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Por que não estamos preparados para a doença e a morte dos animais de estimação. Os antigos valores em relação aos animais já não valem mais nada. Talvez a solução seja criar um sistema legal, religioso e médico que nos ajude a prevenir os danos de sermos mortais. Nara de Campos Coelho comenta.

  • Data :05/05/2011
  • Categoria :

O dilema do sacrifício

Por que não estamos preparados para a doença e a morte dos animais de estimação

LUÍS ANTÔNIO GIRON

A praga de São Longuinho continua. O santo dos pulinhos e tem pegado no meu pé desde o Ano Novo, quando saltei as sete ondinhas, não levando a sério sua oração. Longuinho é o santo que o devoto invoca para achar objetos ou causas perdidas. E que, no Réveillon, é o emissor dos bons augúrios. Descobri, porém, que o santo dos achados também é o dos perdidos. Quando você o despreza, parece que é capaz de extraviar ainda mais o que você queria achar. Agora passei a levar o santo a sério – e, na dúvida, vou acender uma vela para ele todo fim de ano, sem zoar quem salta as ondas.

Acaso ou coincidência, o fato é que desde que cometi o deboche herético o meu cotidiano desandou: minha casa destelhou, meu carro submergiu em uma onda de lama (onda, repare bem!) que resultou em perda total. O carro que peguei na seguradora pifou. E, para culminar, uma grande tristeza se abateu sobre minha família: nossa cachorrinha, Sissi, está agonizante há cinco dias. Sei que pode soar leviandade falar de fé, superstição e pequenos reveses caseiros num momento que cidades inteiras foram submersas pela lama no Rio e em São Paulo – e que mais de 600 pessoas morreram por causa disso. Apesar de tudo, em especial o sofrimento maior dos outros, é preciso tocar a vida e enfrentar também os azares mais miúdos. Até porque eles contêm ensinamentos. Vou contar o que se passou.

Odeio lições da vida, mas elas acontecem e tem de ser aprendidas. No último fim de semana, eu me preparava para cobrir o show de Amy Winehouse na Arena Anhembi e, na noite seguinte, assistir pela televisão à entrega dos prêmios do Globo de Ouro, quando a cachorrinha começou a se sentir mal. Sissi está com a gente há oito anos. É um dachshund, o popular salsicha. Sempre foi um animalzinho atento e sensível. Tomava conta da casa, com aquela fúria que só os cães pequenos são capazes de transmitir. Também era a grande amiga de minhas filhas, que se afeiçoaram a ela como se fosse uma filha. Ainda crianças, elas conversavam com Sissi. E se acostumaram a entender seus sentimentos e pedidos. De fato, Sissi criou um código de gemidos, latidos e gestos para se fazer entender.

Pois é, ela se tornou uma integrante da família em um momento histórico em que os animais de estimação estão sendo humanizados a ponto de terem os mesmos direitos de qualquer cidadão racional. Isso ao mesmo tempo que nós, humanos, estamos cada vez mais parecidos com animais domesticados. Os cachorros e gatos já não vão ao veterinário, mas ao médico. Veterinário de hoje quer ser tratado como “doutor”. Eles não comem ração, mas “comida”.

Não são filhotes, mas “bebês”. Suas mandíbulas viraram “bocas”. Seus focinhos, “narizes”. Há cachorros aprendendo a falar como gente por aí. Eles já têm opções de consumo, de alimentação (há até cães vegetarianos), moda e habitação. Agora contam até com seguro de saúde privado.

Desatento como sempre às mudanças do mundo, fui imprevidente e não contratei nenhum seguro para Sissi e Milly, a outra cachorrinha, beagle. Já pressupondo que cães e gatos são gente, imaginei que eles pudessem ser protegidos pelo poder público. Errei. Enquanto dentro das casas os pets são membros da família, fora delas continuam a ser bichos sujeitos à captura e à morte, sem nenhum tipo de direito. Muitos mascotes são reis na vida privada, mas retornam à situação primitiva na vida pública.

Dessa forma, quando Sissi começou a sentir dores e ter convulsões, não pude recorrer a São Francisco, o padroeiro dos animais. Descobrimos que só nós mesmos tínhamos que fazer tudo para salvá-la. Corremos a veterinários, clínicas, hospitais, farmácias, atrás de socorro. E, claro, tudo a preços iguais aos pagos por pacientes humanos. A agonia do cãozinho acontece na mesma velocidade com que o dinheiro sai da conta. É necessário salvar uma vida, e não se economiza numa situação dessas. Afinal, animais domésticos viraram pessoas. Neste momento, minhas filhas estão preocupadas com o destino de seu “bebê”, chorando com um desespero que não posso dizer que não seja legítimo.

Não era assim até uns 20 anos atrás. Antes, o recurso ao sacrifício do animal era legítimo e banal. Mas agora, da mesma forma que não aguentamos mais matar galinha para prepará-la no almoço, não conseguimos mais pensar em executar um bicho, mesmo que seja por misericórdia. Não existe mais eutanásia para os bichos de estimação. O sacrifício se converteu em tabu. Até o verbo “sacrificar” é proibido de ser mencionado.

Como as coisas mudaram. Quando eu tinha 8 anos, em 1968, perdi meu cachorro de estimação. Ele foi envenenado com um bolo de carne. Lembro como sofri ao ver o animal estirado, agonizante, olhando para mim como dizendo adeus. E de meu pai dizendo que o veterinário daria uma injeção para que ele descansasse e não sofresse mais. Anos mais tarde, outro cachorro meu teve de ser sacrificado porque já não conseguia mais andar. Tive de me acostumar com a situação. Esses acontecimentos para uma criança dos anos 60 e 70 funcionavam como um ensaio para enfrentar os fatos da vida, da morte da finitude. Éramos assim treinados para lidar com a morte de entes queridos, que cedo ou tarde ia acontecer. No meu caso, quando aconteceu, não adiantou nada. Sofri a perda de meu pai, de parentes e de amigos do modo mais doloroso possível.

Com o tempo e a maturidade, vamos perdendo a sensibilidade para sentir a perda de mascotes. Desenvolvi uma carapaça, um escudo, que, na impressão de minhas filhas, por exemplo, me faz parecer duro com os animais. Explico a elas que é uma forma de anestesia para não sofrer tanto. Uma anestesia cujo efeito passa tão logo me deparo com um animalzinho como Sissi sofrendo desamparado na minha frente. Não acredito na tal “escola do sofrimento”. A gente sofre, tem de sofrer – e pronto. É um fato inevitável e devastador da existência.

Fiz essa digressão para explicar que o sacrifício de um animal é algo que para mim não é escandaloso. Não gosto da ideia da eutanásia humana, mas compreendo que o indivíduo tem direito de não sofrer. Os animais não têm vontade, e, por isso, somos responsáveis por eles. Se notamos que a vida deles está insustentável, não vejo por que não aliviar o sofrimento com uma injeção.

Por isso, como um ser arcaico, tentei explicar às minhas filhas sobre a situação de Sissi, sobre o destino dos bichos, que vivem menos que a gente e têm de morrer, e precisamos enfrentar a situação. “Mas ela ainda resiste, ela vai melhorar, ela não pode morrer, ela é meu bebê”, disseram.

Não prossegui na conversa, com medo de parecer um monstro. Mas o que fazer se ela continuar a ter convulsões? Os recursos da veterinária evoluíram de forma a prolongar a vida dos bichos – e isso não me parece ter sentido. Até os veterinários devem me considerar um ser cruel e impiedoso. Antigamente, eles executavam os animais condenados. Hoje, pensam trezentas vezes antes de praticar o ato. Eles também são contaminados pelo tabu da humanização dos bichos. Hoje é obrigação ser politicamente correto até com os vira-latas. Hoje eles são chamados “cães sem raça definida”. Não há mais carrocinhas, mas “centros de controle de zoonoses”. E assim por diante.

Vou ser muito sério agora. Se você, domesticado dono de animal de estimação tivermos de sacrificá-lo porque foi desenganado – e, pior, tiver crianças em casa -, terá de enfrentar o seguinte dilema: ou proceder à execução sem dar maiores explicações, o que é encobrir a realidade, ou manter o bicho agonizando até morrer, e assim mostrar a pessoas imaturas como a vida é dura e triste. Você terá de optar por dois tipos de sacrifício. De qualquer das duas formas, não há religião que console quem sofre, com a promessa de um céu para cães e gatos. O que você faria no meu lugar? Eu continuo a alimentar a esperança de que Sissi viva. Vou enfrentar quaisquer das situações, mas minhas filhas não estão preparadas para isso. Elas e muita gente.

A mudança de condição dos mascotes, de animais de estimação a seres quase-humanos, requer uma mudança no plano ético e moral de nossa parte. Os antigos valores em relação aos animais já não valem mais nada. Talvez a solução seja criar um sistema legal, religioso e médico que nos ajude, animais e cidadãos, a prevenir os danos de sermos mortais.

Coluna publicada na Revista Época , em 18 de janeiro de 2011.

Nara de Campos Coelho comenta*

Sacrifício, resposta da vida

À luz do Espiritismo, vemos a vida como caminhada em direção a educação integral, com o objetivo do aperfeiçoamento que nos conduzirá à felicidade e à paz, desejo de todos.

Estamos, assim, envolvidos não só com o determinismo, que é fruto de nossas escolhas no Mundo Espiritual, mas com os detalhes da vida, que são consequências de nossas opções feitas aqui na Terra. Ambas geram dores e sacrifícios, em virtude do nosso atual grau evolutivo. Entretanto, se as primeiras são inevitáveis, as segundas não o são. E se podemos evitá-las, é claro que a inteligência nos conduz a fazê-lo!

A análise feita pelo jornalista Luís Antônio Giron, da Revista Época , sobre os sofrimentos por ele vividos, e que fazem parte da vida de milhares de pessoas, reflete o pensamento materialista que domina a maioria do nosso povo, ainda que este se intitule religioso. Tais situações, quando vistas sob o enfoque do Espiritismo, abrem-nos a mente para o bom senso, enfraquecendo o misticismo, que alimenta grande parte do imaginário brasileiro, bem como a superstição, que bloqueia o raciocínio. Eis que, com o Espiritismo, aprendemos que os Espíritos Bons, que são capazes de nos ajudar, não se prendem a aparatos materiais. São Espíritos. Por isto, a mensagem que os atinge é espiritual. Não se preocupam com os fatos de usarmos ou não fitinhas nos pulsos, de colocarmos crucifixo atrás da porta, de pularmos duas ou sete ondas, mesmo sendo o sete um número cabalístico… E quem não tem pernas para pular ondas? E quem não tem mar com ondas para serem puladas? E quem não sabe desta crendice? Ficarão todos abandonados e impossibilitados de agradar o Santo em questão? E que Santo é este que se vinga da incredulidade do jornalista, fazendo acontecer muitas tristezas em sua vida, destelhamento de sua casa, carro estragado e muito mais, culminando com a doença da cadelinha de estimação? A razão esclarecida rejeita tal procedimento, pois sabe que os Bons Espíritos e os Santos agem de conformidade com a Lei de Deus, que é de Amor. Deste modo, o que nos protege é o Bem que fazemos para o nosso próximo, incluindo o mal que deixamos de fazer e que gera outra atitude no Bem.

Em seu texto, o jornalista desabafa em tom jocoso, mas desabafa. Não compreende o sentimento das filhas, que não se prende aos padrões de comportamento imediatista e materialista, tipicamente moderno, e que ele alimenta. Se a cadelinha está muito doente e não presta mais seus serviços junto à família, por que não matá-la? Eis que sacrificar, quando diz respeito aos animais, nada mais é do que matar! Por que gastar dinheiro e cuidados se é apenas uma cadela? Escrevendo, o jornalista procura respostas, fala alto para que seu próprio coração ouça e possa se acomodar em algum lugar confortável, feito de respostas lógicas que o descanse das dúvidas.

Se ele recorresse ao Espiritismo, entenderia que os animais progridem “pela força das coisas,” como nos diz O Livro dos Espíritos , na questão 602, e mesmo não tendo uma alma tão inteligente como a do homem, eles têm alma, que sente, que registra o amor e o desprezo, fazendo com que se reflita em seu comportamento a atitude do dono. Por isto, a voz do povo diz que o “cão se parece com seu dono!” Aí talvez esteja o ponto mais delicado da relação do animal com seu dono: oferecer-lhe campo de evolução. Isto mesmo, o animal doméstico faz isto pelo homem…

Se o jornalista recorresse ao Espiritismo, entenderia que a mensagem de amor e disciplina que o dono transmite ao animal permanece-lhe na alma, transformando-o, lentamente, ao longo da eternidade. Suas filhas sofreriam o aprendizado, mas sem desespero, pois aprenderiam que a morte não é o fim de tudo e que a vida continua como processo de Justiça, Amor e Perdão Divinos, recolocando-nos em situações correspondentes aos nossos atos, ao longo de muitas reencarnações. Assim, elas não veriam seu animalzinho como “gente”, mas como um ser que é inferior ao homem e que não tem os mesmos deveres nem os mesmos direitos, pois não tem livre-arbítrio, mas que doa amor e precisa dele para fechar o ciclo de troca que a todos fortalece. Por isto, lembra-nos O Livro dos Espíritos , na questão 601: “Nos mundos superiores, os homens são mais adiantados e os animais também o são, dispondo de meios de comunicação mais desenvolvidos. Entretanto, são sempre inferiores e subordinados ao homem, para o qual representam servidores inteligentes.”

Por ser editor de uma coluna, chamada “Mente Aberta”, talvez não seja tão difícil ao jornalista acolher um posicionamento diferente do seu, como o proposto pelo Espiritismo, que nos diz que o acaso não existe e que todos os acontecimentos da vida, inclusive os sofrimentos, são consequências naturais da necessidade evolutiva de cada um, resultado das ações perpetradas em vidas passadas, das escolhas feitas no Mundo Espiritual e, ainda, das opções atuais, como já o dissemos, anteriormente. Eis que somos espíritos eternos, encarnando na Terra tantas vezes quanto às necessárias para o nosso aperfeiçoamento integral. E, quando tal se dá em nosso pensamento, caro leitor, nossos atos passam a ser conscienciosos e, por isto, seguros, lembrando que a consciência espírita é pautada no Evangelho de Jesus, livre de preconceitos, superstições e misticismos, conduzindo-nos ao amadurecimento espiritual que nos libertará dos sofrimentos evitáveis, fortalecendo-nos para enfrentar os inevitáveis, por serem estes, ainda, indispensáveis à nossa evolução moral.

Enfim, com o Espiritismo, sabemo-nos viver sob a Lei Divina de Causa e Efeito, razão pela qual a vida responde-nos com sacrifício ou felicidade. A escolha é nossa!

  • Nara de Campos Coelho, mineira de Juiz de Fora, formada em Direito pela Faculdade de Direito da UFJF, é expositora espírita nos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, articulista em vários jornais, revistas e sites de diversas regiões do país.