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A luta entre a sabedoria que leva à reconciliação e o desejo de retaliar é mais antiga que a civilização. A lição da história é que foi através do perdão que a humanidade conseguiu interromper as espirais de violência provocadas pela vingança. Jorge Hessen comenta.

  • Data :23 Jan, 2009
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O dilema entre o perdão e a vingança

A luta entre a sabedoria que leva à reconciliação e o desejo de retaliar é mais antiga que a civilização e continua sendo travada nos dias atuais. A lição da história é que foi através do perdão que a humanidade conseguiu interromper as espirais de violência provocadas pela vingança

Thomaz Favaro

“Enquanto dormimos / a dor que não se dissipa / cai gota a gota sobre nosso coração / até que, em meio ao nosso desespero / e contra nossa vontade / apenas pela graça divina / vem a sabedoria.” Esses versos, escritos há 25 séculos pelo poeta grego Ésquilo, formam a mais antiga e, para muitos, a mais bela conclamação ao perdão jamais colocada em pedra, papiro, papel ou tela. Bob Kennedy recorreu a ela na tarde do dia 4 de abril de 1968 para, durante um comício, consolar a multidão revoltada com a chegada da notícia do assassinato do líder pacifista Martin Luther King. Dois meses depois, o próprio Bob seria morto a tiros. Em seu túmulo no Cemitério Nacional de Arlington foram gravados esses mesmos versos de Ésquilo, uma passagem da peça Agamenon . A luta entre a sabedoria que leva ao perdão e o desejo de vingança, porém, é mais antiga do que a civilização e é provável que sobreviva a ela, pelos exemplos a que assistimos hoje por toda parte. “Tinha contas a ajustar com ele”, disse o judoca português Pedro Dias, que buscou forças não se sabe onde para derrotar na Olimpíada de Pequim o favorito lutador brasileiro João Derly. Dias explicou que o desejo de vingança foi sua motivação. Derly roubara-lhe uma namorada no passado.

“Ele foi humilhado, humilhado por mim”, comemorou Dias. O sentimento do judoca é da mesma natureza do que acometeu a atriz Jennifer Aniston quando descobriu que Brad Pitt a traía com Angelina Jolie. Depois da separação, Jennifer esvaziou o guarda-roupa de Brad e doou todas as peças a uma instituição de caridade – a versão politicamente correta de jogar a mala dele no meio da rua.

Parece fazer parte do mecanismo instintivo de defesa dos seres humanos responder a um tapa com outro tapa. Os bebês fazem isso com aquele jeito inocente e angelical que torna doloroso chamar a reação de vingança. Dar a outra face é a exceção pregada, com sucesso duvidoso, há mais de 2000 anos pelo cristianismo. Antes de Cristo, as religiões não apenas amparavam como incentivavam a vingança desproporcional ao agravo. O Velho Testamento é repleto de passagens “olho por olho”. Nenhuma tão constrangedora quanto aquela em que o profeta Eliseu é chamado de “careca” por um grupo de crianças e, em resposta, manda dois ursos sair da floresta e despedaçar 42 criancinhas. Deve ser o único caso registrado em que uma peruca teria evitado uma carnificina. Como instituição, a religião é má conselheira nesses casos. As guerras religiosas são sempre as mais inexplicáveis, duradouras e cruéis da história humana. Para entender a origem do desejo de vingança e aprender a domá-lo, o melhor a fazer é trafegar por fora da religião.

Voltando ao caso do judoca e da atriz, bem mais perto de nós do que os ursos famintos das Escrituras, o que se observa é apenas uma diferença de estilo. O homem usou da força bruta para subjugar o rival diante de uma enorme platéia. A mulher recorreu a método mais sutil, na privacidade do lar, mas tendo o cuidado de informar as revistas de fofoca de forma a tornar público o lance do traidor.

É voz corrente que as mulheres são mais vingativas que os homens. Há controvérsias. Mas, sem dúvida, de Teodora – esposa do imperador romano do Oriente Justiniano, que convidou a população para um espetáculo no estádio e mandou degolar 30000 pessoas por insurreição – a Jennifer Aniston, a mulher é mais espalhafatosa em sua vingança. O psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos, do Hospital das Clínicas de São Paulo, não vê nisso uma especial crueldade feminina, mas apenas uma característica inata delas.

Diz ele: “Tanto no afeto quanto na vingança, a mulher se expõe mais”. Quando os casamentos infelizes eram indissolúveis também pela lei dos homens, tanto o marido quanto a mulher tendiam a se amargurar silenciosamente, vivendo separados sob o mesmo teto e evitando demonstrações públicas do fracasso do relacionamento. Hoje é tudo mais fácil do ponto de vista econômico e jurídico. Culturalmente, nem se fala. Os casamentos não costumam durar o tempo suficiente para que as mágoas acumuladas transbordem para o prato frio da vingança. Ainda assim, o divórcio tornou-se uma das poucas situações no mundo moderno nas quais se pode realmente machucar o outro sem quebrar a lei. As ameaças de tirar a custódia dos filhos, a disputa pela posse dos bens e a roupa suja lavada em público são perfeitamente toleradas durante o processo judicial do divórcio.

Os entendedores da mente humana enxergam em boa parte dos episódios que chamamos de vingança apenas explosões momentâneas de ódio e reflexos de defesa. Vingança mesmo começa pelo coração, é tramada no cérebro, guardada na memória, e sua execução é cuidadosamente lapidada pelo inconsciente. “Enquanto dormimos / a dor que não se dissipa / cai gota a gota sobre nosso coração…” Se não nos socorre a sabedoria, a vingança encontra seu caminho. Por que ela não se dissipa, não desaparece lentamente como o conhecimento acumulado ou o nome daquela pessoa importante com quem cruzamos no passado e que seria vital lembrar agora? Os psicólogos colocaram de pé duas teorias principais sobre o poder de permanência do desejo de vingança. A vingança é um impulso que se desenvolve basicamente em quatro etapas. A pessoa entende que sofreu um dano e conclui que este foi causado por outra pessoa. Em seguida acredita que esse dano foi injusto. E, por último, sente o desejo de retaliar. A questão que se coloca a partir desse ponto é a seguinte: por que o homem carrega dentro de si o espírito vingativo? Duas teorias estão entre as mais prováveis. A primeira é que o desejo de vingança é um tipo de toxina existente na mente apenas das pessoas rancorosas. Isso pode ser atribuído a perturbações mentais ou morais, a pais ausentes na infância, a fatores culturais. A outra possibilidade é que se trata de um sentimento tão natural no ser humano quanto o amor, o ódio e o medo. Um século de pesquisas sociais e biológicas deu aos cientistas a certeza de que a segunda teoria é a mais sólida. O desejo de vingança é uma parte perfeitamente normal da natureza humana e sua supressão pode ser apenas um daqueles recalques que a vida moderna em sociedade nos incute. O psicólogo americano Michael E. McCullough, da Universidade de Miami e autor de Além da Vingança – A Evolução do Instinto do Perdão , enxerga a questão pela lente da biologia. Disse ele a VEJA: “Todo ser humano nasce biologicamente equipado para retaliar quando se ressente de alguma ofensa ou agressão”.

O biólogo Keith Jensen, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig, na Alemanha, acredita que as raízes da vingança precedem o surgimento do Homo sapiens . Diz ele: “A existência de desejo de vingança entre os chimpanzés sugere que, nos seres humanos, esse sentimento tem sua origem em um ancestral comum, que viveu entre 5 milhões e 7 milhões de anos atrás”. Colocar a culpa no macaco não explica tudo, mas ajuda a lembrar que, por mais anjo decaído que seja, o homem tem seu lugar cativo na escala zoológica. As emoções humanas só podem ser entendidas quando se leva em conta que, tanto quanto nossos narizes e joelhos, elas foram moldadas por forças evolutivas no decorrer de milhões de anos. O medo, por exemplo, é uma emoção útil evolutivamente. Ele foi vital para a preservação da espécie, por nos manter atentos às ameaças potenciais e para evitar que corrêssemos riscos. A vingança, especulam os antropólogos, deve ter sido um poderoso elemento de dissuasão, inibindo o agressor e fazendo-o pensar duas vezes antes de atacar de novo. Sentir, planejar e executar um ato de vingança pode ter também tido o papel de melhorar o sentido de cooperação dentro de um grupo de hominídeos.

Em uma visão mais requintada, a vingança, quando voltada para dentro do grupo, transforma-se em punição. Ela é mais cerebral, controlada, e cumpre uma função bem mais específica no processo evolutivo. É dessa vingança que a deusa grega Nêmesis era encarregada. Narciso está hipnotizado pela própria beleza e não quer mais nada com as ninfas desejosas, colocando em perigo a espécie por falta de herdeiros? Nêmesis vai obrigá-lo a passar o resto da vida mirando o próprio rosto nas águas do lago. A tragédia Orestéia , também de Ésquilo, é a representação, válida ainda hoje, de que a vingança feita pela Justiça, a punição, é consumada pelos homens, mas sua origem é divina. No final da trilogia, a deusa Atena se encarrega do julgamento de Orestes, que matou a própria mãe para vingar a morte do pai, numa cadeia de retaliações que remontava a gerações. As Erínias (fúrias, na tradição romana), divindades vingadoras que o perseguem pelo matricídio, encarregam-se da acusação. Orestes defende-se com a ajuda do deus Apolo. Após o julgamento, Atena inocenta-o – com o voto de Minerva, nome pelo qual ela é conhecida na tradição romana. As divindades vingadoras recebem, então, o nome de Eumênides (“deusas veneráveis”) e passam a habitar a pólis grega. Esse momento é interpretado como a institucionalização da vingança, que deixa de ser um direito privado para se tornar público, decidido por um tribunal. A moral da história? Quando não há punição dos que cometem abusos e excessos, basta apenas um egoísta para arruinar a cooperação no grupo e diminuir suas chances de sobrevivência. Isso valia para os macacos, valeu para os hominídeos e vale para qualquer grupo humano hoje – seja uma empresa, seja uma escola, seja um pelotão de fuzileiros navais.

Longe de ser um anacronismo, “a herança evolutiva é rica em valores bastante úteis ao homem moderno”, opina o filósofo americano Jeffrie Murphy, autor do livro Acertando as Contas: o Perdão e Seus Limites . Que qualidades podem existir no ressentimento? Murphy sugere três: auto-respeito, autodefesa e respeito pela ordem moral. “A pessoa que nunca se ressente, seja de qual for a ofensa, pode ser um santo. Mas a falta de ressentimentos pode também revelar uma personalidade servil e sem respeito por seus direitos e sua condição de indivíduo livre e moralmente respeitável.” Aqui se chega ao nó da questão. O desejo de vingança constitui uma parte da natureza humana. Ajuda a estabelecer parâmetros morais no dia-a-dia. Ao mesmo tempo pode detonar em forma de violência selvagem. Essa característica cruel assusta as pessoas e mantém a sociedade de sobreaviso. Por sorte, entre o desejo de vingança e a execução da ação vingativa existe espaço suficiente para o homem exercer aquilo que a Bíblia chama de livre-arbítrio. A escolha entre o bem e o mal. Refrear o desejo de vingança não é fácil quando alguém sente o coração transbordar de fúria. “A urgência de restauração de um rombo no ego, seja por uma injustiça pessoal, seja pela perda brutal de alguém querido, impede que a pessoa tenha clareza para julgar em que medida o agressor deve pagar pelo que fez”, diz a psicanalista Ana Cecília Carvalho, coordenadora de um grupo de pesquisa sobre a psicanálise da vingança na Universidade Federal de Minas Gerais.

A cultura é um fator determinante na freqüência com que os desejos de retaliação se manifestam numa sociedade. O sentimento de vingança é controlado à medida que um país se desenvolve economicamente e suas instituições democráticas se tornam mais sólidas. “Com a melhora de indicadores sociais, econômicos e a conquista de estabilidade política das nações, as pessoas se tornam menos vingativas”, diz o economista turco Naci Mocan, autor de um estudo comparativo sobre o desejo de vingança em 53 países. O Brasil aparece em terceiro lugar entre as nações nas quais o sentimento de vingança é mais acentuado, atrás da Bielo-Rússia e da Bélgica. “Se o sistema jurídico funciona, as pessoas esperam que os conflitos terminem com a correção do mal que lhes foi causado”, disse o economista a VEJA. Quando não funciona, a insatisfação com o sistema legal estimula os sentimentos de vingança e os indivíduos a buscar a resolução privada de seus conflitos.

Uma forma bem atual de vingança é escrever um livro expondo os podres de um desafeto. A primeira-dama da França, Carla Bruni, já provou desse veneno. No best-seller Nada Grave , de 2004, a escritora francesa Justine Lévy a descreveu como uma predadora sexual que se comporta como se fosse dona de todos os homens. Explique-se tanto ódio: quatro anos antes, Carla havia roubado o marido de Justine. É comum também o ataque direto à parte mais sensível do corpo humano, o bolso. A bilionária americana Leona Helmsley, conhecida como “a rainha da maldade”, usou o testamento para se vingar da família, que detestava. Quando morreu, no ano passado, destinou a maior parte da fortuna de 5 bilhões de dólares para instituições de caridade. Também deixou 12 milhões de dólares para seu cãozinho maltês, Trouble. Dois de seus quatro netos receberam quantias equivalentes à metade da legada ao cachorro. Os demais parentes foram simplesmente ignorados. “Eles sabem por quê”, escreveu maldosamente Leona no testamento.

Mas qual desses elementos da natureza humana – o desejo de vingança e a capacidade de perdoar – terá dado a maior contribuição na jornada do homem até os dias de hoje? Foi através da vontade de perdoar que a humanidade conseguiu interromper longas espirais de violência provocadas pela vingança. Como o ser humano está propenso a inevitavelmente cometer alguns erros durante sua vida, nada mais normal que ter um pouco de flexibilidade para lidar com eles. “Nós não poderíamos ter evoluído como espécie sem a capacidade de suportar alguns prejuízos de vez em quando”, diz o psicólogo americano Michael McCullough. Deixar passar a oportunidade de vingar-se de alguém é uma maneira de prolongar relacionamentos importantes, como um casamento ou uma amizade duradora. McCullough é de opinião que a vontade de perdoar aflora naturalmente no indivíduo mediante certas condições. Somos mais propensos a perdoar uma pessoa quando ela nos dá provas de que jamais vai cometer o mesmo erro. Também perdoamos mais as pessoas das quais sentimos pena. As mais variadas compensações, desde um pedido de desculpas até uma indenização milionária, também servem como estímulos à conciliação. A natureza, que nos armou com o desejo de vingança, sabiamente implantou em nossos genes esse oposto ainda mais poderoso: a capacidade de perdoar. “…e contra nossa vontade / apenas pela graça divina / vem a sabedoria.”

Maldade de adolescente

No início de sua carreira de modelo, quando tinha 16 anos, a paranaense Adriane Grott foi convidada a representar sua escola em um concurso de beleza em Floraí, cidadezinha de 5000 habitantes onde vivia fazia pouco tempo. Para desfilar, pediu emprestada uma saia de uma amiga. Ganhou o concurso e o ódio da colega. “Devolvi a roupa, mas ela espalhou que eu tinha roubado a saia”, conta Adriane, hoje com 27 anos. “Em pouco tempo toda a cidade achava que eu era ladra. Foi horrível.” A história levou meses para ser esquecida.

A dor aplacada

Ives, filho do comerciante Masataka Ota , foi seqüestrado e morto aos 8 anos, em 1997. O pai indignou-se ao descobrir que os assassinos não podiam ser condenados à prisão perpétua. “Eu queria me vingar de qualquer jeito”, conta Ota. “Cheguei a pensar em invadir o fórum no dia do julgamento e matar os três a tiros.” Ele desistiu da vingança por entender que significaria um novo sofrimento para a sua família. Anos depois, ele encontrou-se com os assassinos na cadeia. A experiência ajudou a aliviar sua dor. “O ódio e o desejo de vingança não me permitiam viver”, diz Ota.

Retaliação planejada

“Passei seis meses arquitetando a vingança contra meu ex-noivo, que havia me difamado para amigos e familiares”, conta a professora paulista Janaina Azevedo , 25 anos. Seu primeiro passo foi levar a ex-sogra, que tem trauma de alcoolismo, para ver o filho embriagado num bar. Depois, conseguiu que o ex perdesse dois empregos. Para completar, levou ao grupo de roqueiros do ex-noivo um vídeo em que ele aparecia com pagodeiros – o que acabou com a amizade. “Assim pude dar a história por encerrada”, diz.

O que fazer se o assassino sai livre

O advogado Ari Friedenbach é pai de Liana, seqüestrada aos 16 anos, estuprada e assassinada na Grande São Paulo, em 2003. Além da dor pela perda da filha, precisou se conformar com a pena branda aplicada ao assassino – três anos de internação na Febem. “No primeiro momento, sob forte emoção, a opção da vingança passou pela minha cabeça”, diz. Para superá-la, engajou-se em discussões sobre a criminalidade e colabora no Programa Liana Friedenbach, da Congregação Israelita Paulista, para a formação de jovens líderes comunitários.

Incidente no shopping

A empresária Maria Amélia Aquino , de 57 anos, admite que sente prazer na vingança. Certa vez, enquanto esperava para estacionar o carro em um shopping, uma mulher rapidamente ocupou a vaga. Maria Amélia reclamou e tudo o que ouviu foi: “Querida, pode ter certeza de que a minha pressa é muito maior que a sua. Se quiser ficar aqui aguardando, eu volto já”. Maria Amélia esperou a atrevida entrar no shopping e esvaziou os quatro pneus do carro dela. Ainda deixou um bilhete: “Estava com tanta pressa, querida, mas agora vai ter de esperar o guincho para te levar para casa”.

Sem vergonha de ser vingativo

O americano Jared Diamond, da Universidade da Califórnia, é autor do best-seller Colapso , em que analisa o que leva uma sociedade ao fracasso. Em seu próximo livro, ainda sem título, Diamond compara hábitos prevalentes em diversos tipos de sociedade. O escritor conversou com o editor Diogo Schelp.

De que maneira a vingança em comunidades tribais se diferencia da existente nas sociedades modernas? Na ausência de um poder central, as pessoas têm o direito de revidar por conta própria. Isso cria ciclos intermináveis de violência. Já quem vive em um estado moderno é estimulado a conter o desejo de vingança. Se as pessoas fossem livres para retaliar à vontade, a sociedade entraria em colapso.

As sociedades tribais são mais violentas? Ao contrário, elas tendem a encaminhar as disputas para a conciliação. Na sociedade moderna aprendemos que os sentimentos vingativos são primitivos e que deveríamos ter vergonha de senti-los. Isso faz com que a maneira moderna de resolver disputas em tribunais – em casos de divórcio, herança ou acidentes de automóveis, por exemplo – não favoreça a reconciliação. Temos de encontrar uma forma mais saudável de lidar com a vingança, sem cometer excessos ou infringir a lei. O primeiro passo é admitir a existência desse sentimento e não enterrá-lo em algum canto da memória.

A vingança tem um papel nas guerras que os Estados Unidos travam no Iraque e no Afeganistão? Os Estados Unidos atacaram o Afeganistão logo após os atentados de 11 de setembro, em 2001. A pergunta é: fomos à guerra em busca de vingança pelos ataques às torres gêmeas? Era perfeitamente óbvio que se os Estados Unidos não fizessem algo estariam mostrando ao mundo sua fraqueza. A invasão americana do Iraque é uma situação diferente. Há quem diga que nosso presidente, George W. Bush, tomou essa decisão para terminar o trabalho que seu pai deixara pela metade durante a primeira guerra do Golfo, quando Saddam Hussein pôde conservar o poder.

O conflito entre israelenses e palestinos pode ser analisado sob a óptica da vingança? A hostilidade entre israelenses e os vizinhos árabes me lembra as guerras tribais em Papua-Nova Guiné. Os familiares de alguém assassinado vingam-se matando um membro do clã do assassino. Esse clã, por sua vez, se vê na obrigação de retaliar com nova morte e assim sucessivamente. O resultado é uma guerra sem fim, em que nenhum dos lados aceita ceder. Mas essas guerras também chegam ao fim. Para que isso ocorra é preciso preencher uma das três condições. Primeira, ambos os lados têm perdas massivas e equivalentes. Segunda, ambos ficam esgotados e surge uma terceira parte que os ajuda a se reconciliar. Terceira, minha experiência em Papua-Nova Guiné mostra que o surgimento de um inimigo comum também pode levar ao fim um conflito entre dois inimigos tradicionais. Só não sei dizer qual dessas circunstâncias levará à paz entre palestinos e israelenses.

Punir e não vingar

A humanidade encontrou maneiras de conter a força vingativa que existe na natureza humana. O principal controle foi o sistema judiciário, que passou a mediar as disputas entre vítimas e agressores.

Orestéia (458 a.C.) A tragédia grega, de Ésquilo, representa o fim do direito privado à vingança como forma de defender a honra. A punição passa a ser decidida por um tribunal.

Marco Aurélio (121-180) O imperador estóico, adepto da filosofia da moderação, deu mais direitos aos acusados e eliminou abusos nas penas aplicadas pelo direito romano.

Thomas Hobbes (1588-1679) Para o filósofo inglês, a punição institucional não deveria compensar um mal passado, mas sim auxiliar na construção de uma sociedade melhor.

Cesare Beccaria (1738-1794) O criminologista italiano combateu a tortura e o tratamento cruel dado aos presos. Para ele, a finalidade da punição é desestimular a reincidência e novos crimes.

Cadeira elétrica (1890) Em princípio, a pena de morte é aplicada a criminosos cujos impulsos violentos não seriam contidos pela cadeia. Hoje é considerada desumana na maioria dos países.

Com reportagem de Carolina Romanini e Roberta de Abreu Lima

Matéria publicada em Veja.com , em 3 de setembro de 2008.

Jorge Hessen comenta*

QUANTAS VEZES PERDOAREI MEU IRMÃO? UM DILEMA ENTRE A TOLERÂNCIA E A VINGANÇA

“Aprendestes que foi dito: olho por olho e dente por dente. - Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal que vos queiram fazer; que se alguém vos bater na face direita, lhe apresenteis também a outra; - e que se alguém quiser pleitear contra vós, para vos tomar a túnica, também lhes entregueis o manto; - e que se alguém vos obrigar a caminhar mil passos com ele, caminheis mais dois mil. - Dai àquele que vos pedir e não repilais aquele que vos queira tomar emprestado”. (1)

Como não resistir, como fazer ainda mais do que nos exigem os que nos ofendem? O que entendemos por perdoar? Como perdoar sem permitir que o mal nos envolva, sem nos deixar ficar sob as instâncias daqueles que nos magoam, que nos prejudicam ou nos ferem? Essas questões são instigantes. Todavia, o bom senso nos impõe a seguinte dedução: precisamos compreender e desculpar, ilimitadamente, porque todos nós necessitamos de compreensão e desculpa nas horas do desacerto, mas urge que analisemos os fatos para que os diques da tolerância não se rompam, corroídos pela displicência sistemática, patrocinando a desordem.

Diferentemente do ensino do Cristo, parece fazer parte do mecanismo instintivo de defesa dos seres humanos revidar tapas a um agressor. Neste sentido, segundo alguns, dar a outra face é uma atitude de eficácia duvidosa, contrariando o que Jesus pregou há mais de dois mil anos. Segundo opiniões de pesquisadores mais centrados no materialismo, as religiões, antes de Cristo, não apenas amparavam como, também, incentivavam a vingança desproporcional ao agravo. Os Velhos Textos estão repletos de passagens do tipo “olho por olho”, dizem esses estudiosos. Argumentam, ainda, que, como instituição, a religião é má conselheira no assunto tolerância. As guerras religiosas sempre foram, e ainda são as mais inexplicáveis, as mais duradouras e as mais cruéis da história humana.

Por que carregamos em nossa intimidade o rancor e o pendor à vingança? Isto pode ser atribuído a perturbações mentais ou morais, a pais ausentes na infância, a questões culturais. Para Jeffrie Murphy “a cultura é um fator determinante na frequência com que os desejos de retaliação se manifestam numa sociedade.” Murphy afirma, ainda, (pasmem!) que a Pátria do Evangelho “aparece em terceiro lugar nas estatísticas entre as nações nas quais o sentimento de vingança é mais acentuado, atrás da Bielo-Rússia e da Bélgica”.(2) Para alguns estudiosos, o desejo de vingança é uma parte perfeitamente normal da natureza humana e sua supressão pode ser, apenas, um daqueles recalques que a vida moderna em sociedade nos incute. Há quem descubra qualidades no ressentimento. Jeffrie sugere três (acreditem!): auto-respeito, autodefesa e respeito pela ordem moral. “A pessoa que nunca se ressente, seja de qual for a ofensa, pode ser um santo. Mas, a falta de ressentimentos pode também revelar uma personalidade servil e sem respeito por seus direitos e sua condição de indivíduo livre e moralmente respeitável."(3)

Leona Helmsley, uma bilionária norte-americana, usou o testamento para se vingar da família, que detestava. Quando desencarnou, destinou a maior parte da fortuna, de cinco bilhões de dólares, para instituições de caridade (aqui agiu corretamente), porém, também deixou doze milhões de dólares para seu cãozinho maltês, Trouble. Dois, de seus quatro netos, receberam quantias equivalentes à metade da legada ao cachorro. Os demais parentes foram, simplesmente, ignorados. “Eles sabem por quê”, escreveu Leona como clara vingança no testamento.(4)

Perdoar coisas leves, contra nós mesmos, é relativamente fácil, mas, quando se trata de algo mais sério, como um assassinato, um estupro, por exemplo, a dificuldade de superação da mágoa aumenta, consideravelmente. Sabemos que refrear o desejo de vingança não é fácil quando alguém sente o coração transbordar de fúria. Contudo, não podemos esquecer que, entre o desejo de vingança e a execução da ação vingativa, existe espaço suficiente para exercermos o livre-arbítrio, ou seja, a escolha entre o bem e o mal. A vingança será sempre uma atitude insensata e inútil, até porque, nenhum benefício trará ao nosso progresso, e, uma vez consumada, terá satisfeito, apenas, à nossa inconformação diante dos desconhecidos motivos do nosso infortúnio.

O convívio com criaturas e sistemas imperfeitos, capazes de nos infligir os mais variados constrangimentos, cerceamentos, limitações, vicissitudes e agressões, constitui o objetivo moral da reencarnação, de modo que disciplinemos, em definitivo, as ideias superiores da vida e as incorporemos ao acervo dos valores que já edificamos no espírito. Nesse sentido, “o perdão é superação do sentimento perturbador do desforço, das figuras de vingança e de ódio, através da perfeita integração em si mesmo, sem deixar-se ferir pelas ocorrências afligentes dos relacionamentos interpessoais”.(5) E, mais ainda, pesquisas indicam que o ato de perdoar pode aplacar a tensão, reduzir a pressão sanguínea e diminuir a taxa de batimentos cardíacos. Portanto, é uma questão de saúde. O perdão passou a ser investigado pela medicina. Os vários estudos em andamento seguem a tendência de analisar a influência das emoções na saúde. Perdoar, imagina-se, livra o corpo de substâncias que só fazem mal. Essa tese faz parte do livro O poder do perdão de Luskin.(6)

A intolerância quase sempre dá lugar à agressividade. As decisões emocionais rebentam rápidas como torrentes. Sem a participação do bom senso, são capazes de danificar a harmonia de muita gente. Se nos examinarmos bem, chegamos à conclusão de que sempre poderemos ser mais tolerantes do que temos sido, habitualmente. Porém, há coisas que socialmente são intoleráveis, como a violação dos direitos humanos ou a destruição do planeta, a pedofilia, a corrupção, etc. Muitos “tolerantes” tíbios, eivados de preguiça e inconsciência, mantêm atitude de quem não está «para se chatear», porque isso dá trabalho e, às vezes, até, exige alguma abnegação, mas, isso é covardia! Tolerância não é indiferença, nem conivência, nem timidez. Pelo contrário, a tolerância pressupõe entendimento superior, sem orgulho ou vaidade; assenta-se na coragem esclarecida para beneficiamento de todos, inclusive dos adversários.

Um método corajoso de perdão foi colocado em prática por Mahatma Gandhi, o Satyagraha(7), isto é, conquistar o adversário, chamando, para si, o sofrimento, objetivando despertar a consciência moral daquele que se quer convencer de que o ato que pratica é impróprio. É um método ousado de perdão, porque implica na tentativa de sensibilizar o agressor no sentido de reverter seu comportamento. Jesus aconselhou amar os nossos inimigos no enfoque de não devolver com a mesma moeda aquilo que nos foi desferido. Oferecer, porém, a outra face (a face do bem), pois, assim, cortar-se-iam, pela raiz, os sentimentos de vingança.

Diante das agressões recebidas, o Cristo passava lições grandiosas, como aconteceu com o soldado que O esbofeteou quando estava de mãos amarradas. Sem perder a serenidade habitual, o Cristo olhou-o nos olhos e lhe perguntou: “se eu errei, aponta meu erro, mas se não errei, por que me bates?"(8) Eis, aí, a verdadeira coragem. O Mestre sofreu a ingratidão daqueles os quais havia ajudado, enfrentou o cinismo dos agressores, foi ultrajado, caluniado, cuspiram-Lhe no rosto e O crucificaram, e Ele tomou uma única atitude: a do perdão.(9) Lembrou da importância de não se colocar limite ao ato de perdoar. “Se vosso irmão pecou contra vós, ide e falai-lhe sobre a falta em particular, entre vós e ele. Se vos ouvir, tereis ganhado um irmão.” Então, aproximando-se dele, Pedro disse: “Senhor, quantas vezes perdoarei meu irmão quando ele houver pecado contra mim? Será até sete vezes?” Jesus lhe respondeu: “Eu não digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete."(10)

“No Cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram”.(11) Jesus não quis dizer para deixarmos de reprimir o mal, mas para não pagar o mal com outro mal. Perdão é o pagamento do mal com o Bem… O perdão nivela os homens pelo que neles há de melhor, libertando quem perdoou dos maus sentimentos que o escravizavam a quem o feriu. Mal por mal significa o eclipse absoluto da razão. “Por mais aflitiva seja a lembrança do adversário, recordemo-lo em nossas preces e nas meditações, por irmão necessitado de nossa assistência fraterna. Ainda não readquirimos nossa memória integral do passado e nem sabemos o que nos ocorrerá no futuro”.(12) Que seria da Humanidade se não existisse a paciência e a tolerância do Criador para com as criaturas imperfeitas e rebeldes que somos? Perdoar é um ato inteligente, que nos liberta de outras ansiedades e perturbações que nem precisamos enfrentar. Então!… Para quê guardar mágoa?

Fontes:

  1. Cf. Mateus, cap. V, vv. 38 a 42;

  2. Jeffrie Murphy, autor do livro Acertando as Contas: o Perdão e Seus Limites, disponível em http://arquivoetc.blogspot.com/2008/08/especial-dilema-eterno-da-humanidade.html >, acessado em 16/01/2009;

  3. Idem;

  4. Disponível em http://veja.abril.com.br/030908/p_086.shtml >, acessado em 15/01/2009;

  5. Franco, Divaldo Pereira. O Evangelho à Luz da Psicologia Profunda, ditado pelo Espírito Joanna de Ângelis, Salvador: Editora: LEAL, 2001;

  6. Luskin Frederic. O poder do perdão, São Paulo: editora: Novo Paradigma, 2002;

  7. Termo cunhado pelo pacifista indiano Mahatma Gandhi em sua campanha pela independência da Índia. Significa o princípio da não-agressão, ou uma forma não-violenta de protesto, como um meio de revolução;

  8. Franco, Divaldo Pereira. Palavras de Luz, Sob a inspiração de diversos espíritos, Salvador: Ed. FEEB, 1993;

  9. Romanelli, Rubens Costa. Primado do Espírito, BH: Ed. Síntese, 1966, Cap. 15;

  10. Cf. Mateus, XVIII: V, vv. 15, 21 e 22;

  11. Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, RJ: Ed FEB, 2003, cap. VI, item 5, 118;

  12. Xavier, Francisco Cândido, Nos Domínios da Mediunidade, ditado pelo Espírito André Luiz, RJ: Ed. FEB, 2001.

  • Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal lotado no INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (dois livros publicados), Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.