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Cada experiência vivida pela mulher no contexto de sua feminilidade (a primeira menstruação, o primeiro beijo, as boas e as más experiências amorosas etc.) marca sua forma de ser como pessoa e como mulher. Mas o aborto costuma ter outro peso. Claudia Cardamone comenta.

  • Data :24 Apr, 2010
  • Categoria :

O aborto dura para sempre

Por que nenhuma mulher sai incólume dessa experiência

Cristiane Segatto*

Li nesta semana um livro interessante. Chama-se Segredos de Mulher: Diálogos entre um ginecologista e um psicanalista (Editora Atheneu). Nesses tempos em que tantos médicos ainda insistem em tentar tratar o corpo sem levar em consideração a mente, a iniciativa de Alexandre Faisal Cury (o ginecologista) e Rubens Marcelo Volich (o psicanalista) é enriquecedora. Gente não é maçã. Não pode ser dividida ao meio e entendida como duas metades estanques (corpo de um lado, mente de outro). Somos tudo ao mesmo tempo agora.

Alexandre fez pós-doutorado no Núcleo de Epidemiologia do Hospital Universitário da Faculdade de Medicina da USP. Rubens é doutor pela Universidade de Paris VII e professor do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. No livro, eles discutem casos reais (sem identificar as pacientes) e se propõem a tentar decifrar a mulher em toda sua complexidade.

O capítulo sobre aborto é especialmente revelador. Rubens observa que nenhuma mulher sai incólume da experiência do aborto, por mais pertinentes que sejam os motivos para justificá-lo. Um aborto dura para sempre. É uma experiência que deixa marcas emocionais profundas.

Cada experiência vivida pela mulher no contexto de sua feminilidade (a primeira menstruação, o primeiro beijo, as boas e as más experiências amorosas etc.) marca sua forma de ser como pessoa e como mulher. Mas o aborto costuma ter outro peso. “Ele se constitui uma experiência de perda, mesmo quando a mulher conscientemente decide pela sua realização”, diz Rubens. “No futuro, ela poderá pensar no que poderia ter acontecido caso decidisse levar a gravidez adiante, poderá imaginar como seria o filho que não teve ou mesmo questionar se tomou a melhor decisão”.

No consultório de ginecologia, Alexandre observa que esse registro emocional não é uniforme, único ou invariável. O aborto é vivido e relembrado, no futuro, segundo as condições e características de cada mulher. Muitos anos depois do aborto, algumas mulheres vão encará-lo como algo triste, mas necessário. Para outras, ele pode se transformar num drama sem fim.

Se, do ponto de vista emocional, o aborto dura para sempre, o que as mulheres podem fazer para superar essa experiência? Rubens diz que a possibilidade de superar vivências difíceis (relacionadas ou não à feminilidade) depende essencialmente dos recursos que a mulher (e, claro, também o homem) desenvolveu ao longo da vida para lidar com frustrações, perdas, conflitos e, até mesmo, com situações de satisfação e prazer.

Alexandre cita dois fatores que têm grande importância na forma como a experiência do aborto ficará registrada. Esses fatores dependem menos da mulher e mais do contexto social. Se ela teve apoio do parceiro, talvez consiga lidar melhor com a experiência do aborto. O outro aspecto é o caráter de ilegalidade.

A mulher que aborta no Brasil se torna, da noite para o dia, uma criminosa. “Nos países em que o abortamento é permitido por lei, a mulher encontra adequada assistência médica, psicológica e hospitalar e as coisas tendem a ser mais fáceis”, diz Alexandre. “Numa crise de vida como essa, o que menos a mulher precisa é de alguém culpando-a ou desamparando-a”, diz Alexandre.

Reproduzo aqui trechos do diálogo entre Rubens e Alexandre extraídos do livro. Eles discutem o caso de Estela, uma moça de 19 anos que engravidou de um namorado 12 anos mais velho. Ela cursava o primeiro ano de Administração e decidiu fazer um aborto. Ela morava com os pais e, apesar de ter um bom vínculo com eles, não queria que soubessem da gravidez. Dizia que a mãe, evangélica, não aceitaria o aborto. Achava que talvez o pai o aceitasse melhor.

Alexandre Faisal : Ao que parece, Estela não ficou muito perturbada com a experiência do aborto. Pelo contrário, ficou satisfeita por tê-lo realizado.

Rubens Volich : Aparentemente sim. Você a encontrou cerca de três semanas após o aborto. Muitas vezes, para suportar algumas situações difíceis, é melhor não ter contato ou pensar naquilo que amedronta ou perturba. Estela disse que não gostava de falar sobre o assunto, que era melhor não pensar nele, virar a página. Isso não impede que ela, como qualquer mulher, vivesse inconscientemente os efeitos dessa experiência. No contexto de uma consulta médica, nem sempre esses efeitos inconscientes são perceptíveis. Porém, em um processo psicoterapêutico, são visíveis os conflitos e a intensidade dos sentimentos mobilizados pelo aborto, por mais justificada que seja a decisão de interromper a gravidez.

Alexandre Faisal : Que tipo de conflitos?

Rubens Volich : Conflitos relacionados a experiências e representações que a mulher tem da maternidade, suas vivências infantis e sua relação com a própria mãe, bem como a maneira como foi cuidada como criança. Surge frequentemente a culpa com relação ao filho que não pôde nascer, com relação ao pai da criança, por tê-lo privado de um filho, além de dúvidas quanto à possibilidade de uma futura gravidez e o medo de ser punida com a infertilidade pelo ato que praticou. Enfim, uma grande variedade de fantasias.

Como mulher e jornalista, gostaria de ver o tema do aborto seriamente discutido no Brasil. Essa é a mais emocional das questões políticas e morais que dividem o país. Pouco depois de assumir o Ministério da Saúde, o médico José Gomes Temporão defendeu, em abril de 2007, a realização de um plebiscito para discutir se o aborto deveria ser legalizado. Nunca mais se falou no assunto. Abafaram o caso.

Nenhuma mulher - rica ou pobre - gosta da ideia de abortar. Nenhuma mulher sai emocionalmente ilesa dessa experiência. Mas as mulheres pobres sofrem mais.

Abortos sem atendimento médico adequado provocam hemorragias graves, perda do útero e morte. Eles são a terceira causa de mortalidade materna no Brasil. A cada ano, 220 mil mulheres procuram o SUS para fazer raspagens do útero (curetagem), necessárias depois do aborto.

Quando uma mulher se submete a um aborto, tem uma razão de foro íntimo muito forte. Na minha opinião, não cabe a ninguém que assista o drama à distância, ser a favor ou contra o aborto. O razoável é dizer que cabe à mulher decidir. Como já disse aqui, numa coluna publicada no ano passado, não me parece justo que todas as cidadãs tenham de se submeter a dogmas religiosos que não sejam os seus. Em outras palavras: a fé só faz sentido para quem a tem.

Qual é a sua opinião? Você acha que, emocionalmente, o aborto dura para sempre? Ele deveria ser legalizado no Brasil?

(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)

  • Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo.

Coluna publicada na Revista Época , em 23 de abril de 2010.

Claudia Cardamone comenta*

“Nenhuma mulher - rica ou pobre - gosta da ideia de abortar. Nenhuma mulher sai emocionalmente ilesa dessa experiência.”

Este foi o artigo mais sensato que li a respeito do assunto, porque normalmente ele é sempre emocionalmente carregado ou por quem é contra e condena esta prática, ou por quem defende esta liberdade de escolha. Mas eu não quero entrar na questão da legalidade ou não, porque o aborto não é certo, é crime. E o fato de ser crime não impede ninguém de fazê-lo, apenas deverá arcar com as consequências, sejam quais forem.

Quero falar sobre estas mulheres que são sim julgadas como criminosas, porque o aborto é um crime perante a lei natural, está na questão 358, de O Livro dos Espíritos . Mas quem somos nós para condenar alguém por um aborto feito? Sabemos das razões? Se nos achamos melhores ao ponto de jamais fazer algo assim, não somos ao ponto de exercer a tolerância e a caridade com quem ainda não progrediu como nós.

Imagina uma mulher que carrega a culpa por ter feito um aborto em sua juventude. Os motivos não são importantes, porque se ela sente culpa é porque reconheceu o erro e se arrependeu, pelo menos de forma geral. Ela então busca conforto numa Casa Espírita, não necessariamente para esta angústia, mas ouve que este é o pior crime a ser feito por alguém, é a pior das atrocidades que um ser humano pode cometer, porque esta mãe demonstra ser fria, só se importando com os bens e prazeres materiais, etc.

Eu não falo teoricamente, vi isto ocorrer. Se a Casa Espírita é, como dizem, a enfermaria da alma, como esperar que esta pessoa encontre consolo e esclarecimento com discursos deste tipo?

Aquela mulher, seja por que motivo for, terá sua alma marcada pela experiência do aborto e, como disse Alexandre, no artigo, “numa crise de vida como essa, o que menos a mulher precisa é de alguém culpando-a ou desamparando-a”. Principalmente numa Casa com o princípio de que fora da caridade não há salvação.

O ato deve ser condenável, assim como é o assassinato, o roubo, a extorsão, mas não devemos condenar a mulher que fez esta escolha, a não ser que tenhamos conhecimento das causas, das intenções, das relações que tinha com este espírito que iria reencarnar, com as causas em vidas passadas…

O Espiritismo não é a doutrina do não. Não estamos aqui para dizer ao outro o que ele pode ou não fazer, mas estamos aqui para esclarecer o que ele deve ou não fazer, mostrar-lhe o significado e quais as consequências do que vai fazer. Se ele já fez, não cabe a nós condenar, mas esclarecer sobre as responsabilidades que virão e como será possível expiar um erro ainda aqui na Terra. E expiar não é sofrer, é fazer o bem.

Vamos parar de ver esta mulher como alguém fútil, sem coração, e vamos abraçá-la para que ela encontre conforto e força para o seu arrependimento e para expiar este erro, que não é mais do que um erro da vida material.

“Amar ao próximo como a si mesmo; fazer aos outros como quereríamos que nos fizessem”, eis a expressão mais completa da caridade. (O Evangelho segundo o Espiritismo , Allan Kardec.)

  • Claudia Cardamone nasceu em 31 de outubro de 1969, na cidade de São Paulo/SP. Formada em Psicologia, no ano de 1996, pelas FMU em São Paulo. Reside atualmente em Santa Catarina, onde trabalha como artesã. É espírita e trabalhadora da Associação Espírita Seareiros do Bem, em Palhoça/SC.