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Por que determinadas pessoas escapam da morte em acidentes aéreos, naufrágios e incêndios? Ao recontar histórias de sobrevivência em situações extremas, novo livro revela como é possível aumentar as chances de driblar o impensável. Jorge Hessen comenta.

  • Data :25/03/2009
  • Categoria :

“Sobrevivi”

Por que determinadas pessoas escapam da morte em acidentes aéreos, naufrágios e incêndios? Ao recontar histórias de sobrevivência em situações extremas, novo livro revela como é possível aumentar as chances de driblar o impensável

Às 18h48 do dia 17 de julho de 2007, o gerente de informação Paulo Roberto Zani estava pronto para deixar o seu trabalho no prédio da TAM Express, em frente ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Antes, porém, resolveu ir ao banheiro. No caminho, ouviu um barulho de turbina de avião excessivamente próximo. “Não deu tempo de fazer nada. Só foi possível perceber que era uma aeronave.” Um Airbus da própria empresa havia se chocado com o prédio. Todos os 187 ocupantes do avião morreram. Em terra, mais 12 pessoas perderam a vida. Mas Zani sobreviveu. Sorte?

Não somente. Como você descobrirá a seguir, é possível fazer mais do que torcer para estarmos na poltrona certa no avião, termos erguido a nossa casa com as fundações apropriadas ou feito um trajeto que evitou os assaltantes armados que montaram uma emboscada numa esquina qualquer.

Não importa a dimensão da tragédia, sobreviver também é uma questão de preparação. “Na hora em que somos postos à prova, podemos superar os obstáculos com treinamento e informação. A atitude também é importante. Há evidências de que quem acha que conseguirá superar os obstáculos antes de ser posto à prova em geral consegue. Tendemos a superestimar os papéis da sorte, do governo e do destino, em vez de superestimar o lugar do nosso próprio papel”, diz Amanda Ripley, autora de “Impensável - Como e Por que as Pessoas Sobrevivem a Desastres”, recém-lançado no Brasil pela Editora Globo, que frequentou a lista dos mais vendidos do jornal “The New York Times” e da livraria online Amazon por algumas semanas.

A autora defende que, qualquer que seja o desastre, partimos praticamente do mesmo ponto e passamos por três fases distintas daquilo que ela chama de “arco da sobrevivência”. A primeira etapa é a da negação, na qual tentamos achar formas de provar para nós mesmos que aquilo não está acontecendo. A duração desse processo depende do tempo que levamos para calcular riscos. Vencido o choque inicial, passamos para a deliberação, fase em que notamos que algo está incrivelmente fora da ordem e passamos a ponderar sobre as opções possíveis. Por fim, com a aceitação do fato de que estamos em perigo e com a contemplação de soluções, chega a hora da fase final, a da ação.

Segundo Ripley, treinamento e informação envolvem as medidas mais básicas, como ler o folheto com as normas de segurança na poltrona da frente no avião ou participar ativamente e com interesse dos simulados de incêndio no escritório. Estratégias simples como essas ajudam o condicionamento mental, o que, por sua vez, desenvolve nossa personalidade para enfrentar desastres. Quanto mais bem preparados estamos, maior é a probabilidade de essa personalidade assumir o comando das nossas atitudes durante uma catástrofe.

À preparação mental juntam-se aquelas características com as quais os humanos já vêm equipados. Ao longo da evolução, nosso corpo “aprendeu” a despejar uma grande quantidade de hormônios e a aumentar o batimento cardíaco para melhorarmos nossa performance diante do perigo. Mesmo esses atributos inatos podem ser mais bem direcionados. Afinal, evoluímos para fugir de predadores, e não para resistir a um desastre aéreo.

Repórter da revista “Time”, Ripley se debruça sobre o tema desde 11 de setembro de 2001, quando cobriu os atentados às torres do World Trade Center. Desde então, entrevistou sobreviventes de outras tragédias, ouviu especialistas sobre o que acontece com o cérebro diante do medo, teve acesso a pesquisas militares revelando as características de quem consegue agir sob pressão emocional intensa e conversou sobre preparação mental com policiais, pilotos de aeronaves e militares.

Apesar da variedade das fontes, havia alguns pontos em comum nos relatos. A maioria dos entrevistados pela repórter disse que, diante da situação de crise, nada aconteceu da maneira como eles imaginavam ou tinham visto no cinema. Outro ponto de consenso: quem já enfrentou uma catástrofe diz que há uma série de coisas que gostaria de saber antes de encarar a situação.

Choque e reação

Nos EUA, as comissárias de bordo são treinadas a berrar com os passageiros nos casos de emergência. Estudos mostram que um ruído alto tem o poder de tirar as pessoas do estupor. Talvez por ter começado com um barulho ensurdecedor, a experiência de Paulo Roberto Zani no prédio da TAM Express, em frente ao aeroporto de Congonhas, não permitiu que ele ficasse paralisado.

Além disso, Zani teve outra reação típica em uma tragédia, também elencada por Ripley em “Impensável”: a negação de tudo que estava acontecendo à sua volta. “Eu pensava que aquilo não estava acontecendo. Não tinha caído a ficha. Achava que era algo sem importância e que ia sair dali rapidamente.” Zani diz que pensou na mulher, nas filhas, no pai. “Senti a gravidade do acidente e decidi que não ia ficar ali, que não iria morrer.” Seu comportamento é comum entre sobreviventes. Pesquisas mostram que muitos deles só driblam o impensável ao lembrar de seus familiares.

Depois disso, bolou a sua rota de fuga. As pessoas presas no prédio passaram a correr, tentando se afastar de onde vinha o som. No fundo do escritório, as paredes começaram a cair, enquanto uma fumaça negra invadia o local, e a temperatura aumentava. A essa altura, Zani já não conseguia respirar. Neste momento, conseguiu encontrar o amigo Wanderlei Ferreira da Silva. Ambos jogaram-se ao chão imediatamente, onde ainda existia uma coluna de ar sem fumaça, medindo aproximadamente um metro.

No final do corredor, encontraram uma sala que não tinha sido danificada pelo impacto. Nesse ponto do prédio, já dava para respirar de pé e havia janelas, logo quebradas por eles. A agonia aumentava com a temperatura e a fumaça. Depois de 20 minutos, um caminhão dos bombeiros chegou para resgatá-los. Mas a escada do veículo estava quebrada e não conseguia chegar até as vítimas. Já era possível ouvir as janelas dos andares inferiores explodindo com o calor.

Sem saber como progredia o incêndio, a idéia de pular começou a tomar conta de Wanderlei. “Rezamos, mas ele foi se debilitando. Eu tinha certeza de que tudo iria dar certo e de que faltava pouco.” O pouco oxigênio ia consumindo as energias dos dois. Mas Zani acreditou durante todo o tempo que ia sair dali. Pesquisas recentes mostram que pessoas confiantes tendem a se dar muitíssimo bem em catástrofes. Sua forma de pensar atenua os efeitos devastadores do medo extremo.

Demorou mais dez minutos até que o caminhão dos bombeiros resgatasse os dois amigos. Quando estava no cesto do veículo, o gerente, que havia se mantido sob controle desde o momento do impacto, desabou emocionalmente. “Estava segurando uma tensão e, quando senti que estava seguro, desmontei.” Todos os 187 ocupantes do avião morreram. Em terra, mais 12 pessoas que estavam no edifício perderam a vida. Zani continua morando em São Paulo e trabalhando com tecnologia da informação, mas agora para outra empresa.

Paralisia mortal

Diante do desfile de horrores decorrente de uma tragédia, boa parte das pessoas fica simplesmente paralisada. A horda de vítimas pode ficar dócil e quieta. Essa reação ceifou muitas vidas no World Trade Center durante o 11 de Setembro. A divulgadora cultural brasileira Adriane Bonato, presidente da empresa Big Brazil, estava lá e viu isso acontecer. Ela tinha de assinar um contrato para a realização de uma festa no restaurante Windows of the World, que ocupava os andares 106 e 107 do WTC. Como chegou cedo para o encontro, foi fazer hora no café que uma amiga mantinha na Canal Street, a duas quadras dali. Chegada a hora da assinatura, Adriane subiu até o 114º andar. Ao chegar, foi avisada pela amiga que esquecera o contrato no café. Tomou o elevador e, quando estava no 15º andar, ouviu um estrondo. O primeiro avião tinha se chocado com o 115º andar da torre em que ela estava.

Ficou tudo escuro, o elevador parou, e a única luz que sobrou era a de emergência, no topo da cabine. Adriane estava ali com mais seis pessoas. O pânico foi inevitável, principalmente porque um senhor começou a passar mal. Claustrofóbica, a brasileira viveu momentos de agonia total. “A gente não tinha a menor idéia do que estava acontecendo do lado de fora. Começamos a ter um pouco de noção porque começamos a ouvir a movimentação e pessoas gritando ‘fire!’ [fogo].” Apesar disso, ela e mais uma pessoa mantiveram a calma (delas e dos demais confinados no elevador) até que os bombeiros abrissem a porta.

Mesmo com esses avisos, muitos permaneceram imóveis. Alguns animais agem da mesma forma quando se sentem numa situação sem saída. O instinto de sobrevivência os induz a se fingir de mortos para dissuadir seus predadores. No caso do WTC, a paralisia foi um erro fatal. Sob estresse, nosso cérebro procura por uma resposta que garanta sobrevida. Nem sempre escolhe a mais eficaz. Mas ele pode ser treinado, sobretudo contra a paralisia. Testes de laboratório mostram que, por meio de alterações na amígdala - parte do cérebro que controla o medo -, ratos perderam o temor até por gatos.

Adriane nunca tinha usado a escada de emergência, mas sabia onde ela ficava por conta do tempo em que trabalhou como guia turística no prédio. O grupo do elevador juntou-se rapidamente aos demais que desciam as escadas, alguns cobertos por um misto de poeira e sangue. Mesmo com tudo isso acontecendo, ela lembra que havia um clima de normalidade. Adriane só se deu conta de que era um avião que tinha batido na torre quando saiu do prédio. “Deparei com um monte de corpos estatelados, coisas que eu só tinha visto uma vez na minha vida… e em filme. Mas o que mais me impressionou foi quando me virei para o prédio e vi o povo se jogando. Foi nesse momento que eu entrei em estado de choque. Eu não acreditava naquilo que estava vendo.”

Segundo Amanda Ripley, um fato comum em calamidades é o “desligamento” da memória e dos sentidos em determinados momentos. Adriane vivenciou exatamente isso. “Perdi totalmente a noção do tempo. Acredito que fiquei 8 minutos dentro daquele elevador. Só depois consegui fazer um cálculo do intervalo, baseando-me no horário em que o avião bateu no prédio.”

A multidão desesperada derrubou a brasileira, que acabou pisoteada. Ela, que não havia se machucado por conta do ataque, teve os ligamentos do joelho rompidos e um desvio de patela. Ficou no chão até que alguém - que ela diz não saber se foi um paramédico, um policial ou um civil - a levantou do chão. “Daquele momento pra frente, era como se minha cabeça tivesse fechado. Comecei a andar meio sem rumo. Passei a seguir as pessoas. Era um monte de gente andando em fila, sem saber o que dizer. Foram horas assim.” Sem saber em quanto tempo, ela percorreu as 80 quadras que separam a região outrora ocupada pelas torres e a casa onde morava, no bairro de Queens. Passado o trauma, Adriane voltou ao Brasil e vive hoje em Curitiba. Continua presidindo a Big Brazil e viaja constantemente para os EUA.

Pânico e instinto

“As pessoas morrem do mesmo jeito que vivem, com amigos, pessoas queridas e colegas, enfim, em comunidade.” Quem afirma isso é o sociólogo especializado em desastres Lee Clarke. Com isso ele justifica o fato de que, mesmo nos momentos mais caóticos, a maneira como construímos e mantemos os nossos relacionamentos continua a mesma.

O engenheiro elétrico brasileiro Wagner Andolfato de Souza descobriu isso de um jeito doloroso. No dia 24 de agosto de 2005, ele embarcou no vôo 204 da Tans, uma companhia aérea peruana, para transpor os 800 km que separam Lima de Pucallpa, onde iria instalar um sistema de automação para uma indústria madeireira. Ele era um dos 98 ocupantes do avião. A viagem transcorria tranquilamente quando, passados pouco mais de 45 minutos, o piloto avisou que em instantes pousariam no aeroporto de Pucallpa.

No início da descida, Souza escutou um barulho que parecia vir da fuselagem e notou que a aeronave estava no meio de uma chuva de granizo. O avião caiu inicialmente de bico e depois bateu de lado, em um choque tão violento que dividiu o Boeing-737 em dois pedaços. Todos que estavam na metade da frente morreram instantaneamente. Souza estava na poltrona 14F. “Não deu tempo de sentir medo. Quando tudo parou, soltei o cinto de segurança e me levantei para sair. Foi quando tudo explodiu.”

Ao ver uma bola de fogo consumindo o que tinha pela frente, ele só teve o reflexo de cruzar os braços para proteger o rosto. Não havia tempo para escolher muitas alternativas de escape. Sair pela parte da frente era impossível. Embora a porta estivesse aberta, enfrentar o fogo era optar pela morte. Com o pânico geral, decidiu ir para a parte de trás do avião, onde a comissária Paola Chu tinha aberto a porta de emergência: “Saí o mais rápido que pude, atropelando quem estivesse pela frente”.

Individualismo

Ele ficou surpreso com a sua própria reação. “As pessoas veem esses seriados que tratam de queda de avião e como os passageiros e tripulantes se organizam. Nada disso acontece na vida real. Na hora seu instinto de sobrevivência é maior do que tudo, maior do que sua solidariedade. Você passa por cima de pessoas mortas e nem se abala com isso. Só me ocorreu a idéia de ajudar alguém a partir do momento em que me senti acolhido.” Como muitos sobreviventes de catástrofes, Souza experimentou a ilusão de centralidade, um mecanismo pelo qual o cérebro se concentra na experiência individual.

Ao se dar conta do que havia acontecido, ele começou a chorar. “Pensei: ‘O que aconteceu comigo?’ Estava em um avião que caiu no meio do mato e até aquele momento tudo que eu havia feito tinha sido por impulso”, diz Souza.

Quando a chuva diminuiu, os sobreviventes foram para o alto de um morro próximo. Ali, as pessoas começaram a se organizar em grupos. No processo de decisão sobre o que fazer - de acordo com Ripley, a etapa da deliberação -, as cerca de 40 pessoas começaram a divergir. “Aquilo estava uma torre de babel. Havia americano, italiano, peruano…” Souza se juntou a uma italiana e a uma peruana e saíram a caminhar. Foram parar numa fazenda.

“A primeira reação do fazendeiro foi cobrir a gente, mas a chuva estava aliviando as queimaduras. Pedimos para que ele parasse.” Logo eles foram levados a um precário posto de saúde. “Lembro que a italiana não conseguia nem tomar o comprimido, ela tremia de dor.” Horas depois, um carro da defesa civil finalmente os levou a um hospital.

Apesar de não ter passado por um treinamento para emergências desse tipo, Souza se saiu muito bem. Soube coordenar um grupo e levá-lo com segurança até um local seguro. Talvez essa habilidade tenha ajudado a sua carreira profissional. Ele foi ao Peru como instalador de sistemas e hoje é um dos profissionais que planejam as instalações para a distribuidora de material elétrico na qual trabalha, em Curitiba.

União e força

Agir de maneira coordenada em grupo facilita a saída de uma situação trágica, mas pode não ser suficiente para manter-se vivo depois disso. Nessa hora, a boa forma física entra na receita de sobrevivência. Junto com Juarez Mafra, Clóvis Schimidt, Julcenir Rita Amaro e os irmãos Edson, Cláudio e Anderson Flores, o estudante Gustavo Merini saiu para o alto-mar no dia 21 de junho deste ano. Por volta das 15 horas, o grupo entrou no barco do pescador Sérgio Luiz Vitcovski, na marina de Piçarras, em Joinville (SC). Batizada de Anjo de Luz, a embarcação era grande, tinha 12 m de comprimento por 5 m de largura. Partiram na direção da ilha de Itacolomi, onde o grupo permaneceu por cerca de três horas. A pescaria não estava das melhores. Logo veio a ideia de almoçar e ir para outra região do litoral catarinense.

Enquanto Sérgio guiava a embarcação, os outros entraram na cabine. “Deitamos nas camas por causa das ondas. O balanço estava forte e podia até derrubar alguém. Foi aí que o Sérgio notou que o barco estava pesado e foi ver o que era. A água estava inundando o motor. Tínhamos umas bacias e começamos a jogar a água para fora, enquanto o Sérgio navegava em direção à terra.” O trabalho foi em vão. Não demorou muito para que, quase submerso, o motor parasse de vez.

Cerca de dez minutos depois, os oito tripulantes já estavam na água, com a promessa de que se manteriam juntos até a chegada do resgate. Não foi o que aconteceu. Enquanto alguns conseguiram se agarrar ao barco para se manterem firmes em meio ao agitado mar, Gustavo e Clóvis agarraram-se a uma caixa de isopor. Os dois começaram a se afastar muito do grupo, o que fez Gustavo abandonar a caixa e nadar até o ponto onde estava o barco. Clóvis não conseguiu fazer o mesmo e foi se afastando cada vez mais. Outro que, involuntariamente, se afastou do grupo foi Juarez. Ele estava agarrado ao barco no momento em que Gustavo chegou nadando. Juarez então o ajudou a subir no barco, mas em seguida uma onda o arremessou para longe. Por algum tempo, os seis que restaram conseguiram trocar algumas palavras.

Frio e morte

Foi então que o barco afundou de vez, e o grupo resolveu nadar. Gustavo estava com uma mochila, mas alguém o orientou a abandoná-la. Quanto menos peso carregassem, melhor. “Enganchamos nossos braços e ficamos conversando para não cairmos no sono. O frio da água vai consumindo suas forças, dando sono. Você estava nadando e de repente se pegava com os olhos fechados. Um acordava o outro e falava: ‘Não dorme, não. Vamos conversar’.” Depois de cerca de duas horas no mar, Sérgio não aguentou o frio. O grupo nadava, quando um deles percebeu: “O senhor aqui não está mais respondendo”. Não restava outra alternativa senão abandoná-lo.

A água gelada é mortal. Ao cair nela, seus batimentos cardíacos aumentam de frequência. Sua pressão sobe. O fluxo de sangue para a superfície da pele é reduzido, e os vasos sanguíneos contraem-se. Dessa forma, o sangue resfriado chega ao coração. Ele bate cada vez menos até que, sem aviso, pára de vez.

Silêncio cúmplice

Por volta de uma hora da manhã, outra baixa. Anderson não respondia mais aos incentivos do grupo e também foi abandonado. Gustavo conta que, cada vez que alguém morria, o abalo no grupo era evidente. “Ninguém falava nada. Era como se cada um estivesse remoendo a história em sua própria cabeça.”

A batalha continuou, e, às cinco da madrugada, Cláudio morreu. A manhã já havia despontado, e Edson, Gustavo e Julcenir continuavam nadando. Faltou pouco para que fossem três os sobreviventes da tragédia. Isso porque, por volta das nove horas, Julcenir morreu, menos de dez minutos antes de uma embarcação se aproximar do grupo. “Vimos um barco e começamos a nos movimentar. Não eram os bombeiros. Quando reparamos, eram os primos do Edson.” Só depois disso é que, finalmente, os bombeiros chegaram. E os dois foram salvos. O corpo de Juarez só foi encontrado por pescadores 13 dias depois do acidente. Gustavo ainda mora em Joinville, onde cursa uma faculdade de sistemas industriais.

Vivência e bravura

Por trás de toda tragédia, sempre há uma certeza: sempre poderíamos ter nos saído melhor. Num processo contínuo de aprendizado, quanto mais controle tivermos sobre as nossas reações e atitudes, maiores serão as chances de sairmos vivos de uma catástrofe. E preparação é o que não faltava para Luciano Rodrigues Ribeiro, de 33 anos. Ele entrou para a Polícia Militar em 1997. Havia seis anos, estava no 1º Batalhão de Choque da Polícia Militar como membro da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar).

No último Dia dos Namorados, ele estava de férias e resolveu sair para dançar. Chamou Beatriz e Luciane, amigas do bairro onde mora, o Jardim Marisa, zona oeste de São Paulo. Foram à Pizzaria Razzi, uma casa de música sertaneja não muito longe dali. Lá pelas 2h, os amigos deram a noite por encerrada. Saíram da festa e entraram na picape Montana de Ribeiro, que iria deixar Beatriz e Luciane em suas respectivas casas. Eles andaram pouco até que um outro amigo ligou avisando que queria vê-los e marcou o encontro na avenida dos Remédios. Ribeiro parou o carro e ficou esperando.

“Um assaltante chegou pelo lado do passageiro. Apontando um 38 pra gente, ele encostou no vidro e falou: ‘Vai boy, sai do carro’.”. Ribeiro, que ainda estava com o celular na mão, retrucou, afirmando que entregaria o carro, mas pediu que as amigas descessem. O assaltante foi irredutível: “Você sai. Eu vou levar o carro e as minas”. Nesse momento, o assaltante correu para a outra lateral da picape. Ribeiro pegou sua pistola e reagiu. “Eu me levantei do carro, me identifiquei como policial e dei voz de prisão.” Imediatamente, os dois trocaram tiros. O assaltante deu menos sorte e caiu morto ali mesmo. Antes, porém, teve tempo de cravar uma bala na altura do tórax de Ribeiro.

Outros dois tiros foram disparados. Vinham da arma de um comparsa do ladrão. Ribeiro não havia se dado conta, mas um segundo bandido estava atrás do carro. Ele acertou o primeiro disparo nas costas do policial. Ribeiro tombou, desmaiado. O comparsa não se deu por satisfeito e decidiu executar o policial. Foi até Ribeiro e disparou na cabeça. “Lembro que eu coloquei a mão na cabeça, senti o sangue e pedi a Deus para me levar. Aí desmaiei de novo.”

Em alguns aspectos, a experiência de Ribeiro parece cena de cinema. Embora tenha disparado e recebido três tiros, ele conta que não escutou nada. “Eu não ouvi os disparos da minha arma nem os das deles. Também não senti nada.” Outra variação de sentidos foi o afunilamento da visão. Era como se ele estivesse olhando por um buraco de fechadura onde, do outro lado, estava o inimigo. Essa impressão é natural e reforçada pelo fato de o nosso cérebro ser concebido para se focalizar em uma coisa de cada vez. E em situações de estresse extremo isso ganha intensidade.

Recuperação

Assim que foi baleado, o amigo pelo qual esperava chegou. Nem parou o carro. Foi direto para um posto policial a poucos metros dali e pediu ajuda. Oito dias após o acidente, Ribeiro acordou do coma no hospital. “Estava feliz e queria ir embora porque meu corpo parecia bom. Foi aí que o médico começou a me explicar o que tinha acontecido.” Um dos tiros atravessou dois pulmões, o fígado - que ficou pela metade -, o rim e a bexiga. Estava paraplégico. Outra notícia ruim: o policial ainda teria de passar por outra cirurgia. Era preciso retirar o projétil da medula, responsável pela paraplegia.

Hoje aposentado, ele não perde tempo tendo dó de si. “A gente fica abalado, né? Mas eu estou tentando a reabilitação, faço fisioterapia. Os médicos dizem que eu nunca mais vou poder andar, mas eu acredito que vou sim.” No meio de setembro, Ribeiro conseguiu novamente ficar de pé e comemorou: “Eu já estou mexendo as pernas, já sinto o sangue correr”.

Disposição e confiança no próprio taco são as maiores dicas que Ribeiro pode dar para aumentar as chances de sobrevida em uma catástrofe. Mas há uma outra que não custa repetir. Na condição de policial, claro, ele estava mais bem preparado para sair vivo dessa tragédia tipicamente paulistana. Para tanto, contou com um treino específico. E é essa a chave que pode livrar boa parte das pessoas dos maiores perigos. Estar treinado é a melhor precaução, pois nunca se deve ter de pensar numa situação de catástrofe. Então, não torça o nariz na próxima vez em que for convocado para participar de um exercício de simulação de incêndio do seu prédio.

(Colaborou: Fel Mendes)

Matéria publicada na Revista Galileu , em outubro de 2008.

Jorge Hessen comenta*

Por que determinadas pessoas escapam da morte em acidentes aéreos, naufrágios, incêndios e outras situações trágicas? Alguns explicam, superestimando os papéis da “sorte” e do destino; outros destacam o lugar da própria reação dos que se encontram em perigo real. Amanda Ripley, em o livro “Impensável - Como e Por que as Pessoas Sobrevivem a Desastres”, diz que “qualquer que seja o desastre, partimos praticamente do mesmo ponto e passamos por três fases distintas.” A primeira etapa é a da negação, na qual tentamos achar formas de provar para nós mesmos que aquilo não está acontecendo. A segunda fase é a deliberação, fase em que notamos que algo está incrivelmente fora da ordem e passamos a ponderar sobre as opções possíveis. Por fim, com a aceitação do fato de que estamos em perigo e com a contemplação de soluções, chega a hora da fase final, a da ação."(1)

Normalmente, diante do desfile de horrores decorrentes de uma tragédia, boa parte das vítimas fica, simplesmente, paralisada. Pesquisas recentes mostram que pessoas confiantes (dotadas de uma espécie de fé) tendem a se sair bem em catástrofes. Sua forma de pensar atenua os efeitos devastadores do medo extremo. Muitos que enfrentam crises, e se recuperam bem delas, tendem a contar com três vantagens: acreditam que podem influenciar o que acontece em sua volta; conseguem encontrar sentido no caos da vida moderna; estão convencidos de que podem aprender com as experiências, sejam elas boas ou ruins. Num processo contínuo de disciplina, quanto mais controle tivermos sobre as nossas reações e atitudes, maiores serão as chances de sairmos vivos de uma catástrofe, por exemplo, defendem os pesquisadores.

Alguns se referem ao destino como não sendo uma palavra vã. Creem, dependendo da posição que ocupamos na Terra, e das funções que aqui desempenhamos em consequência do gênero de vida que escolhemos, ser expiação ou missão. Muitas vezes, parece que somos perseguidos por uma espécie de fatalidade, independente da maneira por que procedamos. São, no entanto, provas que nos cabem sofrer e que escolhemos antes de reencarnarmos. Todavia, lançamos à conta do fatalismo o que, na verdade, é, apenas, consequência de nossas próprias faltas, motivo pelo qual é urgente higienizarmos a consciência em meio aos deslizes morais que nos afligem, para alcançarmos uma efetiva harmonia íntima, que nos capacite enfrentar quaisquer desafios, inclusive tragédias.

Nunca há fatalidade nos atos da vida moral, mas, no que concerne à morte física, à desencarnação, achamo-nos submetidos, em absoluto, à inexorável lei da fatalidade, por não podemos escapar à sentença que nos marca o termo da existência, nem ao gênero de morte que haverá de cortar o fio da existência física. Ainda sobre a fatalidade, lembremos que ela existe, unicamente, pelas provas requeridas por nós ou por proposta dos guias espirituais, antes da reencarnação, mas sempre de forma lucrativa para o espírito. Uma vez aceitas ou compulsoriamente estabelecidas, cria-se um calendário a ser cumprido, uma espécie de roteiro fatal para nós, que é a consequência mesma da posição em que nos achamos situados. Considerando, aqui, as provações a que somos submetidos, é de fundamental importância sabermos que elas podem mudar de curso, dependendo de como usamos o livre-arbítrio, se para o bem ou se para o mal, pois sempre somos senhores da nossa vontade, de ceder ou de resistir.

Uma coisa é importante discutir no debate, ou seja, a proteção espiritual. Ao nos depararmos fraquejando, um bom Espírito pode nos socorrer, mas, obviamente, sem influir sobre nós de maneira absoluta, ao ponto de dominar nossa vontade. Todos nós temos os nossos amigos protetores no além, lídimos guardiões, segundo as nossas condições evolutivas. Entretanto, é necessário lembrar que há uma hierarquia em todos os planos, tendo em vista que, quando o problema escapa à competência do espírito protetor, este solicita do seu superior a necessária intervenção. Todavia, os pormenores dos fatos que nos ocorrem, esses ficam subordinados às circunstâncias que criamos pelas experiências, sendo que, também, nessas circunstâncias, podemos ser influenciados pelos pensamentos que sugiram os bons Espíritos.

Não podemos acreditar que tudo o que nos sucede “esteja escrito” nas linhas do destino, como costumam dizer. Um acontecimento qualquer pode ser a consequência de um ato que praticamos por livre vontade, de tal sorte que, se não o houvéssemos praticado, o efeito poderia não se materializar. O fato de sermos surpreendidos, algumas vezes, em situação de perigo, constitui um mecanismo de alerta, endereçado pelos guias espirituais, a fim de nos desviarmos do mal e nos tornarmos melhores. Se escaparmos a esse perigo, quando ainda estivermos sob a impressão do risco que corremos, é sinal de que estamos sensíveis à influência dos Espíritos bons. Porém, se persistirmos rebeldes em não aceitarmos os convites superiores do bem, o obsessor, ou seja, o mau Espírito (digo mau, subentendendo o mal que ainda existe nele), vincula-se a nós, interferindo em nossas mentes, sugerindo-nos pensamentos depressivos, num processo perverso de vingança. Em verdade, através dos perigos que corremos, Deus nos adverte quanto à nossa fraqueza e a fragilidade da nossa existência. Se examinarmos a causa e a natureza do perigo, verificaremos que, quase sempre, suas consequências teriam sido a correção (punição?) de uma falta cometida ou da negligência no cumprimento de um dever. Deus, por essa forma, exorta-nos a um mergulho na própria consciência a fim de retificar a caminhada.

Na vida, tudo tem uma razão de ser, nada ocorre por acaso conosco, ainda mesmo quando as situações se nos afigurem trágicas. Antes de reencarnarmos, sob o peso de débitos de antanho, somos informados, no além-túmulo, dos riscos a que estamos sujeitos, das formas pelas quais podemos quitar a dívida, porém, o fato, por si só, não é determinístico, até porque dependem de circunstâncias várias em nossas vidas a sua consumação, uma vez que a Lei de Causa e Efeito admite flexibilidade, quando o amor rege a vida, porque “o amor cobre uma multidão de pecados."(2)

Como disse antes, “fatal, no verdadeiro sentido da palavra, só é o instante da morte”(3), pois, como disseram os Espíritos a Kardec: “quando é chegado o momento de retorno para o Plano Espiritual, nada “te livrará” e frequentemente o Espírito também sabe o gênero de morte por que partirá da terra”, “pois isso lhe foi revelado quando fez a escolha desta ou daquela existência”.(4) Mais, ainda: “Graças à Lei de Ação e Reação e ao Livre-Arbítrio, o homem pode evitar acontecimentos que deveriam realizar-se, como também permitir outros que não estavam previstos”.(5) A fatalidade só existe como algo temporário, frente à nossa condição de imortais, com a finalidade de “retomada de rumo”. Fatalidade e destino inflexível não se coadunam com os preceitos kardecianos. Quem crê ser “vítima da fatalidade”, culpa somente o mundo exterior pelos seus sofrimentos e se recusa a admitir a conexão que existe entre ação e reação.

Fontes:

  1. Ripley, Amanda. “Impensável - Como e Por que as Pessoas Sobrevivem a Desastres, Rio de Janeiro: Editora Globo, 2008;

  2. Cf. Primeira Epístola de Pedro Cap. 4:8;

  3. Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, RJ: Ed FEB, 1979, pergs. 851 a 867;

  4. idem;

  5. Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, RJ: Ed FEB, 1979, perg. 860.

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal lotado no INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (dois livros publicados), Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.