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  • 'Levei 45 anos para aceitar meu corpo com cicatrizes', diz vítima de queimadura

A britânica Sylvia Mac passou a maior parte da vida escondendo as cicatrizes que cobrem seu corpo - fruto de um acidente na infância. Ela explica como, aos 48 anos, decidiu que era hora de parar de se esconder. Glória Alves comenta.

  • Data :28/09/2017
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A britânica Sylvia Mac passou a maior parte da vida escondendo as cicatrizes que cobrem seu corpo - fruto de um acidente na infância. Ela explica como, aos 48 anos, decidiu que era hora de parar de se esconder:

“Na verdade, não há nenhuma parte do meu corpo que seja normal, com exceção do meu rosto.

As cicatrizes vão do meu pescoço até o cóccix. Também cobrem a minha barriga e descem pela minha perna esquerda. No resto do corpo, tenho pequenas marcas de perfurações. Se estendem pelos braços e pelas pernas, nos lugares onde os médicos retiraram pele.

Eu me queimei seriamente quando tinha três anos de idade. Sofri queimaduras de terceiro e quarto graus.

Minha mãe estava esquentando água em panelas para o banho. Ela colocava a água em bacias, que nós levávamos para o banheiro.

Estávamos brincando por perto, eu e meus irmãos. Eu entrei no banheiro e fechei a porta - nós fomos alertados a não entrar lá. Minha irmã empurrou a porta, e eu caí de costas na bacia de água fervente, causando as queimaduras.

Foi um pandemônio na casa, uma gritaria… Eu fiquei em choque, e comecei a ter convulsões. Até que a ambulância chegou.

Os médicos chamaram a minha família e disseram que eu não sobreviveria àquela noite.

Eu fui batizada e recebi os últimos ritos.

Minha primeira lembrança é de acordar na cama do hospital coberta de bandagens, que iam da minha axila até os quadris. Me lembro que a dor era constante.

Sempre que eu ia ao hospital, precisava tirar a roupa e deitar de bruços em uma cama, para que os médicos pudessem checar minhas costas e o resto do meu corpo. Com todos os estudantes de medicina e enfermeiras olhando. Eu tinha pesadelos com isso.

Provavelmente já passei da centena de operações agora.

Enquanto eu crescia, um monte de gente costumava dizer à minha mãe que eu era bonita.

Mas eu ficava pensando: “Por que eles estão dizendo isso? Eu não sou bonita. Debaixo das minhas roupas eu estou queimada”.

Eu sempre me sentia feia. Isso me afetou mental e fisicamente.

As crianças me davam apelidos como ‘bruxa’ e ‘pele de cobra’, e era horrível. Me disseram que eu nunca teria namorados, nunca me casaria, nunca teria filhos. Mostrar as minhas costas seria sempre uma coisa negativa.

Eu amava nadar. Na água, era como estar em um mundo diferente, era maravilhoso - mas eu morria de medo de que as pessoas vissem meu corpo. Eu esperava todo mundo sair da água e ir trocar de roupa, para sair por último. Tinha uma professora no ensino médio, a de educação física, que decidiu que nós deveríamos tomar uma ducha depois das aulas. Tínhamos que esperar numa fila, enrolados em toalhas.

Eu implorei a ela. “Por favor, por favor. Não posso ir para a ducha, de jeito nenhum”. Ela simplesmente arrancou minha toalha e me empurrou para o chuveiro. Ter todo mundo olhando para mim foi horrível. Eu sentia que todos estavam rindo de mim.

Uma vez, meu pai quis que eu entrasse para o clube de natação. Não sei se ele fez isso achando que me ajudaria a me abrir e a conhecer gente, mas na verdade só me trouxe danos.

Eu nunca ganhei nenhuma prova, por pensar que todos olhariam para mim se eu chegasse em primeiro lugar.

Tirar fotos sempre foi algo que eu evitei - até mesmo fotografias na escola - então é difícil encontrar uma imagem minha quando jovem. E às vezes eu ficava paranoica de que as pessoas estavam tirando fotos minhas, mesmo quando não estavam.

Deixei de fazer muitas coisas na vida. Deixei de fazer provas acadêmicas e entrevistas de emprego por falta de confiança e autoestima. E não percebia o porquê de estar tão deprimida.

Era quase como se estivesse presa numa concha e não conseguisse sair.

Na adolescência cheguei a pensar: ‘Vou me jogar na frente de um ônibus e acabar com a minha vida’.

Hoje, não consigo olhar para trás e dizer que foi culpa da minha mãe. Mas já houve vezes em que a culpei por tudo o que aconteceu.

Cheguei a um ponto em que estava atacando todo mundo em volta de mim, e era a única forma de conseguir lidar com as minhas emoções. Eu ligava para as pessoas, como minhas irmãs, e dizia coisas horríveis para elas.

Relacionamentos eram muito difíceis. Por exemplo: eu ia à uma festa com meus amigos. Quando dançava com algum rapaz e ele tocava nas minhas costas, dizia ‘ah, legal, você está usando um espartilho’.

Eles sentiam as cicatrizes, que tinham uma textura como de pequenas cordas, e se afastavam.

Conheci um rapaz muito amável uma vez, e passamos a noite toda conversando. Me senti confortável e expliquei a ele tudo sobre as cicatrizes. Ele disse que não tinha nenhum problema com isso, e que eu continuava sendo bonita.

Me apaixonei na hora, porque me senti aceita. Senti que era a coisa certa a fazer. Tive três filhos com ele, e um neto.

Ano passado estive com minha mãe em um feriado. Estávamos na piscina. Estava lotado e as espreguiçadeiras estavam bem próximas. Eu estava de biquíni.

Estávamos sentadas, e eu percebi que um cara atrás de nós estava apontando o celular para mim, então decidi me levantar. Ele continuou me enquadrando com o celular, então percebi que ele estava me filmando.

Aquilo era muito chato. Eu disse pra minha mãe: ‘Isto é horrível, eu quero ir embora’. E ela disse: ‘vamos para a praia’.

Deitada na espreguiçadeira, minha mãe estava cabisbaixa. Estava muito triste, na verdade. Percebi que o que tinha acontecido comigo acabou afetando ela também. Eu notava ela olhando para as minhas cicatrizes, e tinha vontade de dizer ‘Está tudo bem, eu estou bem’.

Naquela hora, tive um estalo. Decidi que ia interromper aquilo. Tirei o vestido e caminhei até a água. As pessoas estavam olhando para mim. Eu olhei para ela e sorri. ‘Mãe, olha pra mim!’

E ela começou a sorrir. Coloquei a mão nos quadris e fiz uma pose, na beira da água. Fui até a minha mãe e disse: ‘De agora em diante, vou deixar as pessoas tirar fotos, e toda vez que elas fotografarem eu vou fazer pose e sorrir’.

Foi naquele momento na praia que percebi que nenhum tipo de aconselhamento ou nada que eu pudesse encontrar no Google iria me ajudar. Era hora de eu me ajudar.

Comprei um maiô - aberto nas costas - e marquei aulas de natação na piscina pública do meu bairro, em Highbury, norte de Londres. Chamei pessoas com problemas parecidos com o meu para vir nadar. Quando estou na água, me sinto em paz.

Também comecei um site, chamado Love Disfigure, e me tornei ativa nas redes sociais para conscientizar as pessoas e dar apoio a quem vive com mesmo problema que eu.

Converso com um monte de gente com queimaduras. Há jovens que querem se matar logo após o acidente. Eu digo para eles: ‘Eu sobrevivi a isto. Vocês também conseguirão’.

É um longo caminho. É como tirar o casaco e dizer ’esta sou eu agora, e eu não ligo para o que as pessoas acham’. Foi uma grande mudança na minha vida. Agora consigo aceitar a minha aparência.

Meu conselho para pessoas com este problema é ir adiante, e fazer tudo o que quiser na vida. Não se deixe paralisar.

Notícia publicada na BBC Brasil , em 16 de agosto de 2017.

Glória Alves* comenta

Sylvia Mac, aos três anos, sofreu sérias queimaduras que a deixaram marcadas para o resto da vida, marcas no corpo e na alma, mas aos 48 anos decide que mudaria sua vida.

Temos visto muitos relatos dessa natureza, conhecemos através da mídia inúmeras pessoas que sofreram acidentes ou mesmo graves enfermidades, que ficaram paraplégicas, tetraplégicas, entre outros casos, e que conseguiram superar as marcas e as dificuldades deixadas pelos acidentes. Muitas delas são exemplos de vida, e que nos deixam envergonhados quando nos deparamos com elas.

Alguém que conseguiu recuperar todos os movimentos do corpo após ter se tornado tetraplégica, como a jogadora de pólo e ex-modelo carioca Kristie Hanbury, ou mesmo Fernando Fernandes, paraplégico, hoje é tetracampeão de paracanoagem, entre outros…

Todos nós, que estamos atravessando esse mundo de provas e expiações, vez por outra atravessamos momentos difíceis e dolorosos, que se constitui na noite escura da alma. Esse momento do Espírito “se constitui de aflições inesperadas que defluem das circunstâncias existenciais e dos desafios que devem ser enfrentados durante o périplo carnal”.(1)

Para Sylvia Mac, a sua noite escura começou quando sofreu o grave acidente aos três anos de idade. Não temos como imaginar, mensurar o que ela sentiu naquele momento, era apenas uma criança; o estado de choque, as convulsões, batizada às pressas, pois sua morte era dada como certa pelos médicos, dores constantes e os pesadelos…

E, com o passar do tempo, ter que enfrentar a si mesma, olhando-se num espelho, sentindo-se mal diante do que via, tendo que enfrentar o preconceito e a ignorância de muitos que a ridicularizavam. A ignorância que muitos de nós temos quanto ao sentido da vida. E o que pesa mais nessa balança da vida? Eu diria que o peso maior, o maior desafio que temos que enfrentar, está em nosso íntimo. É a luta contra nós mesmos, lembrando o bom combate de Paulo de Tarso: “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé.”

“No bom combate, dispomo-nos a lutar contra nós próprios, assestando baterias de vigilância em oposição aos sentimentos e qualidades inferiores que nos deprimem a alma.”(2)

Quais são as armas que devemos usar nesse combate? A maior delas, a Vontade. A maior potência da alma segundo Léon Denis. A vontade de viver, de buscar o melhor e desenvolver em nós a vida, vontade que funciona como um ímã que atrai novos recursos vitais.

“Pela vontade! Os usos persistentes, tenazes, desta faculdade soberana permitir-nos-á modificar a nossa natureza, vencer todos os obstáculos, dominar a matéria, a doença e a morte.”(3)

Determinação, confiança, autoestima, otimismo, autoamor são também outras forças preservadoras da vida; a certeza de conseguirmos superar um sofrimento, um momento de dor profunda da alma.

Sylvia e tantos outros anônimos fizeram bom uso desses recursos, descobrindo na dor a sua essência divina. A força que todos nós podemos desenvolver em prol de nós mesmos.

Ela se sentia presa numa concha e não conseguia sair. Na adolescência chegou a pensar em suicídio, acabar com a vida; porém ela decidiu continuar, até que, mergulhada em si mesma, percebeu que não eram as pessoas que lhe tolhiam a vida, a liberdade de viver. Não eram os risos, os deboches, os preconceitos, mas ela mesma, e quando entendeu que sua vida e sua felicidade estavam em suas mãos decidiu interromper todo aquele sofrimento.

Buscar em nós a essência divina, a luz que está em gérmen e que precisa ser trabalhada para que ela brilhe. Deus, a Vontade Suprema, ao nos criar, nos cumula de mil possibilidades para a nossa evolução, para o nosso progresso espiritual.

Não somos o corpo de carne, somos Espíritos imortais; o corpo físico pode estar mutilado, mas, com certeza, podemos transcender as dores, as marcas, as cicatrizes, os conflitos que trazemos em nosso corpo físico.

É fácil? Não, é um aprendizado! E para aprender é preciso exercitar, e isso é um dever moral da criatura para consigo mesma. “Meu conselho para pessoas com este problema é ir adiante, e fazer tudo o que quiser na vida. Não se deixe paralisar”, diz Sylvia.

Desenvolver o autoamor: dever primordial da nossa vida, através do autoconhecimento e a autoaceitação, que é um dos desafios que recebemos na vida. Para certas pessoas, uma das suas maiores preocupações está em saber o que os outros pensam delas. Sua vida e seu estado de ânimo giram em torno das opiniões ou dos pontos de vista instáveis dos outros. À medida que nos preocupamos com a impressão que causamos nas pessoas, menos sabemos quem realmente somos.

Entendemos quando Sylvia diz que é um longo caminho a ser percorrido para a autoaceitação, pois a natureza não dá saltos, é preciso paciência para a realização desse trabalho intransferível e inalienável. E ela fala muito bem dessa autoaceitação: “é como tirar o casaco e dizer ’esta sou eu agora’, e eu não ligo para o que as pessoas acham. Foi uma grande mudança na minha vida. Agora consigo aceitar a minha aparência”.

Quando alguém aspira por mudanças para melhor, irradia energias saudáveis do campo mental que contribuem para a realização da meta. É desse modo que vemos Sylvia, irradiando energias saudáveis; ela não pensa só em si, em seu sofrimento busca aqueles que passam pela mesma situação, troca experiências, ajuda aos que ainda não descobriram que a maior força de superação está em si mesmo. O autoamor nos leva à fraternidade, à solidariedade, ao amor ao próximo.

“Ante as provas e tribulações que nos cerquem, aceitemo-nos como somos, a fim de extrairmos de nós com sinceridade o máximo de bem de que sejamos capazes na ampliação do bem geral, porque a vida é um parque de promoções permanente para quem trabalha e serve; e todo Espírito que se aceita qual é, de modo a fazer de si o melhor que pode, para logo se desvencilha de qualquer sombra, a fim de engajar-se na jornada bendita do próprio burilamento, partilhando a conquista incessante de luz e mais luz”.(4)

Temos um trabalho a realizar e que está ao alcance de todos: conquistar a si mesmo. Nunca desistir e nem desanimar diante dos embates da vida, confiar em si e confiar em Deus.

Fontes de referência:

(1) “Atitudes Renovadas” - Espírito Joanna de Ângelis - Divaldo Franco;

(2) “Palavras de Vida Eterna” - Emmanuel - Chico Xavier;

(3) “O Problema do Ser, do Destino e da Dor” - Léon Denis;

(4) “Mãos Unidas”, 27 - Autoaceitação - Espírito Emmanuel - Chico Xavier.

  • Glória Alves nasceu em 1º de agosto de 1956, na cidade do Rio de Janeiro. Bacharel e licenciada em Física. É espírita e trabalhadora do Grupo Espírita Auta de Souza (GEAS). Colaboradora do Espiritismo.net no Serviço de Atendimento Fraterno off-line e estudos das Obras de André Luiz, no Paltalk.