Carregando...

  • Início
  • As mães não deveriam morrer

Quando perdemos alguém que amamos, a dor é tão extravagante que nos come vivos, como se fosse uma daquelas formigas africanas que vemos nos documentários da National Geographic. A dor está lá quando acordamos. Continua lá quando respiramos. Marcia Leal Jek comenta.

  • Data :07 Nov, 2010
  • Categoria :

As mães não deveriam morrer

Resta-nos o movimento que transforma dor em saudade

Eliane Brum

Uma amiga perdeu a mãe, de repente. A notícia me alcançou por e-mail, agora que a internet deixou o mundo pequeno. Estou longe, mas também aqui, neste lugar sem distância que é o mundo virtual. Mas com tempo veloz, em que uma hora pode ser um pretérito definitivo na disputa pela supremacia dos segundos. Como era antes, quando as notícias levavam meses para chegar e o mundo sobre o qual falavam já tinha inteiro se transmutado, quando as cartas eram sempre um retrato do passado? Agora tudo é agora. E os tempos se confundem de outro modo. Mas se confundem.

Senti tanto o desamparo da minha amiga, porque sei que as mães não deveriam morrer. Na mesma noite sonhei com meus mortos. Meu avô sentava-se com minha avó ao redor da mesa da cozinha como antes e como nunca, porque meu avô sabia que minha avó tinha morrido e eu sabia que meu avô tinha morrido uns 20 anos depois dela. E uma quarta pessoa, desconhecida de todos nós reunidos naquela cozinha, sabia que eu também já tinha morrido, numa outra época que ainda não chegou para mim. Mas comíamos bolinhos de chuva naquela mesa porque compreendíamos que, no curto espaço de existência, neste soluço entre o nascimento e a morte que pertence a cada um de nós, nem os sonhos devem ser desperdiçados. E ali, enquanto eu dormia num quarto de hotel, éramos uma impossibilidade lógica que conversava e que ria.

Quando perdemos alguém que amamos, a dor é tão extravagante que nos come vivos, como se fosse uma daquelas formigas africanas que vemos nos documentários da National Geographic. A dor está lá quando acordamos. Continua lá quando respiramos. Nos espreita do espelho diante do qual escovamos os dentes pela manhã com um braço que pesa uma tonelada. E, quando por um instante nos distraímos, crava seus dentes bem no coração. Neste longo momento depois da perda, sabemos mais dos buracos negros do que os astrônomos porque carregamos um dentro de nós. E arrancamos cada dia nosso do interior de sua boca ávida, com uma força que não temos, para que não nos sugue de dentro para dentro.

Devagar, bem devagar, muito mais devagar do que o mundo lá fora nos exige, o vazio vai virando uma outra coisa. Uma que nos permite viver. Descobrimos que nossos mortos nos habitam, fazem parte de nós, correm em nossas veias fundidos a hemácias e leucócitos. Que suas histórias estão misturadas com as nossas, que seus desejos se deixaram em nós. Que, de certo modo, somos muita gente, multidão. Como também nós seremos em muita gente, deixando, em cada um, ecos de diferentes decibéis e intensidades. Acolhemos então aquele que nos falta de uma forma que nunca mais nos deixará. Como saudade. E como saudade não poderá mais partir.

Somada, a vida humana é um rio barulhento de memórias no leito do tempo. Enquanto outras espécies sabem, sem que ninguém tenha ensinado, que precisam voar para o sul para não sucumbir no inverno ou que devem escalar dezenas de metros de uma árvore em busca da fêmea para se acasalar num momento preciso, nós perpetuamos lembranças. Não é uma intuição prática, no sentido ordinário do termo. Mas é tão vital quanto o acasalamento ou a fuga do inverno.

Assim como a natureza tece mil expedientes para perpetuar seus genes, pertençam eles a um chimpanzé ou a uma mosca; nós, cuja diferença evolutiva nos permitiu inventar a cultura e ser na cultura, perpetuamos a vida através da memória. Já que, para nós, não há vida sem a consciência da vida. Transmitimos as histórias, o conhecimento e os sentimentos dos que se foram, tanto como humanidade quanto como indivíduo, como se fossem parte de um DNA imaterial. Do contrário, seria impossível conviver com o privilégio de nossa espécie, a consciência do fim.

Quem não entende isso acha que, quando doamos as roupas e os objetos de quem amamos e se foi ou deixamos de chorar no cemitério, superamos a perda. Não acredito que exista superação no sentido do esquecimento. O que acontece é que compreendemos que aquela pessoa não estará mais no mundo externo, não pertence mais a ele. Mas também não é mais um vazio que grita como nos primeiros meses, às vezes anos. Ela agora mora no mundo de dentro, vive como memória nossa, em nós. E assim não está mais morta, mas viva de um outro jeito. É o que me ensina João, o homem que divide comigo a aventura arriscada de viver. De luto por sua própria mãe, percebo que a carrega nos olhos quando se maravilha com a novidade do mundo.

Ele me ensina que a vida dos mortos em nós não é possessão nem fantasma. Nem é morte. O mórbido é quando não conseguimos dar um lugar vivo para o morto. Então a memória fica pregada naquele momento de horror e a vida se torna impossível, porque a existência não é água parada, mas rio que corre. Acontece quando alguém, pelos mais variados motivos, não consegue fazer o luto e dar um lugar de saudade para a dor. Quando nos fixamos, num dogma ou numa falta, partes importantes de nós gangrenam. Mas quando os mortos se acomodam em nós como lembrança que muda segundo o viver de quem vive, tudo flui. Se há algo que a vida é em essência é movimento. E o luto é um movimento que reabre as portas para a vida ao romper com a rigidez da morte em nós. Por isso, para o luto não pode haver pressa, porque é grande e largo o gesto que temos de fazer acima e apesar do horror que nos atinge até mesmo em partes que nem sabíamos que existiam.

Quando perdeu a mãe, João compreendeu por completo a poesia que Carlos Drummond de Andrade escreveu para a poeta Ana Cristina Cesar, que se suicidou aos 31 anos atirando-se pela janela do 13° andar. Ela fala da diferença entre falta e ausência. “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” É isso. A ausência não é falta. Ou, dito de outro modo, a falta nos come vivos. A ausência, por paradoxal que pareça, nos preenche.

Há um filme de extraordinária beleza sobre a perda, a saudade e o lugar dos mortos em nós. Chama-se “Hanami – Cerejeiras em flor” (Doris Dörrie, 2008 – Alemanha/França). Passou nos cinemas, ainda resiste numa sala ou outra, mas já assisti ao filme na TV por assinatura. Se você encontrar este nome na programação, não deixe de ver. Feche as cortinas, proteja-se do barulho da rua, programe-se para algo especial. O filme conta a história de um homem que não gosta de sair da rotina em sua viagem mais longa e menos previsível. Ele parte em busca de sua mulher e só a encontra quando descobre que ela está dentro dele, nos gestos dele, no corpo e nos olhos que ele empresta a ela. É um filme sobre a morte que nos leva ao único lugar onde vale a pena chegar, à vida.

Quando sofremos uma grande perda ou somos abalroados por uma catástrofe pessoal de outro gênero, as pessoas dizem, para nos consolar e com as melhores intenções, que tudo passa. Acho que, na verdade, nada passa. A frase mais precisa seria que tudo muda. Também nós que aqui estamos como matéria um dia seremos apenas eco. Tanto pelas nossas células que alimentam e se agregam a outros seres vivos a partir da decomposição de nosso corpo como pelas histórias que transmitimos e permanecem além de nós. Aquela que fui ontem já mudou, a ruga que há um ano não existia agora é visível na pálpebra direita, minha percepção do mundo não é mais exatamente a mesma do mês passado, alterada por novas experiências que me alargaram. De certo modo, nascemos e morremos tantas vezes até o fim da vida. E é este o movimento que importa.

Queria dizer isso à amiga que perdeu a mãe de repente. Mas agora minha amiga ouve, mas não pode escutar. A dor a está comendo viva como as formigas africanas. Tudo é horror e absoluto. Mas com o tempo, um período só dela e que não pode ser determinado em parte alguma nem por ninguém, minha amiga vai começar a perceber que a mãe é uma ausência presente no formato das suas unhas, num certo jeito de mexer a cabeça quando fala, na tonalidade rara dos olhos. Está nas palavras e nas histórias que conversam dentro dela, na mitologia familiar que se perpetua, nos sons da memória. E então poderá reencontrar a mãe dentro dela. E levá-la para passear.

E, num dia que sempre chega, viverão as duas como história, como cacos de lembranças encaixados em diferentes rearranjos de vitrais, na vida dos que vieram depois. É pouco, talvez. É tudo o que temos.

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

Artigo publicado na Revista Época , em 18 de outubro de 2010.

Marcia Leal Jek comenta*

Quando abordamos esse assunto, tudo parece ficar mais sombrio. E quem já perdeu algum ente amado, principalmente se a morte ainda é muito recente, fica com o coração apertado e os olhos marejados de lágrimas.

Quem ainda não passou pela experiência de perder alguém? Estamos preparados para morrer? Será que nos sentimos amadurecidos para receber a notícia que os dias de vida de nossa mãe, na Terra, estão contados?

Muitas pessoas não conseguem se conformar com a perda e apresentam ainda o coração bastante angustiado. Uns se revoltam, outros se sentem surpresos, alguns têm uma aceitação passiva, muitos choram convulsivamente e há aqueles que até riem. A maioria das pessoas não se encontra preparada para a morte. O medo é inerente à própria condição de criaturas encarnadas que somos.

Em nossa caminhada, encontramos também muitos espíritas que afirmam que têm medo da morte. Mas como justificar este medo perante o conhecimento da doutrina? O espírita é uma pessoa comum, que possui um conhecimento de doutrina, e a fé é uma construção individual. Este medo ocorre com todos, inclusive aos espíritas. Assim como temos espíritas com dificuldades nas mais diferentes áreas da personalidade, temos também os que apresentam verdadeiro pavor diante da morte, mesmo com todo conhecimento doutrinário.

Sabemos que não é fácil perder um ente amado, pois a saudade perdura um bom tempo. Nunca os esqueceremos, com certeza. Porém, temos que seguir adiante e procurar ajudar esse ser querido com nossas preces e vibrações para que ele consiga adaptar-se mais facilmente à dimensão espiritual onde agora se encontra. Toda a religião espiritualista tem em comum a crença na imortalidade da alma. No entanto, o Espiritismo difere das demais, porque nos mostra que a alma após a morte mantém sua individualidade, se aperfeiçoa e evolui pela reencarnação e existe a comunicação entre os que se encontram no Mundo Espiritual e aqueles que se encontram no mundo material.

Mas o que fazer com a separação dos entes que amamos? Que de profundo e verdadeiro há no sofrimento de um filho que vê sua mãe querida desencarnar? Em que extremos de angústia se consomem esse coração? É exatamente porque os amamos que queremos sempre tê-los junto a nós. Isto não precisa de explicação, é natural. Nós somos humanos e não anjos na face da Terra. Vivemos em função dos outros. Tudo o que fazemos na vida tem como referência o outro. Se o outro que amamos se vai, como não sentir? O que dirá se esse outro for a nossa mãe.

A morte representa o abandono do corpo físico pelo espírito, à medida que o corpo físico não apresenta mais condições vitais adequadas para sua manifestação. Morrer, portanto, é um ato de libertação para a verdadeira vida, a vida espiritual. Esta é a perspectiva fundamental a ser compreendida, somos seres espirituais que vestimos temporariamente um corpo físico e não seres carnais que temos um espírito. Não temos um espírito, somos um espírito. O corpo físico, na realidade, é uma roupa emprestada que com o uso necessita ser devolvida a sua origem.

Com isso, não morremos, e sim desencarnamos. Desencarnação, no significado etimológico da palavra, é a ação de sair do corpo de carne. A obra de André Luiz(1) nos dá detalhes, numa forma ampla de relatos, de várias desencarnações. Vamos encontrar no livro Entre a Terra e o Céu(2) que os Espíritos mostram várias pessoas desencarnando, e quem desencarna melhor, curiosamente, não são pessoas espíritas, e sim pessoas católicas e evangélicas, mas não podemos generalizar, porque são casos específicos. Mas também temos obras psicografadas por Divaldo P. Franco(3) nos mostrando a situação afetiva de muitos espíritas no mundo espiritual.

O Céu não é insensível aos apelos aflitos dos que choram na Terra. Entretanto, na comunicação entre os dois mundos, precisamos vencer certas dificuldades de natureza emocional e psíquica.

O que temos então a fazer é compreender melhor o fenômeno da morte, nos especializar em obter informações sobre a desencarnação. Lembrando que morrer é relativamente fácil, desencarnar já é um pouco mais difícil, porque a morte é um esgotamento da energia vital e a desencarnação é o desligamento do espírito em relação ao corpo.

O conhecimento de que a vida continua após a morte nos traz uma maior resignação para aceitá-la sem revoltas, ajudando em nosso equilíbrio. Agora, o desconhecimento das realidades espirituais, a incerteza quanto ao reencontro com os entes amados, o fato de não sabermos o estado em que eles estão são fatores que aumentam a dor e o desespero.

Quando chega a hora de alguém “partir”, nada podemos fazer. Todos nós temos um tempo determinado para viver aqui na Terra, e quando ele finda é hora de dizermos adeus e procurar ter resignação. Mesmo que a saudade seja intensa e acharmos que a vida perdeu o sentido sem a presença do ser querido.

A morte física apenas nos separa transitoriamente de nossos entes queridos, mas, quando também chega a nossa hora de partir, eles estarão nos esperando com todo o amor que sempre nos dedicaram durante a vida terrena. Essa certeza é um grande consolo para nós.

Sabendo que a desencarnação é inevitável para nós, devemos nos preparar para ela, vivendo cada instante, uns com os outros, como se fosse o último, aprendendo e compartilhando conhecimentos. Amando, perdoando e servindo ao bem comum.

Guardemos nosso coração em paz e estejamos certos de que é dentro de nossa própria alma que temos de ver e ouvir os que verdadeiramente amamos, cuja imagem e cuja voz devem vibrar no íntimo de nós mesmos.

Fontes:

(1) André Luiz é o nome atribuído pelo médium Chico Xavier a um dos espíritos mais frequentes em sua obra psicografada;

(2) Livros psicografados por Chico Xavier que são assinados por André Luiz: Nosso Lar, Os Mensageiros, Missionários da Luz, Obreiros da Vida Eterna, No Mundo Maior, Libertação, Entre a Terra e o Céu, Nos Domínios da Mediunidade, Ação e Reação, Evolução em Dois Mundos, Mecanismos da Mediunidade, Sexo e Destino, E a Vida Continua…;

(3) Divaldo Pereira Franco, mais conhecido como Divaldo Franco ou simplesmente Divaldo (Feira de Santana, 5 de maio de 1927) é um professor, médium e orador espírita brasileiro.

  • Marcia Leal Jek estuda o Espiritismo há mais de 25 anos e é trabalhadora do Centro Espírita Francisco de Assis, em Jacaraipe, Serra, ES.