros (espírito)

Nem a paz, nem o fim! A vida, a vida apenas É tudo que encontrei e é tudo que me espera! O ouro, a fama, o prazer e as ilusões terrenas São lodo, fumo e cinza ao fundo da cratera.

Esvaiu-se a vaidade!… Os júbilos e as penas, A alegria que exalta e a dor que regenera, Em cenário diverso aprimorando as cenas, Continuam, porém, vibrando noutra esfera.

Morte, desvenda à terra os planos que descobres, Fala de tua luz aos mais vis e aos mais pobres, Renova o coração do mundo impenitente!

Dize aos homens sem deus, nos círculos escuros, Que além do gelo atroz que te reveste os muros, Há vida… sempre a vida… a vida eternamente…

REFERÊNCIAS:

SUASSUNA, A. O Auto da Compadecida. Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros. Rio de Janeiro: AGIR editora, 2008;

BILAC, O. POESIAS. 22ª Edição. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1946;

ARIES, P. O homem perante a morte. Lisboa: Publicações Europa-América, 2000;

KUZWEIL, R. GROSSMAN, T. Medicina da imortalidade. São Paulo: Ed, Aleph, 2007;

DIDION, J. Noites Azuis. Tradução de Celina Portocarrero. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2012;

XAVIER, F. Parnaso de Além Túmulo (por diversos autores espirituais). Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1935.

  • André Henrique de Siqueira é bacharel em ciência da computação, professor e espírita.